O grau de proximidade interfere no assunto, a intencionalidade também. O silêncio não ajuda a impor limites e o humor é uma estratégia. Como responder ou bater o pé a questões inconvenientes.
Quanto ganha? Quanto custou? Que idade tem? Quanto pesa? Mas não quer trabalhar? O que vai fazer da sua vida? Ainda não casou porquê? Porque é que não tem filhos? Não quer ter filhos? Está grávida, outra vez, ou está a fazer barriga? Está mais gordinha, não está? O que herdou dos seus pais? Não deve saber o que fazer ao dinheiro, pois não? Clássicas e inconvenientes perguntas que entram no domínio da privacidade sem pedir licença. Perguntar também pode ofender (e, por vezes, será esse o propósito).
Perguntas desconfortáveis são perguntas sensíveis que invadem a intimidade e tocam em assuntos privados. “Estas questões tendem a ultrapassar os limites do que é socialmente aceitável, desrespeitando a barreira que protege a individualidade. As pessoas fazem perguntas pessoais por diversas razões. Podem ser consideradas como verdadeiras invasões de privacidade disfarçadas de curiosidade inocente”, nota Sara Ferreira, psicóloga clínica. Perguntas assim geram constrangimentos.
Surgem de rompante, causam surpresa, não se conseguem evitar na maior parte das vezes, porque, lá está, são perguntas inesperadas. “Questões que incidam sobre temáticas amorosas, relativas a decisões sobre ter ou não filhos, salariais ou sobre bens herdados, tendem a gerar desconforto. Podem ser intrusivas ou trazer à tona questões que a pessoa preferiria não discutir”, afirma Catarina Lucas, psicóloga e terapeuta familiar.
Perguntar o que apetece não dá direito a mexer em feridas, em querer respostas para assuntos íntimos. “Estas perguntas, além de invadirem a privacidade, podem expor vulnerabilidades ou colocar a pessoa numa posição defensiva. É importante ter sensibilidade ao abordar esses tópicos, respeitando os limites e o conforto dos outros”, diz Catarina Lucas.
Há aspetos a considerar na forma de compreender e lidar com tais perguntas. Tânia Gaspar, psicóloga clínica e da saúde, destaca três: educação, personalidade, experiências anteriores. Há culturas familiares mais abertas e outras mais fechadas à comunicação. Há pessoas mais introvertidas e outras mais descontraídas. E há pessoas com histórias negativas revoltadas ou pouco flexíveis para lidar com essas perguntas. “Podemos ter extremos, pessoas mais introvertidas e fechadas para quem todo o tema mais pessoal ou qualquer questionamento, por mais inocente que seja, é sentido como invasivo e desconfortável.” A sexualidade é um deles. No trabalho também acontece. “Por vezes, colegas ou chefias fazem comentários ou perguntas que podem deixar a pessoa desconfortável, depende da forma como se aborda o tema, o tom como as questões são colocadas ou até em frente de quem se faz o comentário”, acrescenta Tânia Gaspar. É importante saber quando é ou não é assédio laboral.
A intencionalidade conta (e muito). Sara Ferreira analisa os dois lados. “Às vezes, querem apenas provocar, expor ou encurralar o outro. No entanto, nem sempre é esse o caso. Muitas vezes, quem pergunta nem se dá conta de que pode estar a causar desconforto.” E o que é desconfortável para uns, não o é para outros. “A perceção do que é ou não incómodo ou desconfortável é subjetiva e influenciada por aspetos como experiências pessoais, características de personalidade, tipo de relação que mantém com a pessoa que faz a pergunta, contexto da pessoa, estado de saúde mental e expectativas sociais”, indica a psicóloga Catarina Lucas.
O grau de amizade e de intimidade influencia. Até certo ponto. Atenua o desconforto, mas não o elimina completamente. “Em qualquer tipo de relação, é essencial manter a sensibilidade e o respeito pelos limites do outro, reconhecendo que cada pessoa tem áreas de sua vida que prefere manter privadas ou que podem ser dolorosas de discutir”, refere Catarina Lucas.
Haverá perguntas desconfortáveis num casal? Os pais podem perguntar tudo aos filhos? “Entre um casal, a intimidade pode permitir um maior espaço de abertura, mas isso não significa que todas as perguntas sejam bem-vindas ou apropriadas ou sequer aceitáveis. Também não significa que, mesmo em contexto de relações íntimas, ‘tenhamos’ ou ‘devamos’ responder a tudo e a todos, como se os limites da nossa privacidade precisassem desvanecer ou sequer existir”, constata Sara Ferreira.
