As fraudes das empresas, o desalento dos trabalhadores

“Senti-me diminuída enquanto mulher, enquanto trabalhadora, por não ter salário, por não poder pagar as minhas contas”, confessa Ana Filipa Gomes, jornalista e aluna de doutoramento (Foto: Artur Machado)

Falsas ofertas, anúncios estranhos nas redes sociais, pedidos de dinheiro para uma entrevista, promessas de mundos e fundos. Mensagens e contactos sem uma voz, sem uma cara. Pedem-se dados pessoais e números bancários. Contratos ilegais, encerramentos sem explicações, salários por pagar, direitos por cumprir. O trabalho é sagrado? Nem sempre. Há vítimas que calam, há vítimas que resistem.

Davide Salvi tem um novo emprego, está empenhado e motivado, mas na sua memória recente vive uma experiência que nunca pensou passar. Há um ano, saiu do seu país, Itália, deixou o trabalho como designer de instrumentos médicos, procurou uma ocupação e um sítio a que pudesse chamar casa. Fez as malas com trabalho garantido numa multinacional de call center, em Lisboa, voo pago, número fiscal e número da segurança social tratados, quarto para ficar. Quando aterra, a empresa tinha mudado de mãos, para uma outra multinacional da mesma área. O emprego mantinha-se, indicaram-lhe um quarto para ficar a 280 euros por mês debitados do seu salário.

“A minha história em Lisboa começa com um episódio muito difícil”, conta. Foi há um ano. “Trabalhava para uma empresa que me fornecia um quarto num apartamento partilhado, mas sem um contrato regular.” Em março deste ano, ficou doente, com gripe, febre, dores de garganta e de cabeça. Ainda trabalhou uma semana, não aguentou, ficou em casa, avisou dos motivos da ausência.

A resposta chegou com a ordem de sair do quarto em 72 horas. Ficou sem chão, desesperado, não tinha para onde ir, contactou o sindicato. Por duas vezes, entraram-lhe no quarto para o obrigarem a sair, por duas vezes, o sindicato agiu, bateu o pé, deixou claro que era um ato ilegal, se não havia ordem de despejo do tribunal. “A empresa tentou despejar-me injustamente devido a duas faltas injustificadas, apesar de eu sempre ter tido um desempenho elevado.”

À terceira foi de vez. Estava no trabalho e recebeu uma mensagem do colega do apartamento, tinham trocado a fechadura, levado as suas coisas para um armazém da empresa. A confirmação chegou por email: estava sem quarto. “Foi uma situação dramática para mim. Tive de procurar abrigo, dormindo no carro, em albergues e até na rua”, recorda. “Apesar das tentativas do sindicato para fazer valer os meus direitos, a empresa nunca respondeu pelos seus atos e nunca foi responsabilizada pelas injustiças cometidas.”

“Apesar das tentativas do sindicato para fazer valer os meus direitos, a empresa nunca respondeu pelos seus atos e nunca foi responsabilizada pelas injustiças cometidas”, refere Davide Salvi, que trabalhou num call center (Foto: Pedro Rocha)

Uma outra história, uma outra empresa, o mesmo sentimento de injustiça, de desencanto, de desilusão. “Há coisas na minha cabeça que não consigo digerir, foi um choque muito grande. Fui à procura de um desafio, acabei com a minha carreira”, desabafa Ana Filipa Gomes, jornalista. Passaram-se quatro anos, a mágoa persiste.

Em 2008, ainda durante o mestrado, Ana Filipa entrou no Porto Canal, ficou como coordenadora de conteúdos do Futebol Clube do Porto. “O meu nível salarial foi sempre aumentando.” O horário era adaptado à escola do filho. Até que é desafiada para um projeto novo que queria ser uma Sport TV em formato rádio. Conhecia as pessoas que a convidaram, cobriam-lhe o salário, o mesmo respeito ao horário escolar. Saía de um sítio tranquilamente, sem haver qualquer cansaço ou desgaste. “Com o aliciante de ser uma coisa nova.” Em outubro de 2019, estava no novo trabalho, no primeiro mês tudo bem, em novembro, sentiu um mal-estar no ar, sussurros de problemas de dinheiro. Em dezembro, o salário não entrou no dia que era suposto, talvez amanhã, mas não foi nem amanhã, nem depois. “Alguma coisa não estava a bater certo.”

