Crónica de uma fuga anunciada

Evasão de cinco reclusos de Vale de Judeus veio deixar o país em alerta, mas há anos que tanto os sindicatos como os relatórios encomendados pelos vários Governos davam conta deste e de outros riscos. De resto, garante o sindicato das chefias da guarda prisional, a própria Divisão de Serviços de Segurança, sob a alçada da DGRSP, avisou, em fevereiro, os vários chefes das cadeias de que podia haver incidentes graves. Mas pouco ou nada foi feito. E quem conhece os meandros do sistema prisional avisa: “Vai voltar a acontecer. Só esperamos que não morra ninguém.”

O universo cinematográfico está cheio de obras que retratam impressionantes fugas da prisão. Em “O Expresso da Meia-Noite”, por exemplo, Billy Hayes mata um guarda por acidente, rouba-lhe a farda e sai da cadeia como se nada fosse. Em “Os Fugitivos de Alcatraz”, baseado numa história real, Frank Morris, interpretado por Clint Eastwood, engendra um esquema mirabolante que inclui um bote improvisado para se evadir de Alcatraz, prisão de segurança máxima, localizada, veja bem, numa ilha da Califórnia (após a fuga, foi encerrada). Em “Prison Break”, série lançada em 2005, Wentworth Miller, no papel de um genial Michael Scofield, vai propositadamente para a cadeia, com o mapa da prisão tatuado no corpo, e um engenhoso plano para de lá tirar o irmão. A fuga, bem-sucedida, envolve, entre outros detalhes ardilosos, uma médica cúmplice, um diretor sequestrado, uma longa travessia subterrânea, uma fuga pela janela da enfermaria. Já a recente evasão de cinco reclusos altamente perigosos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, suposta cadeia de alta segurança localizada em Alcoentre, no distrito de Lisboa, encerra um plano bem mais simples: três cúmplices no exterior, munidos de material militar e dois veículos, duas escadas, uma fuga à luz do dia, a partir do pátio, em apenas seis minutos. Em suma, um plano aparentemente linear e desprovido de grande espetacularidade cinematográfica. Aconteceu no último sábado, dia 7, pelas dez da manhã.

Depois, foram-se atando algumas pontas soltas da história, dignas de um guião particularmente sensaborão. A cadeia estava sem diretor, não havia guardas prisionais no pátio no momento em que a fuga aconteceu, o circuito de CCTV, com perto de 200 câmaras, era vigiado por um único guarda, as torres de vigia tinham sido demolidas, a cerca eletrificada não funcionava porque, sempre que era ligada, deitava a luz abaixo – foi o próprio diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais (que entretanto se demitiu) a assumi-lo. Para piorar, dificilmente se pode dizer que ninguém previa uma coisa assim. Ao longo dos anos, vários estudos e relatórios encomendados por sucessivos Governos foram alertando para os muitos problemas dos estabelecimentos prisionais, designadamente ao nível da segurança, e especificamente em Vale de Judeus. Prometeram-se medidas, anunciaram-se planos e investimentos. Porém, em pouco ou nada se traduziram. E os dirigentes sindicais sempre a avisar. Que o corpo da guarda prisional estava à míngua, que as chefias eram cada vez menos, que as condições eram miseráveis, que um dia havia de acontecer uma desgraça. Porém, pouco ou nada mudou. E assim chegámos aqui, a esta fuga há muito temida e anunciada por quem conhece os meandros do sistema prisional. Uma “vergonha internacional”, na definição de Frederico Morais, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, a que se seguiu um “sketch digno de Monty Python”, nas palavras de Hermínio Barradas, da Associação Sindical de Chefias do Corpo da Guarda Prisional.

