Aziza saiu do Afeganistão. “A nossa liberdade é a nossa dignidade”

Aziza Akrami é afegã, chegou a Portugal em novembro de 2023 (Foto: Adelino Meireles)

Aziza Akrami deixou o seu país há um ano, trabalhava num banco, largou tudo, partiu. Veio estudar para Portugal, não tem documentos, autorização de residência, para procurar emprego e recomeçar uma vida. Nasceu em Panjshir, o último reduto de resistência aos talibãs, e morava em Cabul. Determinada, acredita na paz, e conta a sua história em palavras e em desenhos.

Aziza Akrami conta a sua história como se a sua voz carregasse muitas vidas de raparigas e mulheres do seu país. Tem 24 anos, licenciou-se em Sistemas de Informação de Gestão na Universidade de Cabul, dedicou-se a várias organizações humanitárias antes de deixar o Afeganistão. Uma delas criada por si e pela sua irmã, um programa de educação em saúde e oferta de serviços básicos para crianças e mulheres de comunidades vulneráveis, depois da ocupação dos talibãs. “Eu quero partilhar a minha história porque muita gente não compreende como é difícil… eu era uma aluna, estudava, ia para todo o lado. E num dia a vida muda completamente. Não conseguimos sair de casa, sentimo-nos numa prisão, perdemos tudo.” “É muito duro para muitas mulheres, para minhas amigas, imaginar que alguém pode entrar em casa e levar tudo o que têm, os seus sonhos. Sem liberdade, não há dignidade.”

No início de uma tarde, num dia em que o céu cinzento contraria o calor que se sente, Aziza surge vestida de preto, discreta, cabelos soltos e compridos, na Porto Business School, onde frequenta o mestrado internacional em Administração de Empresas há um ano. É importante contar a sua história? Sim, é, responde. “Vejo muitas vozes acerca dos direitos mulheres e do que se passa no Afeganistão, muitos hashtags e histórias no Instagram e nas redes sociais. Mas nada está a acontecer, nenhum trabalho está a ser feito”, observa. Nada de muito profundo, em sua opinião.

Quase no fim da conversa, fala dos seus desenhos, da sua arte que ainda não sabe como classificar, secreta durante algum tempo pela timidez, e alguma vergonha, de partilhar. Nessas figuras, traços e cores, também se lê a história de Aziza. Uma bailarina em pontas com cabelo longo pintado de várias cores. Um beco cinzento, apertado, e uma pessoa de costas. Uma cidade que são duas em contraponto no mesmo papel. De um lado, casas coloridas e um céu azul. Do outro, no subsolo, casas esbatidas e um céu negro. Guarda fotografias desses desenhos no seu telemóvel.

Aziza desenha mulheres livres e aprisionadas, cidades luminosas e cidades cinzentas, o que se passa no seu país

No dia em que os talibãs retomaram o poder, Aziza tinha saído de casa para ir para o escritório de um banco, onde trabalhava na área de recursos humanos há cerca de seis meses. Logo que entrou, dizem-lhe que tem de voltar para casa, o governo caiu, ninguém sabia o que ia acontecer. “Não esqueço cada passo que dei quando saí do escritório. Foi muito duro para mim. Toda a gente na rua, a tentar voltar para casa, tudo mudava da noite para o dia, não comemos nada durante todo o dia, durante uma semana, não consegui dormir.” “Estávamos todos assustados, a situação era de tal forma perigosa que os talibãs podiam entrar em tua casa, matar-te e ninguém podia dizer nada. Faziam buscas em toda a cidade, revistaram todas as casas, se encontrassem alguma coisa suspeita, prendiam as pessoas.” Aziza escondeu a sua documentação. Há dois meses, soube que uma das suas amigas ficou sob custódia durante um dia por não ter a cara totalmente tapada.” Da noite para o dia, tudo mudou. “Neste momento, é muito difícil viver no Afeganistão, é muito arriscado para as mulheres.”

Aziza chegou a Portugal, ao Porto, a 15 de novembro do ano passado. Era noite, nove da noite. Estava sozinha. “Sentia-me muito cansada, nem consegui tirar a roupa, deitei-me na cama”, recorda. Na cama da residência universitária. No dia seguinte, uma colega, também afegã, que tinha vindo duas semanas antes, bateu à porta do seu quarto. Tinham aulas na Porto Business School. Aziza sentia que precisava de uma semana para descansar e colocar as coisas no lugar, arrumar a cabeça, as emoções, os pensamentos. Fisicamente. Emocionalmente. Mas havia exame dentro de dia, foi às aulas, e foi tudo muito rápido. Tinha de se preparar para o teste. O tempo, mais uma vez, a fugir-lhe dos pés. Tudo a acontecer demasiado depressa.