O Natal aproximava-se, as explicações tardavam, pedia-se aos funcionários para dar o melhor, o projeto não podia terminar por causa da publicidade. “Dezembro foi pago com muito atraso, o subsídio de Natal não foi pago, em janeiro foi o descalabro.” Em março de 2020, Ana Filipa rescindia por justa causa, antes disso, cumpriu o horário de trabalho sem agenda atribuída durante dois meses. Depois veio a pandemia e não voltou ao jornalismo. “Fiquei sem carreira, foi bastante doloroso para mim.”

Lívia Souza travou a tempo. A proposta era bastante atrativa, lugar de gerente de atendimento ao cliente numa empresa de logística com sede na Bélgica, trabalho remoto, base salarial acima da média pelos parâmetros portugueses. Habituada a enviar candidaturas a empregos através de uma plataforma internacional de ofertas de trabalho, não estranhou. Recebeu um email com o nome de uma mulher a anunciar que o seu formulário tinha sido avaliado. “A empresa tinha um site, entrei, não tinha muita informação.” Manifestou interesse na vaga e o processo arrancou.

O caso é recente, tem três meses. Lívia Souza recebeu um contrato para preencher sem qualquer dado da empresa e o pedido de enviar os seus dados, nome, morada, número da conta para transações bancárias, numa selfie com esses documentos na mão. Achou estranho, ainda assim enviou a fotografia um pouco desfocada com o número da porta tapado. As mensagens continuaram, nenhum contacto telefónico foi feito. Do outro lado, não havia uma voz ou uma cara. “Fui juntando as coisas aos poucos e com o pé atrás.” Até que chega o pedido para entrar numa plataforma de bitcoins e criar uma conta numa aplicação para receber o salário. Nessa altura, já Lívia Souza passava a pente fino a internet para tentar encontrar alguma coisa. E encontrou. “Vi que havia pessoas que tinham passado por essa situação, relatos de 2019, 2020, de forma recorrente.” E parou tudo. “Nunca tinha passado por isto na minha vida.”

Não ganhar e investir sem receber um cêntimo

O caso é recente, de abril deste ano. Ofélia Silva inscreveu-se no Facebook para procurar trabalho, ver o que poderia aparecer. Estava de baixa médica, a mercearia onde trabalhava tinha fechado, ia estando atenta às ofertas de mercado. “Inscrevi-me em várias coisas.” Até que um número entrou em contacto consigo via WhatsApp a pedir para se inscrever numa plataforma. Aí chegada, novo pedido para instalar um serviço de mensagens instantâneas. Solicitam uma quantia de 10 euros, depois 30. “Isso, para mim, era o recrutamento”, diz. Mas não era. As indicações chegavam por mensagens, numa delas, uma rapariga apresentou-se como sua coach.

Ofélia Silva seria uma espécie de gestora financeira, investia e ia buscar o dobro, era essa a promessa. Depois, havia um tempo limite para recuperar o dinheiro, todavia, sempre que o tentava fazer, tinha de depositar mais. Apareciam-lhe nomes estrangeiros, várias contas, uma tarefa para cumprir para receber o dinheiro. E nada acontecia. “Acabei por fazer queixa na polícia.” Primeiro na GNR, depois na Polícia Judiciária de Leiria.

O esquema é um buraco sem fundo. “Essas contas são utilizadas só para movimentar dinheiro.” Soube depois. Perdeu bastante dinheiro, não diz quanto. “Não foi assim tão pouco, entrei mesmo em desespero”, confessa. Contou a sua história no Portal da Queixa. De depósito em depósito sem receber um cêntimo. Chegaram a pedir “um valor excessivo” para libertarem o que tinha gastado. “Foi a primeira e a última vez. Agora bloqueio tudo, não dou margem nenhuma.” A esperança de que lhe devolvam o que investiu apaga-se a cada dia que passa.

Aqui o patrão é de carne e osso, disse ao telefone que falariam em tribunal, e não houve mais conversa desde o último mês de agosto. A padaria da Maia nunca tinha fechado para férias, encerrou uma semana, uma carrinha estacionou à porta e retirou comidas, bebidas, máquinas. Os empregados voltaram depois de férias, a porta estava fechada, chamaram a polícia para testemunhar que estavam ali para trabalhar, mas não conseguiam entrar.

Dois funcionários contam o que se passou, sem nomes, sem caras. O processo ainda está quente. Não receberam o mês de agosto, subsídio de férias, mês de setembro. O sindicato acompanha a situação, a Autoridade para as Condições de Trabalho foi informada do que se passou. “Em julho, trabalhei 10 a 12 horas por dia, não pagou essas horas a mais, e muitas outras para trás”, revela uma funcionária. O negócio não estava bem, os empregados pressentiam que alguma coisa ia acontecer, o patrão chegou a comentar que poderia fechar, decretar insolvência, vender. Contudo, nada comunicado oficialmente. “Não paga, não dá carta para o fundo de desemprego, estamos aqui à espera, não sabemos de nada”, adianta a funcionária.

