Margarida Rebelo Pinto

Bonecas de trapos


O espanto e a náusea que senti quando me deparei com o caso de Gisèle Pelicot há cerca de duas semanas bloqueou temporariamente a minha capacidade de escrever sobre o assunto. É do senso comum que o Mundo sempre foi um lugar perigoso para as mulheres. Os abusadores e os violadores estão em todo o lado: na escola, no jardim, nos transportes públicos, na vizinhança, na família. O caso de Gisèle está a chocar a opinião pública, dadas as suas peculiaridades. Durante cerca de dez anos, o marido recorreu ao uso de medicamentos para a violar e pôr o seu corpo à disposição de outros homens que recrutava num site da Internet, hoje extinto, na residência do casal, na comuna francesa de Mazan. Dominique Pelicot filmou e fotografou os atos ignóbeis, encontrados em vários computadores e discos externos, perfazendo mais de 200 violações. Ao todo foram 82 homens, alguns reincidentes. A investigação deste caso abjeto identificou 52, dos quais 51 comparecem agora no tribunal criminal de Vaucluse para enfrentar a acusação de violação agravada, num extenso processo que irá decorrer até dezembro.

Gisèle, que declarou em tribunal ter sido tratada como uma boneca de trapos, só voltou a ver as imagens quatro anos depois de ter sido confrontada com o pesadelo. Até ao dia em que foi prestar depoimento à polícia, no outono de 2020, acreditava ter um bom casamento. Definiu o marido como um “tipo impecável”. Não se lembra de nenhum violador, exceção para um amigo do marido que era visita de casa, com quem este fazia passeios de bicicleta e que ela cumprimentava cordialmente quando se cruzavam na padaria. Os contornos deste caso sinistro assemelham-se a um filme do mais profundo terror. Se Dominique Pelicot não tivesse sido denunciado por filmar com o seu telemóvel por debaixo das saias de jovens e mulheres num supermercado, o que levou à apreensão do mesmo, talvez os seus crimes nunca chegassem a público.

A submissão química é uma prática definida pela OMS como a administração de substâncias psicoativas a uma pessoa sem o seu consentimento para fins criminais de natureza económica ou sexual. A definição remete-nos para cenários de noite, de bares e de copos, onde os abusadores atuam, quais caçadores furtivos, em busca de carne para canhão. A triste expressão “Boa noite Cinderela”, como é popularmente conhecida, ensombra as mentes vigilantes de pais e de mães de adolescentes. Trata-se de deitar numa bebida um conjunto de substâncias psicotrópicas que levam a vítima à inconsciência. Em qualquer dos casos, o princípio é o mesmo: a total objetivação do corpo feminino. Esta objetivação é transversal à história da humanidade. As mulheres sempre foram vendidas, traficadas ou usadas como moeda de troca, objeto de prazer, ou para qualquer fim que servisse o bicho homem. É uma questão ancestral e eterna. Como combater a barbárie que os homens infligem às mulheres continua a ser um dos maiores desafios da Humanidade, infelizmente sem luz ao fundo do túnel.