Há dois anos, nos EUA, um “terramoto” no Supremo delapidou o que parecia garantido. Agora, no Brasil, em Itália, até no G7, há novos sinais de alerta. E os receios adensam-se. Estará a história prestes a reescrever-se? E em Portugal, o que podemos esperar? Investigadores e ativistas alertam para “sinais preocupantes”. E insistem que “nenhum direito é garantido”.
No Brasil, está em cima da mesa um projeto de lei para equiparar o aborto após as 22 semanas de gestação ao crime de homicídio – mesmo que a gravidez resulte de uma violação. Em Itália, na cimeira do G7, a declaração final conjunta foi omissa em relação ao direito a um aborto legal e seguro, por manifesta censura de Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana. Antes, em abril, o seu Governo já tinha aprovado, dentro de portas, uma lei que permite o acesso de grupos antiaborto aos centros públicos onde são feitas as interrupções voluntárias de gravidez (IVG). Para que as mulheres possam “receber aconselhamento”. Três episódios recentes que fazem soar os alarmes na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e inspiram questões prementes: até que ponto podemos assistir, num futuro próximo, a retrocessos nesta área? Que papel pode desempenhar neste processo uma extrema-direita que segue em crescendo? E quanto a Portugal, estará a salvo de recuos numa lei que, na prática, já se traduz em inúmeras dificuldades para quem pretenda interromper uma gravidez indesejada?
Vale a pena, antes de mais, olhar para o panorama global e para as dinâmicas de evolução das leis à volta do globo. De acordo com o Center for Reproductive Rights, uma organização de direitos humanos que há mais de 30 anos luta para que os direitos reprodutivos estejam consagrados na lei, há hoje 77 países (onde vivem cerca de 34% das mulheres em idade reprodutiva em todo o Mundo) que permitem o aborto a pedido da mulher. É o caso de Portugal e de grande parte dos países europeus, do Canadá, da Argentina, da Austrália, entre outros. Note-se que o limite gestacional definido varia consoante o país. Há ainda 12 países, como a Grã-Bretanha, a Irlanda, a Índia ou o Japão, que permitem o aborto por razões sociais ou económicas. Num plano mais restritivo, há 47 países (como a Polónia, o Paquistão, o Peru ou a Bolívia) que permitem o aborto para preservar a saúde da mulher – incluindo a saúde mental, em 25 destes países. As limitações apertam-se ainda mais no caso dos 44 estados que só permitem a interrupção da gravidez se a vida da mãe estiver em risco. É o caso do Irão, do Brasil ou da Venezuela. Há ainda 21 países onde nem esta possibilidade está contemplada, sendo o aborto totalmente proibido. É o que acontece no Egito, no Iraque ou na Nicarágua, entre outros. Há ainda o caso dos EUA e do México, onde a legislação varia consoante o estado, como veremos mais à frente. Contas feitas, quatro em cada dez mulheres enfrentam leis restritivas em matéria de aborto.
Ainda assim, como salienta Cecília Vieira, ativista da Women Help Women, organização não-governamental que providencia serviços online de aborto farmacológico e contraceção por todo o Mundo, “se olharmos a questão apenas pela lente das leis, nos últimos 30 anos, houve grandes progressos”. “Foram muitos mais os países onde as leis mudaram no sentido de diminuir os entraves do que aqueles em que pioraram.” Os números do Center for Reproductive Rights comprovam-no. Nas últimas três décadas, mais de 60 países eliminaram restrições (mesmo que, nalguns casos, as mudanças tenham sido pífias). No polo oposto, registaram-se retrocessos em quatro países: Nicarágua, El Salvador, Polónia e EUA. Mas isto se analisarmos a questão “apenas pela lente das leis”, como frisava Cecília. Para lá dos quadros legais em vigor em cada país, há dificuldades várias que se levantam no dia a dia das mulheres que pretendem abortar. Teresa Melo, investigadora da Loughborough University (Inglaterra) que se tem debruçado sobre a questão do aborto e dos direitos reprodutivos, defende que, “apesar dos avanços graduais ao longo dos anos à escala mundial, nenhum país conseguiu ainda garantir plenamente os direitos humanos à saúde sexual e reprodutiva e à autonomia das mulheres e raparigas”.
