Colecção do ano
Acaba um ano que me trouxe muita tristeza e ocorre-me que segui pelos dias através de uma infinidade de amuletos como quem colhe as pedras do caminho para as acarinhar. Talvez a tristeza nos afeiçoe ao que o acaso traz. Baixamos a guarda, somos à mercê de uma carência que se engana com apaixonar-se por tudo. E eu apaixonei-me por muito, de verdade, e acredito que enfeite minha tristeza com lembrar o mais terno do que me aconteceu.
A ver as vinhas na ilha do Pico fiquei com a impressão de que se aninham as uvas à espreita do mar, como noivas aguardando os seus amigos embarcados. Parecem cobertas de negro, mantos de pedra que as cobrem contra o vento, e observam o bulício das águas na esperança do amor. Por algum motivo, eu senti que ninguém ia chegar.
As figuras do Albuquerque Mendes são sem abraços. Olham para nós tão desarmantes quanto desarmadas porque se mostram entre o cómico e o desolado. Na belíssima exposição da Guarda, mais uma vez senti que também esperam, mas não como moças por tocar, os seus amigos à deriva adiante no mar. As figuras do Albuquerque Mendes são usadas, polidas como as prostitutas que sofreram o pior e precisam de se mascarar de belas. Faltam-lhes os abraços. Não o toque nem o sexo. Mas o carinho. Andando pelo Museu, a exposição inteira pedia meu carinho, um afago tela a tela, que jamais vai sanar aqueles olhares.
Fiquei de ir ver a janela do Caravaggio, essa que mandou abrir para tratar da luz no lugar onde pintava. Com viagem marcada para Roma, levo a janela na cabeça porque me assalta a ideia de ver como ele viu. Poder habitar seu olhar, sua intensa presença, à procura de um modo de, por um louco instante, estarmos juntos.
Deixei de passar por uma rua da Póvoa de Varzim onde entendi que me azaro. Fujo. Fiz uma espécie de esconjuro inventado, sigo com o carro pelos bairros mais distantes, não ponho ali os pés de modo nenhum. Ainda assim, fico com pena da rua. De cada casa. Como se pudesse ter descoberto sua alma tremenda, ardendo, e me furtasse a auxílios. Sonhei que colhia todas as suas coisas e lhes dizia como, um dia, será tudo melhor. Tomava a tua inteira nos braços para a salvar de ser má, feia, enfeitiçada.
Compro pais natais de chocolate e parto-os para os comer. Na mesa da minha sala há sempre uma espécie de cadáver que, esventrado, vamos devorando até que sobre apenas a bela prata, o fantasma luminoso que deixou. Tenho pena. Mas entendo que tenho mais gula do que pena. E que me dá ternura comer chocolate mais do que esperar uma boa prenda no sapatinho.