O colega confessa que ficou desconfiado com o pedido de colar na montra o encerramento para férias, o que nunca tinha acontecido. “Cheirou-me um bocado a esturro”, comenta. Os salários iam sendo pagos com alguns dias de atraso, as horas extras não eram contabilizadas a gente que trabalhava de manhã à noite. “No meio disto tudo, acho que houve maldade”, desabafa.

Francisco Figueiredo, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, tem conhecimento do caso. “O que é prática no setor, infelizmente, é o encerramento de um dia para o outro, não pagarem os direitos dos trabalhadores, o que é completamente ilegal.” “As empresas para encerrarem têm de cumprir formalismos legais”, acrescenta. O que nem sempre acontece.

Lívia Souza deixou o seu depoimento no Portal da Queixa como alerta para evitar transtornos futuros, assumindo-se como vítima de uma falsa oferta de emprego. “Pensa-se que um golpe é só quando se perde dinheiro, mas não é só isso.” Pressentiu a fraude. “E é muito perigoso. Podemos fornecer todos os nossos dados e essas pessoas usarem-nos para fazer compras, para fazer empréstimos bancários.”

“Pensa-se que um golpe é só quando se perde dinheiro, mas não é só isso. (…) é muito perigoso. Podemos fornecer todos os nossos dados e essas pessoas usarem-nos para fazer compras e empréstimos bancários”, alerta Lívia Souza, que recebeu uma oferta de gerente de atendimento ao cliente de uma empresa de logística com sede na Bélgica (Foto: Pedro Rocha)

Nos últimos três anos, o Portal da Queixa, plataforma de comunicação entre consumidores e marcas, registou 54 queixas de burlas de emprego. Pedro Lourenço, porta-voz do portal, revela que a abordagem não difere muito. “O padrão é semelhante: o contacto inicial é feito por WhatsApp ou através de anúncios em plataformas de emprego online, como demonstram as diversas queixas recebidas.” Há nomes inventados. “Empresas fictícias, como Sovereig Logistic Services e Lewerenz Logistics Service, são frequentemente mencionadas pelos utilizadores como responsáveis por contratos falsos e exigências de pagamentos duvidosos”, adianta. Em seu entender, há motivos para preocupações. “A proliferação de esquemas fraudulentos de ofertas de emprego, com claros sinais de intenções maliciosas como o phishing ou o roubo de dados, é alarmante.”

Pede mão firme, atenção redobrada. “A falta de regulação eficaz e de ações concretas por parte dos organismos competentes tem permitido a continuidade destas atividades criminosas. Cabe ao Estado proteger os cidadãos e regulamentar de forma rigorosa as plataformas de emprego online, para evitar que mais pessoas sejam vítimas deste tipo de esquemas”, observa Pedro Lourenço. O Portal da Queixa, lembra, tem tomado medidas para alertar os consumidores sobre esses perigos, como o movimento #NãoSejasPato que, explica, “visa educar a população para não cair em promessas de empregos fáceis e ganhos rápidos.” Pedro Lourenço deixa mais um conselho. “Recomendamos que, antes de aceitar qualquer proposta de emprego, deve sempre verificar a veracidade da empresa e evitar partilhar dados pessoais ou bancários sem uma verificação adequada. A prevenção é a melhor defesa contra estas fraudes.”

Não receber o salário, não poder pagar as contas

Anúncios falsos nas redes sociais e em portais pouco confiáveis. Pedidos de transferência de uma pequena quantia para garantir uma entrevista, para entrar num processo de recrutamento. Pressão para partilhar dados pessoais, morada, cartão de cidadão, detalhes bancários. Oferta de comissões atrativas em pequenas tarefas como, por exemplo, aumentar a visibilidade de um conteúdo nas redes sociais. Promessas de trabalhos no estrangeiro e pagamento de um valor para tratar de burocracias. Há de tudo um pouco. A burla de falso emprego é logro e é crime. Nos últimos anos, as denúncias têm aumentado na PSP: 87 no ano passado, 71 em 2022, 56 em 2012, 62 em 2020.