Depois, há o “terramoto” ocorrido em 2022, com epicentro nos EUA, que trouxe de novo à discussão uma questão que, pelo menos numa parte do globo, parecia ultrapassada. Teresa Melo sublinha este ponto. “Dada a influência dos Estados Unidos junto às denominadas democracias ocidentais, a revogação da decisão Roe vs. Wade pelo Supremo Tribunal foi um marco que reacendeu o debate sobre o aborto, sobretudo pelo seu pendor moralista e conservador, que se prevê que venha a repercutir-se noutros países.” Lúcia Pestana, investigadora e vice-presidente da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens (REDE), concorda. “O que se está a passar nos EUA é um indicador do que se vai passar na Europa, sobretudo à medida que mais países assistem ao crescimento da extrema-direita.”
Voltando ao terramoto. A 24 de junho de 2022, o Supremo Tribunal americano reverteu o icónico precedente Roe vs. Wade, litígio judicial de 1973 que esteve na origem de uma sentença histórica: a Constituição dos EUA deveria proteger a liberdade individual das mulheres grávidas e garantir-lhes a opção de fazer um aborto sem restrições governamentais, assim se entendeu. A lei vigorou durante quase 50 anos. Depois, com a decisão de 2022, o que até aí era considerado um direito constitucional passou a estar nas mãos de cada estado. A esta mudança abrupta não foi alheio o papel de Donald Trump, que liderou o país entre 2017 e 2021 (agora está outra vez na corrida à presidência) e que, nesse período, nomeou para o Supremo três juízes de tendência conservadora. De lá para cá, as mudanças são notórias. Entre os 50 estados que compõem os EUA, há já 21 em o que aborto é ilegal ou restrito, não havendo, em vários casos, exceções para violações, malformação do feto ou até para casos em que haja risco de vida da mãe.
Uma mudança de paradigma cujas ondas de choque parecem, aos poucos, alastrar-se. É Sérgio Arce quem o diz. Integra o Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho e tem-se dedicado a fazer investigação na área dos direitos humanos no geral e dos direitos da criança em particular, o que se cruza com este tema. “Há muitos casos de meninas que são vítimas destas restrições”, assinala. Numa análise mais ampla, entende que estamos a assistir, nos últimos anos, a um “retrocesso dos direitos humanos a vários níveis”. E que isso não pode ser dissociado dos ventos que sopram dos EUA. “Um dos motivos para que tal aconteça é sem dúvida a reversão da sentença Roe vs. Wade, que tem ajudado a que certos movimentos e organizações endureçam o discurso de ódio. Não só contra o aborto, mas contra as pessoas vulneráveis no geral.” O impacto faz-se sentir também a outros níveis. O investigador lembra um relatório recente da Amnistia Internacional, que mostrava como a decisão do Supremo em 2022 tem levado várias redes sociais a ocultar informação relevante sobre como aceder a uma IVG. “É um retrocesso muito grande”.
O peso da extrema-direita
A investigadora Teresa Melo avança com outra possível explicação para a ameaça de retrocesso que parece pairar com crescente veemência. “Uma das hipóteses é o crescimento e a ascensão dos grupos de extrema-direita e a aliança destes com as forças mais ultraconservadoras da Igreja, que investem continuamente na tentativa de fazer do aborto um assunto que pertence à esfera moral e religiosa e não um direito à saúde, à autonomia e à vida. Por isso, recorrem frequentemente ao punitivismo para fragilizar a política pública do acesso ao aborto.” Há já vários exemplos disso. Para lá do caso americano, vale a pena recordar o caso da Polónia, que, em janeiro de 2021, com o partido de extrema-direita Lei e Justiça (PIS) no poder, restringiu ainda mais a lei em vigor, impedindo a interrupção da gravidez em caso de malformação do feto. O aborto passou então a ser permitido apenas em caso de violação ou de a mãe correr risco de vida, e mesmo assim com evidentes fragilidades – no final de 2021, deu que falar o caso de Izabela, que acabou por morrer de choque sético, na sequência da morte do feto, com uma malformação. Quando os médicos puderam intervir, era já demasiado tarde para salvar a vida da mãe. Na Hungria, onde não havia alterações à lei do aborto desde 1992, houve novidades em 2022, pela mão de Viktor Orbán, líder do Fidesz (também de extrema-direita). Apesar de não terem sido limitadas as circunstâncias em que é possível avançar com uma IVG, as mulheres deparam-se agora com um obstáculo extra: só podem fazer um aborto se tiverem um relatório médico que declare que foram confrontadas com o batimento cardíaco do feto.
