Joel Neto

Cantor de intervenção


É claro que, como qualquer pai, eu também tenho um ou outro momento “este garoto é mesmo esperto”. Mas penso não se dar o caso.
O facto é que o meu filho de 21 meses, tão bonito que facilmente se lhe perdoaria não ser mais nada senão deslumbrante, escreveu hoje a sua primeira canção de protesto. Quando ma deu a ouvir ainda só tinha uma frase musical, dó ré fá mi, duas colcheias, uma semínima e uma mínima, mas eu percebi que ele ainda estava naquele momento de domingo à tarde, sentado ao piano, pronto a repetir as quatro notas ad nauseam desde que, algures no futuro, a melodia começasse a deslindar-se.
Em todo o caso, já havia letra:
– Não qué Biááá…
E a circunstância de ele continuar a repeti-la, sempre as mesmas quatro notas, sempre o mesmo tom:
– Não qué Biááá… Não qué Biááá…
Comoveu-me pela persistência ainda antes de me comover pelo rasgo (bem, pronto, vocês perceberam).
De resto, eu já conhecia o verso. Todas as manhãs fazemos um trajecto parecido com aquele, e em que a dada altura ele começa a lamuriar-se:
– Não qué Biááá! Pai, não qué Cálaaa!
Em resumo, não quer ir para a creche, onde tem duas cuidadoras favoritas, a Bia e a Carla, mas apesar de tudo não favoritas o suficiente para que aceite deixar-me ir trabalhar sem dar um mínimo de luta.
Só que desta vez não virámos à esquerda. E, seja como for, o busílis era a música. Ele tinha acabado de transformar a sua reivindicação em música, aliás trauteada sem histerias, como se o simples facto de se tratar de música a dotasse de suficiente persuasão para resistir eficaz ao menos como aviso.
Fiquei tão vaidoso que liguei disfarçadamente o telefone, para o filmar. Ele percebeu, viu-se ao longe no ecrã e riu-se, como sempre:
– Bebé Tutu!
Mas, mesmo assim, não me contrariou e, passados alguns segundos, retomou o seu:
– Não qué Biááá…
No exacto dó ré fá mi de antes, duas colcheias, uma semínima e uma mínima, para minha grande vaidade.
Ao chegar a casa mostrei o filme à Marta, que olhou para mim com certa compaixão.
– Que giro, amor.
E eu, para o miúdo:
– Canta, Artur! A mãe não está a perceber bem.
Nada.
– Canta, amor! Não qué Biááá…
Mas ele só voltou a cantar quando a mãe já tinha tornado a sair para a livraria. Entoou:
– Papá papá…
Dó sol fá mi, uma colcheia, uma semínima, outra colcheia e uma mínima, o mesmo compasso quarternário de antes, mas com novas tónicas. Era uma nova frase musical. Portanto – calculei –, a demanda é o refrão, o demandado sou eu e venho na estrofe!
Infelizmente, já não consegui filmar. E agora estou aqui à espera da Marta sem saber bem como hei-de dizer-lhe que o nosso filho é um génio, apesar de nós termos jurado um ao outro que nunca seríamos essas pessoas.