O setor da construção civil, outrora fértil em situações menos claras, tem melhorado, há menos denúncias de fraudes de portugueses a trabalhar lá fora. Cá dentro, é outra história. Em fevereiro, o Sindicato da Construção de Portugal alertou para situações de exploração de trabalhadores estrangeiros que chegavam através do que chamou “redes angariadoras mafiosas de mão-de-obra”. Ajudou a pagar despesas dos operários, denunciou várias situações à ACT, convidou os embaixadores da Índia, Colômbia, Brasil, Peru e Marrocos para um encontro no Porto para conversar sobre como os trabalhadores dos seus países podem chegar a Portugal de forma organizada, tanto a nível laboral, como social. Nenhum respondeu ao convite.

A Manpower, grupo especializado em soluções globais de talento e transformação de organizações em mais de 75 países, tem estado atenta ao assunto, a desmontar truques, a apresentar estratégias para tentar detetar casos de burla, perceber se uma oferta de emprego é ou não credível, recomendando a pesquisa à unha da empresa em questão, nunca enviar dinheiro ou informações pessoais numa fase inicial, eliminar e denunciar mensagens de números desconhecidos em grupos de WhatsApp, Telegram, por aí fora.

Pagar taxas de inscrição não é normal. Daniela Lourenço, líder de marca da Manpower, avisa que empresas legítimas, em Portugal, não pedem dinheiro em troca de oportunidades de emprego. Outro ponto é o salário. “A oferta de remunerações excessivamente atrativas, que não estão em linha com o mercado para as funções descritas”, descreve.

Atenção aos detalhes e olhos bem abertos, recomenda. “É igualmente importante desconfiar de comunicações mal escritas, com erros gramaticais, ortográficos ou de formatação, características comuns em fraudes de emprego. Depois, a falta de informações claras sobre a empresa é também um sinal de alerta”, sublinha Daniela Lourenço.

Evitar clicar em links, pedir sempre para ver o contrato antes de aceitar a oferta. “Outro comportamento suspeito é a pressão para partilhar informações pessoais, como detalhes bancários ou documentos de identificação, logo nas fases iniciais do processo.” Qualquer suspeita de fraude, deve ser reportada às autoridades competentes, lembra.

O Sindicato do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP), acompanhou a história de Davide Salvi que chegou ao conhecimento do Governo através de um requerimento do PCP – e no qual se lia “estamos, pois, perante uma prática que viola direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados, que deveriam ter consequências punitivas para as empresas.” Orlando Gonçalves, dirigente do CESP, refere que há procedimentos pouco claros. “Há cláusulas, até por desconhecimento dos trabalhadores, abusivas, um contrato não é renovado, o trabalhador está efetivo e não sabe.” Mais. “Os trabalhadores subcontratados, que, por exemplo, prestam serviços para armazéns, têm de ser pagos conforme o serviço que fazem, e isso não está a acontecer.” Os trabalhadores têm menos regalias. “Há muitos Davides, infelizmente.” Passado este tempo, o sindicato não tem nenhuma informação sobre essa matéria.

Davide Salvi continua em Portugal, gosta da energia de Lisboa. O que passou fazem-no pensar no tema da habitação. “Esta experiência fez-me refletir sobre a gravidade da questão dos alugueres em Lisboa, especialmente para aqueles que trabalham na cidade e enfrentam situações semelhantes à minha. As rendas estão cada vez mais caras e muitas pessoas estão a passar dificuldades. Por isso, acredito que é importante começarmos a discutir soluções concretas para este problema.” Tem pensado bastante no assunto e em formas de o resolver. “Uma das ideias seria criar uma associação que se encarregasse de restaurar edifícios abandonados, colocando-os à disposição dos trabalhadores a preços acessíveis”, partilha. Em seu entender, as pessoas é que devem estar no centro das preocupações, não apenas o lucro. A ideia, sugere, “poderia ser apoiada pelas grandes empresas que operam na cidade, por financiamento governamental ou por outras associações.” “Acredito que, trabalhando juntos, podemos realmente fazer algo para resolver este problema.”

Ana Filipa sentiu-se enganada, destruída por dentro. “Tenho uma mágoa profunda, isto não é justo, destruiu parte da minha autoestima, estabilidade, felicidade.” Convidaram-na para um projeto que não iria resultar, sem dinheiro para pagar o trabalho, algo que nunca lhe foi dito. “Foi um golpe muito forte.” Não esquece os momentos em que teve de fazer contas à vida. “Senti-me diminuída enquanto mulher, enquanto trabalhadora, de não ter salário, de não poder pagar as minhas contas.” O suporte, a todos os níveis, do marido e dos pais, foi fundamental. Neste momento, é bolseira de doutoramento em jornalismo forense na Universidade do Minho. Ana Filipa foi para tribunal, o fundo de garantia salarial cobriu parte do que lhe deviam, a rádio já não existe. “Foi a universidade que me salvou.”