Na Argentina, onde só em 2020 o aborto passou a ser legal (durante as primeiras 14 semanas de gestação), a chegada de Javier Milei ao poder tem feito tremer os defensores dos direitos das mulheres. Até ver, não houve alterações à lei, mas o facto de vários deputados do Partido Libertário, liderado por Milei, terem apresentado uma proposta para criminalizar o aborto e de o próprio presidente, numa intervenção numa escola, o ter considerado uma forma de “homicídio qualificado”, não tem inspirado grande confiança. Já em França, a maioria dos deputados da União Nacional votou recentemente a favor da inclusão do direito ao aborto da Constituição do país, num gesto que tem sido lido como uma estratégia para limpar a imagem do partido e facilitar o acesso ao poder. Ainda assim, Marine Le Pen fez questão de deixar uma ressalva sintomática. “Vamos votar esta reforma porque não nos representa nenhum problema, mas não podemos falar de um dia histórico. É um dia explorado por Emmanuel Macron [presidente francês] para a sua própria glória.”
Mas, afinal, é ou não possível estabelecer relação entre os partidos de extrema-direita e a oposição à interrupção voluntária da gravidez? O politólogo António Costa Pinto não tem dúvidas. “Diria que potencialmente, programaticamente, culturalmente, a extrema-direita exprime sempre valores conservadores. Mas o cenário não é homogéneo, nalguns casos os grupos cristãos fundamentalistas pró-vida têm um peso muito maior do que noutros.” Depois, há o peso da estratégia. “A diferença da extrema-direita para a direita radical populista é que esta é menos ideológica, responde mais a atitudes de cidadania. Ou seja, se na sociedade estiverem vincados fortes valores antiaborto, os partidos vão ativar politicamente estas questões. Se não é o caso, não as ativam. Sobretudo em campanhas eleitorais.”
Distinção polémica em Coimbra
Algo que não descansa quem se bate pelos direitos das mulheres. Como Manuela Tavares, fundadora e dirigente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) e um dos rostos icónicos da luta feminista em Portugal. E, por consequência, da luta pelos direitos reprodutivos. Integrou a Campanha Nacional pelo Aborto e a Contraceção ainda no final da década de 1970, andou a recolher assinaturas para que a despenalização pudesse vingar, esteve em debates “terríveis”, em que “as forças do não levavam bonequinhos de plástico e diziam que um bebé às dez semanas era assim”, granjeou, pelo caminho, um sem-fim de anticorpos. Anos e anos de luta que, em junho de 1998, esbarraram num referendo em que o “não” venceu, com 50,9% dos votos. Foi preciso esperar quase mais dez anos (fevereiro de 2007) para ver, por fim, o “sim” triunfar, agora com mais de 59% dos votos. Na sequência desse segundo referendo, seria então aprovada a lei n.º 16/2007, que, no fundo, veio excluir a ilicitude da prática de IVG por decisão da mulher até às primeiras dez semanas de gestação. E que se mantém em vigor até hoje. Manuela Tavares não se conteve, chorou como uma menina, ainda hoje não hesita em dizer que “foi uma alegria tão grande como o nascimento da filha” (Paula Tavares, investigadora e ativista social e ambiental, entretanto falecida num acidente de viação). Na altura, em 2007, não lhe passava pela cabeça que, alcançado aquele marco tão histórico, se pudesse sequer instalar qualquer ameaça de retrocesso. Agora, vê as coisas de forma distinta. Diz-se mesmo “extremamente preocupada” com o empoderamento da extrema-direita e os sinais que vão chegando de outras latitudes.