Um dia após o sucedido, no domingo, Rui Abrunhosa Gonçalves, ainda diretor, assumia que algo tinha falhado, mas jurava que não havia falta de recursos humanos. Admitia que era preciso apurar o que se tinha passado, mas assegurava que estava empenhado em continuar. A intenção durou, no entanto, pouco. Terça-feira, dia 10, foi anunciado que a Ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, tinha aceitado a sua demissão, bem como a do subdiretor dos Serviços Prisionais, Pedro Veiga Santos. Nesse mesmo dia, a governante quebrou por fim um silêncio que lhe valeu numerosas críticas. Em conferência de Imprensa, explicou que não quis falar sem conhecer todos os factos e esclareceu já ter na sua posse um relatório elaborado pela Divisão de Serviços de Segurança, que por sinal faz parte da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP). Daí que Hermínio Barradas fale em “sketch digno de Monty Python”. “Não atribuímos fiabilidade a um relatório produzido pelo órgão de onde emanam as diretrizes que promoveram todo este caos”. Voltando a Rita Alarcão Júdice, disse ter concluído, com base no tal relatório, que “a fuga resultou de uma cadeia sucessiva de erros e falhas muito graves, grosseiras e inaceitáveis”. Falou também de “desleixo, facilidade, irresponsabilidade e falta de comando”, prometendo impulsionar todos os processos “disciplinares ou legais que se revelem necessários” (o que não caiu bem às chefias do corpo da guarda prisional). E anunciou ainda duas auditorias: uma aos sistemas de segurança dos 49 estabelecimentos prisionais do país, a concluir até ao final do ano; outra à afetação de recursos da DGRSP.

“Preparem-se para graves problemas”

Mas não falta quem lembre que os problemas há muito estão identificados. “Esta auditoria vai reforçar aquilo que há muito sabemos”, sublinha Hermínio Barradas. O responsável pela associação sindical que representa as chefias da guarda partilha, a propósito, um episódio tão sintomático quanto preocupante. “Esta mesma DSS [a tal Divisão de Serviços de Segurança] chamou, em fevereiro, os 49 chefes das cadeias portuguesas a Sintra para nos dizer: ‘Preparem-se para graves problemas.’”, denuncia o dirigente, garantindo que não foram apresentadas soluções para os evitar. Frederico Morais, do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda, reforça que as dificuldades foram amplas vezes denunciadas ao longo dos últimos anos. Resultado? Nenhum. “É o que mais tenho dito nos últimos dias: nós avisámos. Andamos há anos a falar disto. Já há quatro anos que o nosso caderno reivindicativo alerta para a falta de guardas, de condições de segurança, de torres, de viaturas, de chefias. Já há quatro anos avisámos que havia um grande perigo de fuga, que estávamos a descurar a segurança nas cadeias.” Miguel Gonçalves, presidente do Sindicato dos Técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, insiste no mesmo ponto. “O que aconteceu agora não nos surpreende. Temos andado a alertar para isto, para este e outros riscos. Ainda em fevereiro fizemos uma petição pública a pedir a demissão deste diretor-geral. Os sucessivos Governos não têm investido nada. O sistema prisional fica sempre para segundo plano e só tem visibilidade em alturas como esta”, acusa.

De resto, os vários relatórios e estudos que foram sendo elaborados ao longo dos anos apontam no mesmo sentido. Em 2017, o “Relatório sobre o sistema prisional e tutelar”, elaborado a pedido do Ministério da Justiça, na altura liderado por Francisca Van Dunem (Governo PS), apontava para lacunas graves em vários estabelecimentos prisionais do país. O de Vale de Judeus incluído. Mais tarde, a própria DGRSP encomendou ao Observatório Permanente de Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra um estudo que pretendia ser um guia para uma reforma do sistema prisional. “Em particular para o estatuto do corpo de guardas prisionais”, detalha Carlos Nolasco, investigador do CES e um dos autores do documento. Da análise aprofundada que fizeram na altura, resultaram várias recomendações, que grosso modo continuam por aplicar, e um diagnóstico relativo ao estado das cadeias portuguesas. Tudo menos risonho, diga-se.

Ressalvando que a realidade que encontraram quando visitaram os vários estabelecimentos prisionais do país era profundamente “heterogénea” – “existem desde edifícios que vêm do século XIX às prisões de comarca do início do século XX, passando por outras bem mais recentes, pelo que os reclusos acabam por ter um tratamento diferenciado consoante o estabelecimento em que são colocados” – , há, no entanto, uma conclusão mais geral que Carlos se permite assinalar. “De uma forma muito genérica, o que podemos afirmar é que estamos longe de corresponder àquilo que foram as políticas desenhadas pelos responsáveis de diferentes Governos do Portugal democrático.” Dito de outra forma: foram sendo pensadas propostas políticas para mudar o estado das coisas? Foram. Chegaram a ser concretizadas? Genericamente não. O que faz, desde logo, com que “os reclusos se encontrem numa situação muito vulnerável”. A prova, aponta o investigador, é que sempre são apresentados processos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por os presos não verem respeitados os seus direitos, o Estado acaba condenado.

