A revisão do Estatuto da Carreira de Investigação Científica deverá chegar ao Parlamento nas próximas semanas. Apesar de ainda haver grandes pontos de discórdia, os investigadores pedem o maior consenso político (além da proposta do Governo, também a versão do PS estará à discussão). Com uma certeza. O diploma não resolve a falta de estabilidade.
São muitos os avanços e recuos nos últimos anos e, contas feitas, o Estatuto da Carreira de Investigação Científica já tem 25 anos, está em vigor desde 1999. A revisão do diploma, para se adaptar à realidade atual, tem sido reclamada por sindicatos e organizações do setor ao longo da última década. Talvez seja desta. O ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, quis carregar no acelerador, fechar este capítulo. Lançou uma nova proposta em junho, baseada na do anterior Executivo do PS (que não chegou a ir a Parlamento), mas com algumas mudanças. Ouviu sindicatos, reitores das universidades, institutos superiores politécnicos, investigadores. O objetivo era ter o novo estatuto aprovado ainda antes das férias de verão, não aconteceu. O diploma vai a Conselho de Ministros no dia 26 de setembro e só chegará depois ao Parlamento. Pelo caminho, o documento já foi alvo de melhorias, depois de duas rondas de negociações, mas ainda há pontos de profundos desacordos – e também o PS submeteu a sua versão à Assembleia da República.
Comecemos, pois, pelo princípio. Há muito que é “necessário atualizar o estatuto para o contexto atual” para “clarificar alguns aspetos da carreira”, desde categorias de investigadores ao regime de vinculação. Disso, Bruno Pereira, presidente da Associação Nacional de Investigadores em Ciência e Tecnologia (ANICT), não tem dúvidas. O próprio Ministério reconhece que o estatuto está “ultrapassado e desajustado”. Tanto que a revisão inclui a eliminação de categorias que já nem existem, como estagiário de investigação. Assim como prevê questões que antes não se punham, como a avaliação de desempenho dos cientistas para progressão na carreira ou a hipótese, facultativa, de aplicar o estatuto às instituições privadas sem fins lucrativos (que existem atualmente em muitas universidades para a gestão de projetos de investigação, um exemplo é o i3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde no Porto).
“O processo ainda está em negociação com o Governo, já houve alterações, de acordo com sugestões que fizemos, mas continua a haver pontos críticos”, nota Bruno Pereira. Para a ANICT são três. Primeiro, “a atribuição de serviço docente a investigadores integrados em instituições de ensino superior, que será basicamente obrigatória e uma decisão unilateral da instituição, ao invés de ser um mútuo acordo entre instituição e investigador”. Aliás, este aspeto merece também críticas de José Moreira, do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), que refere que “nesta versão, os investigadores passam a estar obrigados a dar quatro horas de aulas por semana, o que não é pouco e tem um problema grave, que é o de estarmos a misturar os dois papéis, a docência e a investigação, o que desvaloriza a atividade de uns e de outros e pode causar tensões”.
O segundo ponto crítico, para Bruno Pereira, está no regime de mobilidade intercarreiras, algo que não está previsto na proposta do PS e que se resume à possibilidade de transitar entre as carreiras de investigação e de docência dentro da mesma instituição, uma passagem que pode ser temporária e depois tornar-se definitiva. “Esse regime, embora possa ter vantagens, porque flexibiliza as funções – permite que uma pessoa se dedique à investigação quando tem mais acesso a financiamento ou à docência quando não o tem – inclui o ponto de consolidação definitiva, em que se transita de carreira de forma mais permanente e para isso basta a decisão da instituição e o requerimento do interessado, sem que haja um concurso.” O que é que isto significa, segundo o investigador? “Que não há um escrutínio sério sobre se aquela é a pessoa indicada para o lugar e existe o risco de jogos de interesse.”
O terceiro ponto tem a ver com o facto de a aplicação das normas do estatuto ser opcional em instituições privadas sem fins lucrativos, “que funcionam no perímetro das universidades e, embora sendo privadas, são financiadas por fundos públicos”. “Não faz sentido que estas instituições não sejam obrigadas a seguir as mesmas regras, cria desequilíbrio. No mesmo departamento, podemos ter investigadores ao abrigo da Função Pública e outros ao abrigo do direito privado. Embora estejam os dois a fazer exatamente a mesma coisa.”
Ainda assim, há aspetos positivos? Há. Por exemplo, a candidatura à posição de investigador de carreira ser aberta a todos os que tenham concluído o doutoramento. “Que é uma novidade em relação ao diploma do PS, no qual estava previsto que o investigador tinha de ter pelo menos cinco anos de experiência pós-doutoral antes de poder ingressar numa posição de carreira. O que não faz sentido. Podemos ter investigadores com currículos excecionais mal terminem o doutoramento.”
Há que salientar que, segundo comunicado do Governo, a atual proposta (com as alterações em relação à do anterior Executivo) já mereceu o apoio do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos.
