Culpa
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Biá! Biá! Biá! – lamuria-se ele, cedo ainda.
E nós temos de decidir o que sentir, porque na verdade há várias hipóteses. Podemos escolher dar-nos conta de que quase tudo o que o nosso filho diz vem em grupos de três (“Dádádá!”, “Mémémé!”, “Pópópó!”), como no compasso da valsa, nas personalidades do divino ou na dialéctica hegeliana. Podemos escolher achar simplesmente graça, porque Bia, na vida dele, só há uma: a auxiliar da turma, a rapariga que lhe muda a fralda todos os dias e – muito importante – a pessoa que mais vezes lhe fala do Sporting. Mas também podemos escolher sentirmo-nos culpados por andarmos a trabalhar tanto que o nosso filho já acorda a suspirar pela companhia de outras pessoas, e é evidente que é isso que escolhemos, porque a nossa rotina mudou imenso nas últimas semanas e nem sequer tem discussão que passamos menos tempo juntos.
Entretanto, ele continua:
– Biá! Biá! Biá!
Às vezes em lágrimas e outras sorridente, embora o mais normal, por ora, seja estar pesaroso, porque eu agora, ainda por cima, chego muitas vezes a casa depois de ele ir para a cama. E, se não chego, há sempre alguém a ligar-me, ou a mandar-me mensagens, ou o diabo. Como é que uma criança não há-de sentir rivalidade com o telemóvel? Teria de ser muito limitada, ou muito distraída, ou de mentir muito bem a si mesma.
– Que engraçado – enternece-se a dita Bia, quando enfim lhe passo o garoto para as mãos. – Vá, Artur, diz lá “Biá!”, para eu ouvir.
Mas já ele está num berreiro outra vez, agora não porque eu esteja a falar ao telemóvel, mas porque já sigo corredor fora, a caminho da livraria. De qualquer maneira, todas as vezes em que me lamentei por trabalhar de mais, ao longo da vida, foram positivamente ridículas. Na prática, percebo agora, comecei a trabalhar aos 50. Comparado com o que trabalho hoje, tive sempre uma vida fácil, o que aliás só faz aumentar o meu sentimento de culpa outra vez – logo agora!
– Mil vezes a culpa – diz-me a Salomé, com quem desabafo momentaneamente.
– Ressentimento é que nunca.
Apesar disso, todo o dia penso no abandono entre pais e filhos, nas crianças criadas pelos empregados. A certa altura ligo à Sónia:
– Afinal hoje não vamos precisar de baby-sitting, vou para casa.
Mas, enquanto atravesso o pátio do Colégio, continuo a sentir-me o pior pai do recreio. Só quando chego à sala dele a Bia me diz:
– Olhe, ele até pode estar a dizer Bia, mas hoje foi “Pilar!” o dia inteiro. Nem me ligou.
Mesmo assim, quando vamos a caminho de casa já eu estou à procura de novos falhanços, para me sentir culpado. E amanhã começa tudo de novo.