Quanto à questão da segurança, Carlos admite que não a trabalharam de forma direta, mas que ela é inerente às conclusões então tiradas. “Se o corpo da guarda tem um determinado contingente que não está preenchido, se os guardas não estão satisfeitos com as condições salariais que têm, com a falta de progressão na carreira, há inevitavelmente questões de segurança que se colocam.” A falta de efetivos tem, de resto, sido sucessivamente apontada, tanto em estudos e relatórios, como pelos dirigentes sindicais. Frederico Morais não tem dúvidas: “Faltam atualmente 1500 guardas para fazer cumprir todas as funções”. Carlos Nolasco lembra, a propósito, que por vezes há um único guarda de vigilância numa ala com várias camaratas de dez homens cada. “Por vezes apercebem-se de gritos ou pedidos de ajuda e não vão lá, porque sozinhos não têm coragem. De manhã abre-se a cela e vê-se o que se passa”, denuncia. “E temos vindo a perder efetivos constantemente, porque a carreira não é atrativa”, reforça o presidente do Sindicato do Corpo da Guarda. O problema estende-se às chefias. Hermínio Barradas lembra que o quadro da guarda prisional prevê a existência de 560 chefes. Porém, só há 260, menos de metade, portanto. “Com uma idade média de 57 anos e 10% deles em baixa médica permanente”, detalha. Note-se, a propósito, que em julho a ministra da Justiça e os sindicatos da guarda prisional chegaram a acordo para um aumento de 300 euros no suplemento de missão (até 2026).

Na manhã de 7 de setembro, cinco homens fugiram do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, recorrendo a duas escadas e à ajuda de três cúmplices no exterior (Nuno Brites)

Os problemas de falta de recursos humanos estendem-se aos técnicos. Miguel Gonçalves, do Sindicato dos Técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, lembra isso mesmo. “Nós acompanhamos 12 mil reclusos dentro das cadeias, mais 30 mil fora, e não temos os recursos adequados. Um técnico numa cadeia regional acompanha dez reclusos, enquanto numa cadeia central pode acompanhar até 100.” O dirigente aponta ainda o dedo a várias situações “graves”, que se prendem com o modus operandi da própria DGRSP, e que, apesar de sucessivamente denunciadas, têm sido ignoradas. “Começa logo mal porque o cargo de direção [das cadeias] é preenchido por nomeação do diretor-geral, é um dos poucos serviços em que não existe um concurso. O que faz com que tenhamos vários dirigentes que nada têm a ver com isto. Na cadeia de Faro, por exemplo, o diretor é licenciada em Gestão Hoteleira e o adjunto substituto é formado em Enfermagem Veterinária”, acusa, acrescentando que também é comum “haver relações de parentesco”.

Além de que o próprio serviço de inspeção (Serviço de Auditoria e Inspeção) “está na dependência do diretor-geral, o que significa que quem faz as inspeções é nomeado por ele”. “Também aqui, há casos em que as pessoas que lá trabalham nem sequer têm formação na área.” E o mesmo em relação a quem faz os relatórios sociais para os tribunais. “É um sistema feudal, não há autonomia nenhuma. São coisas que se sabe há muito, mas de que raramente se fala. Isto é uma burla institucional, está tudo enviesado. Andamos todos a enganar-nos”, conclui. Além da questão salarial, que há anos merece contestação, sem qualquer sucesso. “Um técnico profissional de reinserção ganha o salário mínimo, é a profissão mais mal paga da administração pública. Mesmo no caso dos técnicos superiores [de reinserção ou de reeducação] o salário máximo ronda os 1600 euros, abaixo dos outros técnicos superiores.” Um novelo de queixas que acabam por impactar as várias nuances do sistema. Segurança incluída, entende Miguel Gonçalves. “Há uma desmotivação total dos trabalhadores, que também não podem criar nada que seja minimamente atrativo para os reclusos, porque há um sistema antigo que não acompanha. Quem está preso passa o dia nos pátios, sem fazer nada, e tem tempo para pensar em tudo e mais alguma coisa.”