A avaliação, a precariedade e um concurso
Ainda que os pontos críticos elencados até aqui também o preocupem, para o líder do Snesup e docente na Universidade do Algarve, José Moreira, é a avaliação do desempenho dos investigadores o grande calcanhar de aquiles. O estatuto atualmente em vigor é omisso em relação a isso, porque à época as progressões em qualquer carreira da Função Pública estavam ligadas apenas à contagem do tempo de serviço. Mas quando, há mais de 15 anos, a avaliação de desempenho, num regime de acumulação de pontos, entrou em jogo para se poder progredir na generalidade das carreiras da Função Pública, foram criadas normas específicas para carreiras especiais. Contudo, e ao contrário dos docentes de ensino superior, no caso dos investigadores essa norma nunca foi criada. “Por isso, desde então que não há progressões, não há mudança de categoria nem atualizações salariais. Os investigadores de carreira estão no mesmo escalão remuneratório há anos.” E quer o texto do Governo, quer o do PS, vêm propor o mesmo sistema de avaliação que já é aplicado aos professores do ensino superior, “que são avaliados em períodos de seis anos consecutivos e só progridem se tiverem tido nota máxima nesses seis anos, o que é extremamente injusto”. “O que defendemos é que a avaliação siga o regime de acumulação de pontos, como acontece no resto da Função Pública”, sustenta José Moreira.
Mas vamos ao busílis da questão. O facto de os investigadores científicos estarem há anos sem progressão na carreira nunca gerou grande polémica no espaço público, segundo o dirigente sindical, por uma razão: “Porque os que estão na carreira são uma minoria, são talvez menos de 10% do total de investigadores deste país.” A precariedade é o nome do meio da investigação em Portugal, as bolsas e os contratos a prazo ainda são a regra do emprego científico no nosso país. “E o estatuto não vai resolver a precariedade. Porque para os investigadores entrarem na carreira, primeiro é preciso que as instituições de ensino superior abram concursos para postos de trabalho por tempo indeterminado”, sublinha Bruno Pereira. O anunciado Concurso FCT-Tenure, o primeiro instrumento de financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia para o apoio à contratação de investigadores exclusivamente em lugares de carreira, abriu este ano 1100 posições permanentes por todo o país, o que é um grande avanço, reconhece, “e vai contribuir para começar a mitigar o problema”, mas “os investigadores são milhares e continua sem haver uma perspetiva de futuro”.
O ministro Fernando Alexandre já disse que o objetivo da revisão do estatuto “é tornar mais atrativa a carreira de investigação científica em Portugal e dar mais estabilidade e previsibilidade aos investigadores”. Porém, isso não será uma realidade enquanto a precariedade dominar o ecossistema científico. Pese embora o diploma da tutela inclua pontos que mereçam destaque, como a contratação por tempo indeterminado após período experimental de cinco anos, no caso de investigador auxiliar, e de três anos, no caso de investigador principal e de investigador-coordenador (além disso, na última versão, os anos que os investigadores trabalharam com contratos a prazo contabilizam para período experimental). Mas, para se chegar ao período experimental, é necessário que as instituições abram concursos para posições de carreira.
É inegável, segundo Bruno Pereira, que “a investigação e o sistema científico não têm sido uma prioridade dos diferentes Governos”. “O que é um erro. Sabemos que a investigação não dá frutos imediatos, mas a longo prazo é a forma de um país inovar, crescer e se desenvolver. Investir na ciência é investir no futuro. Têm-se feito avanços, transitámos das bolsas pós-doutoramento para contratos a prazo, mas é preciso criar condições de estabilidade.” Aliás, José Moreira diz que a grande luta é “a criação de lugares permanentes para pessoas que estão no sistema há anos, que já têm 40, 50 anos e se arrastam na precariedade”. E chama a atenção para o facto de, neste momento, haver cerca de dois mil investigadores cujos contratos (criados, ainda às mãos do antigo ministro da Ciência Manuel Heitor, ao abrigo de um programa transitório que deu contrato de trabalho, ainda que a termo, a doutorados que eram bolseiros há anos) vão chegar ao fim entre este ano e o próximo. “Não é razoável continuarmos a ter mais de 90% da comunidade científica com contratos a prazo, numa incerteza permanente. Estas pessoas têm currículos brutais, estão muitas vezes nos media, não são só números, não são só artigos publicados, aspiram ter uma vida normal e decente.”
Voltemos ao estatuto, que ao longo dos anos tem andado num vaivém, para a frente e para trás. Em 2018, o então ministro Manuel Heitor já tinha prometido a revisão, acabou por recuar. No governo de Passos Coelho a atualização também tinha sido adiada. Já este ano, antes da queda do Governo de António Costa, a proposta do PS ainda foi aprovada no último Conselho de Ministros, mas não chegou a ir ao Parlamento. Agora, além da proposta do Executivo de Luís Montenegro, que ainda não está fechada (haverá mais uma ronda de negociações com o setor), também o projeto do PS vai à Assembleia da República.
À “Notícias Magazine”, o grupo parlamentar do Partido Socialista explicou que o “diploma foi submetido no início desta legislatura, porque se trata de uma iniciativa do PS, tendo sido a proposta trabalhada pelo Governo anterior”. Os deputados socialistas garantem que não têm “nenhuma divergência em relação a esta matéria, considerando urgente o consenso na Assembleia da República para aprovação de um diploma que é fundamental para a Ciência em Portugal”. É isso que pedem investigadores e sindicatos: consenso político. “Para trazer alguma justiça a estas pessoas que foram tratadas de forma tão pouco digna nos últimos anos, e para termos um estatuto moderno que possa ser aplicado”, conclui José Moreira.