E voltamos ao princípio: estará Portugal a salvo de eventuais recuos? Confrontada com a questão, a presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), Sandra Ribeiro, mostrou-se indisponível para responder, por ter uma agenda repleta. Tem então a palavra Manuela Tavares. “Nada é garantido, temos de estar sempre de sobreaviso.” O tema não inspira hoje fraturas profundas como as que dividiram o país durante décadas, mas, volta e meia, vai surgindo na agenda. Teresa Melo, investigadora, recorda que ainda em 2015, durante o Governo liderado por Pedro Passos Coelho, foram aprovadas medidas no sentido de obstaculizar a IVG, entre as quais “a implementação de taxas moderadoras obrigatórias, a imposição do aconselhamento psicológico obrigatório”, entre outras (algo que seria revertido pouco depois, pelo Governo da geringonça). O tema voltou à agenda durante a campanha para as últimas legislativas, em fevereiro deste ano, quando Paulo Núncio, vice-presidente do CDS e candidato da Aliança Democrática, colocou em cima da mesa, durante um debate promovido pela Federação Portuguesa pela Vida, a possibilidade de realização de novo referendo. Luís Montenegro, líder da Aliança Democrática (AD), apressou-se, porém, a tranquilizar as hostes. “Não vamos mexer na lei do aborto, é assunto arrumado.” No entanto, em abril, já como primeiro-ministro, mostrou-se contra a inclusão do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, invocando que tal ato poderia causar um “desequilíbrio jurídico”, por prevalecer apenas o direito à autodeterminação da mulher. A tomada de posição valeu-lhe críticas contundentes, da Esquerda, sobretudo. Manuela Tavares não está convencida. “Muitas vezes dizem-se certas coisas para o eleitorado não fugir e depois, no momento certo, acaba por se ceder”, aponta. Já o Chega tem tido, para já, uma posição algo contida em relação à questão. Depois das declarações de Paulo Núncio, durante a campanha, André Ventura disse mesmo que não estava interessado em voltar a referendar o assunto. No entanto, no manifesto político fundador do partido, enfatiza-se “a dignidade da pessoa humana e a vida desde o momento da conceção”.
Entretanto, há “sinais preocupantes” que vão chegando, realçam as ativistas. Lúcia Pestana, investigadora no Nova Centre for the Study and Gender, Family and Law (Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa), lembra o caso, noticiado pelo “Público”, de uma jovem portuguesa que em 2020 foi condenada por fazer um aborto às oito semanas de gravidez, fora do SNS. “Uma mulher foi condenada não por ter ultrapassado o prazo legal, mas porque não se sujeitou aos entraves prescritos por lei, como o período de reflexão.” Manuela Tavares tem outro episódio a inquietá-la: a atribuição, por parte da Câmara Municipal de Coimbra, da “Medalha de Mérito Solidariedade Social” à Associação de Defesa e Apoio à Vida. Na página do município, justifica-se a condecoração com o facto de a IPSS, criada em 1998, se ter tornado “ao longo dos últimos anos numa instituição de apoio social de referência para mulheres grávidas e mães em situação de vulnerabilidade”. Já na página da associação, destaca-se que esta tem por finalidade “o apoio à família, a defesa e a promoção da vida humana e da dignidade da mulher” e vinca-se o apoio à iniciativa de cidadãos europeus “Um de nós”, que apela à União Europeia “para que deixe de financiar as atividades que resultem na destruição de embriões humanos”. Manuela Tavares não se conforma. “Num momento em que existem ataques à IVG em vários países, estar a promover associações antiaborto é algo despropositado e tem um sentido ideológico claro, contra a lei do aborto em Portugal”, acusa. Agarra-se, no entanto, a uma perceção que a vai animando. “Acho que a sociedade está hoje mais desperta para estes direitos, que levaram muito tempo a conquistar. As mulheres passaram a ter na sua vida outras opções e não me parece que estejam dispostas a admitir que as coisas voltem atrás, aos abortos clandestinos. Estão mais dispostas a lutar e a denunciar.”
Tanto mais quando há dificuldades gritantes que evidenciam lacunas claras na aplicação da lei. Ainda no ano passado, o DN noticiou que, entre os 42 serviços de obstetrícia e ginecologia do SNS, havia seis em que não estava disponível o serviço de IVG e sete em que os médicos só faziam abortos em dadas condições, não sendo possível a interrupção a pedido da mulher. Cecília Vieira, da Women Help Women, é muito crítica. “Em Portugal, há um direito, que é um mini-direito no papel, mas depois os prazos não são respeitados, há hospitais que não estão a fazer o papel deles e demasiados entraves.” Lúcia Pestana também insiste neste ponto, realçando o caso dos Açores, onde, por não haver médicos disponíveis para realizar IVG, as mulheres estão obrigadas a viajar para o continente. “A nossa lei é altamente restritiva. Conjuga o menor número de semanas da União Europeia com a obrigatoriedade do período de reflexão e da aprovação não de um, mas de dois médicos. Sendo que o aborto só pode ser feito através do SNS, onde há taxas altíssimas de objeção de consciência, o que na prática invalida o direito que está consagrado na lei. Podemos e devemos pensar na ameaça de regressão de direitos, porque ela existe sempre. Mas a verdade é que o estado atual das coisas já é suficientemente mau.”