Joel Neto

Avô


A primeira vez que alguém o verbalizou foi um senhor, ex-combatente, que eu cheguei a ter a tentação de enfiar na gaveta dos fascistas. Informou-me de que uns dias antes tinha passado na livraria a comprar um livro sobre a Guerra Colonial, o que naquela idade costuma constituir um sinal vermelho, e fez um comentário qualquer sobre os africanos.
Não lhes chamou pretos, nem turras, mas englobou-os num grupo indistinto, com o qual – não memorizei os pormenores – foi pelo menos condescendente. Estudei-o com a atenção possível, enquanto me confirmava que tinha combatido no Ultramar, me dava a entender que a sua vida não tornara a ter um momento tão alto como esse e assumia que, desde então, a própria humanidade nunca mais deixara de piorar.
Até que olhou o Artur, sentado ao meu ombro como um papagaio enquanto atravessávamos a Rua Direita, e sorriu com bonomia:
— É seu neto?
A segunda foi uma senhora americana, descendente de emigrantes açorianos na Califórnia, e para qual o simples facto de se encontrar naquela livraria, para cuja existência o Diniz a alertara – isto é, até que ela própria começara a monitorizar a respectiva actividade através da Internet –, já tinha bastante de aspiracional. Olhou o Artur:
— Ah, os netos são a melhor coisa…
E, como o disse em inglês, eu não tive sequer a oportunidade de me tentar convencer de que estava a falar do meu sobrenome, do nosso sobrenome, porque o nome Neto e o grau de parentesco neto dificilmente teriam noutra língua a mesma grafia, como têm na portuguesa.
E a terceira foi uma senhora australiana, na verdade residente nos Estados Unidos também, e que até hoje não sei se de facto fez um julgamento da minha idade ou se se limitou a registar uma curiosidade. Meneou a cabeça:
— Vivo mais ou menos entre Los Angeles e Melbourne. Tenho dupla nacionalidade, mas hoje em dia só volto à Califórnia por causa dos netos. Você sabe como é…
Quase lhe disse:
— Não, não sei como é. Não tenho netos.
Mas depois achei que ia ser antipático, e normalmente a única maneira que tenho de ajustar contas com quem se se arma em tonto comigo é deixá-lo consumir à vontade na casa.
De resto, eu podia pôr-me agora aqui a perorar sobre os padrões. Duas americanas. Duas mulheres pelo menos de meia-idade. Um velho saudoso de quando andava aos tiros – se não passam dessas, as pessoas que me vêem avô, então talvez nem tudo esteja perdido.
Mas prefiro ater-me ao essencial. Das três pessoas que, até hoje, tiveram a ousadia de partir do princípio de que eu era avô do Artur, nenhuma foi o Artur propriamente dito. Para o Artur, eu sou jovem e forte, mesmo poderoso, e a sua sorte é pelo menos tão grande como a da próxima criança, cujo pai até pode não ser capaz de dar três toques numa bola sem a deixar cair.