As responsabilidades e o que aí vem

Voltando a Vale de Judeus, Frederico Morais entende que, para lá de todos os pormenores inusitados que foram sendo conhecidos (já enumerados na primeira parte deste texto), e de uma conjuntura que favorece a possibilidade de situações destas ocorrer, “falhou sobretudo a organização”. Em parte, entende, “por causa do facilitismo de achar que está tudo bem, que nada vai acontecer”. O dirigente sindical chama também a atenção para outro ponto que lhe parece relevante. “Continuamos a permitir que os reclusos que fazem as limpezas circulem em zonas sensíveis, como aquelas em que são feitas as escalas, ou as salas onde estão os circuitos de CCTV. Há muito que avisamos que não podem circular em todo o lado.” Porque isso também ajuda a desenhar possíveis fugas, leia-se.

E que outras formas há de reforçar a segurança? Para Ludovico Franco Jara, coordenador dos cursos de segurança da Universidade Autónoma de Lisboa e ex-presidente da Associação dos Diretores de Segurança, um maior recurso à tecnologia é fundamental, reservando a intervenção dos guardas para “situações em que é preciso uma atuação mais musculada”. “O elemento humano é cada vez mais vulnerável, quando comparado com a evolução e a eficácia da tecnologia.” O especialista em segurança nota ainda que “faltam equipamentos e medidas integradas que deem o alerta por camadas e que, além de retardarem o êxito da fuga, possam ter um efeito dissuasor”. Por exemplo? A implementação de cortinas de infravermelhos nos muros das cadeias. “Se houver um movimento fora do normal, é imediatamente detetado.” Mas também a aposta em drones que vigiem os estabelecimentos prisionais. Ou em câmaras que sejam capazes de detetar comportamentos suspeitos. Ou mesmo em sensores enterrados na terra que possam detetar vibrações fora do comum. Ludovico sugere ainda a criação de um centro nacional onde se monitorizem todos os estabelecimentos, “até para evitar um certo comprometimento de que às vezes se fala, porque muitas vezes os próprios guardas ficam intimidados”. “No caso de Vale de Judeus, e de muitos outros estabelecimentos prisionais, o que temos é uma prisão dos anos 1960 [só recebeu o primeiro recluso em 1977] com uma câmara aqui, outra ali, guardas que não estavam, uma torre que não estava ativa. Nós com amadorismos não vamos lá. É lamentável e põe a nu a falta de cultura de segurança existente em Portugal. É urgente vermos a segurança como um ativo e não como um custo.”

Sendo que há uma lógica de responsabilidades conexas, como assinala Carlos Nolasco. “Quando algo assim acontece, falha em primeira instância a DGRSP, que não precaveu a circunstância da falta de guardas ou as questões tecnológicas. Mas a DGRSP por si também não tem respostas se o Ministério da Justiça não der condições para abrir concursos, para adquirir equipamentos. E se o Ministério não tem recursos, temos de olhar para quem manda no Governo. Há uma lógica em cadeia.” E esta responsabilidade pode ser imputada a vários Executivos. Para Frederico Morais, as principais responsabilidades devem ser imputadas ao Partido Socialista, que “esteve no poder durante oito anos”. E em particular às antigas ministras da Justiça, Francisca Van Dunem e Catarina Sarmento e Castro, que apesar dos “muitos milhares de euros enterrados em estudos”, não foram capazes de dar o grito que era preciso”. Por outro lado, lembra que “o PSD também tem muita culpa porque, no tempo da troika, cortaram logo aos serviços prisionais”. Quanto à atual titular da pasta, Rita Alarcão Júdice, defende que ainda não teve tempo para mudar muito. Mas há uma questão que desde já dirige ao Executivo liderado por Luís Montenegro. “Eu ouvi, à entrada para a discussão do Orçamento do Estado, o Governo a dizer que queria manter um excedente de 0,3% [do PIB]. E eu pergunto se não será melhor ficar só com um excedente de 0,1% e investir o resto nos serviços prisionais, para evitar passar por outra vergonha internacional como esta.” Deixa ainda um alerta: “Os reclusos não fogem mais porque não querem, porque a verdade é que não há segurança.” Hermínio Barradas é ainda mais fatalista: “Vai voltar a acontecer. Só esperamos que não morra ninguém, nem que ninguém fique ferido. A população daquela zona [de Alcoentre] escapou de boa, porque se calhava de haver alguém ali pelo monte a fazer um convívio ou o que quer que fosse, por esta altura estávamos a fazer funerais. E tudo por culpa do sistema.”