Mesmo nas relações mais próximas há fronteiras que devem ser respeitadas. “No contexto familiar, por exemplo, os pais podem sentir-se no direito de fazer perguntas intrusivas aos filhos, mas isso não significa que essas perguntas sejam sempre confortáveis ou desejáveis. A proximidade não deve ser usada como desculpa para violar o espaço pessoal e a privacidade do outro; pelo contrário, deveria fortalecer o respeito mútuo pelos limites individuais”, sublinha a psicóloga. Em qualquer caso, a confiança é importante.
Um jogo de xadrez com linhas vermelhas
Como evitar? Travar a língua de outra pessoa é missão que parece impossível. O que fazer então? Como responder? Mostrar desconforto? Reformular delicadamente a pergunta? Ser evasivo? Fulminar com um olhar?
“Responder a uma pergunta desconfortável é como jogar um jogo de xadrez onde, na realidade, o objetivo é manter o ‘rei’ particular de cada um (leia-se dignidade) a salvo”, explica Sara Ferreira. “Reformular a pergunta é uma estratégia elegante, quase diplomática, mas não nos iludamos: é uma maneira sofisticada de evitar o embaraço de quem perguntou. Mostrar desconforto pode ser uma excelente maneira de educar o(a) atrevido(a), mas requer coragem e uma dose de sarcasmo bem aplicada”, acrescenta.
Para Catarina Lucas, a abordagem depende do contexto, da relação, do conforto ou desconforto. “Algumas estratégias de resposta podem passar por reformular a pergunta, ser assertivo e mostrar desagrado, ser evasivo, responder com humor, estabelecer limites claros, redirecionar a pergunta, agradecer a preocupação, mas referir que prefere não falar sobre isso.” Seja qual for a estratégia, sublinha, “é importante manter o respeito e a cortesia, mas também proteger os seus próprios limites e conforto.”
Tânia Gaspar fala em autoconhecimento. “Será que quero falar sobre a minha relação conjugal no local de trabalho? Será que quero falar sobre as ideias racistas dos meus pais na escola? Será que quero contar anedotas sobre mulheres ou pessoas gordas perto da minha chefe com excesso de peso? Será que quero falar sobre os meus problemas financeiros nos escuteiros do meu filho?” O assunto é complexo e, na perspetiva da psicóloga, a assertividade e a reflexão crítica deviam ser trabalhadas nas famílias, nas escolas e nos locais de trabalho para melhorar a comunicação e abordar temas mais delicados.
“Cada pessoa deve refletir sobre a sua intimidade e sobre que temas quer falar com quem e em que contextos. Se tiver este autoconhecimento e competências de assertividade sabe lidar melhor com situações desconfortáveis, pode expor a sua perspetiva de forma assertiva, pode não responder, pode usar o humor para ultrapassar a situação, pode simplesmente dizer que não quer falar sobre o tema com aquela pessoa ou naquele contexto”, sustenta Tânia Gaspar.
E o silêncio é uma boa estratégia? Às vezes, sim. Às vezes, não. “Pode ser eficaz em situações onde se quer evitar conflito, preservar a privacidade ou sinalizar desconforto sem confrontar diretamente”, observa Catarina Lucas. “No entanto, é importante estar ciente dos possíveis riscos, como mal-entendidos ou a perda de uma oportunidade de estabelecer limites. Dependendo da situação, pode ser mais útil oferecer uma resposta breve e educada que deixe claro que o tema é desconfortável”, sustenta.
Não responder é uma maneira elegante de mostrar que a pergunta é inadequada. “É uma forma de preservar a dignidade pessoal e de reafirmar os próprios limites sem gerar conflito direto. No entanto, o silêncio também pode ser mal interpretado, sendo visto como passividade ou falta de interesse”, alerta Sara Ferreira. A decisão deve ser ponderada.
Meter o nariz onde não se é chamado tem o que se lhe diga. “As perguntas incómodas normalmente são feitas por pessoas que querem saber mais sobre a nossa vida pessoal”, diz Sara Ferreira. Deixar claro que há linhas vermelhas, que não se toleram insultos disfarçados de perguntas, é uma tática. A menos que se sinta que há naquela interrogação uma preocupação genuína. Nesse caso, é outra conversa.