Viajou diretamente do Irão para Portugal sem voltar a casa. Não havia outra forma. “Fui com o meu irmão para o Irão, não autorizavam mulheres a viajar sozinhas, ficámos duas semanas e meia.” Foram tratar do visto para estudar no Porto. “Não havia embaixadas abertas, vim diretamente para Portugal.” Tratou tudo num mês. “Para a minha família, foi muito difícil, mas não havia outra opção. O que ia fazer se ficasse no Afeganistão? Se fosse presa, o que aconteceria à minha família?” Explicou-lhes à mãe, ao pai, ao irmão e às irmãs, que era arriscado ficar e partiu. Eles compreenderam, sofrendo.

Soube, entretanto, que não pode voltar ao Afeganistão durante cinco anos, não lhe permitem o regresso, são regras de proteção internacional. Ainda não disse à família. O que diz, nos contactos que mantêm, é que vai voltar um dia, para não se preocuparem.

Começar do zero, acreditar na paz

Na memória, Aziza volta a Panjshir, onde nasceu e onde passava todos os verões com a família desde que se mudou para Cabul. Uma aldeia a nordeste da capital, num vale de montanhas escarpadas, o último reduto de resistência ao avanço do regime opressivo dos talibãs. Uma fortaleza natural, feita de falésias e desfiladeiros, que não sucumbe. A única província não controlada pelos talibãs. “É um dos sítios mais seguros do país nos últimos 20 anos, pessoas muito pacíficas que não suportam a guerra, montanhas à volta, um modo de vida simples”, descreve. É feita dessa fibra, de coragem, de resistência, de não se vergar. “Continuo a acreditar na liberdade. Nesse sítio muito pequeno, de onde sou, não suportamos nenhuma guerra, por isso, vivemos 20 anos em paz, quando o resto do país estava a ferro e fogo. Cresci com esta mentalidade de não suportar a guerra e viver em paz.” Nota-se na sua postura determinada. “A nossa liberdade é a nossa dignidade”, reforça na sua voz que é firme. Mesmo entre silêncios, mesmo quando nos seus olhos se vislumbram emoções.

Aziza nasceu em Panjshir, onde os talibãs não conseguem entrar

Quando Aziza nasceu, o regime talibã tinha acabado de sair do poder, as meninas podiam voltar à escola, as mulheres podiam trabalhar, depois de anos de proibição de mostrar a pele em público, de sair de casa sem um acompanhante homem. Era uma criança curiosa, irrequieta, boa aluna, com muita energia. Sempre focada em estudar, ir para a universidade, expandir conhecimentos, interessada em gestão, em negócios, em tecnologia, em sustentabilidade. Aprendeu inglês, envolveu-se em organizações humanitárias não governamentais, uma norueguesa de cooperação internacional de apoio a comunidades pobres, outra canadiana centrada nos direitos das mulheres afegãs, ajudando a conseguir bolsas de estudos e subsídios para que as raparigas do seu país tivessem oportunidade de investir na sua educação.

De repente, a vida virou do avesso, o presente em perigo, o futuro incerto. “Mesmo com muitos conflitos no meu país, não via drama com o que se passava. Sim, havia guerra, mas tínhamos uma vida que nos parecia normal. Podíamos ir à escola, sair de casa, sair do país sem um homem atrás, nos nossos ombros, tudo a moldar-se para as mulheres trabalharem, nesses princípios básicos da liberdade para as mulheres, como se tudo estivesse bem.” Estava e deixou de estar. E isso foi duro, custou-lhe fazer a mala, deixar a família.

A jovem afegã estudou na Universidade de Cabul e envolveu-se em organizações humanitárias

Aziza ainda trabalhou em casa durante algum tempo. “Mesmo assim, era muito perigoso, estavam a prender mulheres no trabalho, a situação era muito arriscada para mim.” Entrou em contacto com organizações que dão bolsas de estudos para mulheres. E chegou a Portugal. “A fuga de um país para outro foi mais do que uma bolsa de estudos para mim, foi mudar a minha vida completamente.”

Continua ligada ao trabalho humanitário, na Blossom Hill Foundation, organização norte-americana sem fins lucrativos que investe em programas de educação para a paz, muito focada em ajudar crianças afetadas e deslocadas por causa de conflitos, sobretudo no Médio Oriente. É uma maneira de dar o seu contributo e apoiar outros refugiados. Faltam-lhe dois meses para terminar o MBA. Não tem documentos, autorização de residência, número de utente do serviço público de saúde. “Sem documentos é muito difícil arranjar um local para ficar, um emprego”, desabafa. Está a perder oportunidades, precisa de tempo para aprender português, a bolsa está a acabar, sem apoio é difícil aguentar-se durante muito mais tempo. Por enquanto, não pode e não pensa voltar ao seu país. “Se voltar, tudo o que aprendi não posso usar. As mulheres estão presas nas suas casas e eu não quero ser prisioneira.”