Cresce o número de crianças e adolescentes viciados em cosméticos, qual elixir salvador rumo a um rosto imaculado. Dermatologistas confessam-se muito preocupados e alertam para os riscos.
Crianças que com dez anos já não abdicam de levar os nécessaires atulhados de cremes para onde quer que vão, adolescentes que aplicam quase uma dezena de produtos logo de manhã – e outros tantos à noite -, jovens que são incapazes de sair de casa sem cumprir demorados rituais de skincare ou que reduzem a lista de pedidos de Natal a cremes, muitos deles desadequados à idade. Pelo meio, há irritações da pele, problemas dermatológicos que surgem ou se agravam, nalguns casos até queimaduras, cicatrizes que se eternizam. E ainda há quem simplesmente não dê ouvidos aos dermatologistas. Ou pior: quem se recuse a ir a uma consulta, para não ter de ouvir que não pode usar tantos produtos. Há cada vez mais crianças e adolescentes viciados rituais de skincare, com todos os riscos que daí advêm. E, sim, as redes sociais e os influencers têm sido o combustível perfeito para alimentar os casos de cosmeticorexia. Mesmo que haja outros fatores a considerar.
Em causa está um distúrbio psicológico que se manifesta pela preocupação obsessiva com o uso de cosméticos. E que é cada vez mais prevalente nos países desenvolvidos. “Tem acontecido um pouco por todo o Mundo. Ainda recentemente a Academia Americana de Dermatologia alertou para isso”, ressalva Sofia Magina, dermatologista no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Portugal não é exceção nesta busca desenfreada pela pele perfeita. “É um fenómeno recente, com menos de dois anos, diria, mas que tem crescido de forma exponencial no último ano. Quase não vemos adolescentes que não tenham o seu ritual de skincare, já nem conseguem conceber que não tenham que o fazer. Criou-se essa noção de necessidade absoluta, a ideia de que se não o fizerem vão ficar com uma pele feia”, alerta. E as “vítimas” são exclusivamente do sexo feminino? “Não, também há rapazes. Mas é verdade que é mais frequente nas meninas.”
Marta Ribeiro Teixeira, dermatologista na Clínica Espregueira, no Porto, também testemunha essa tendência. “Já há algum tempo que aparecem casos destes, mas a verdade é que têm estado a aumentar. Tanto em número como em complexidade. Há uns tempos atendi uma jovem de 14 anos que levava uma folha A4 com a listagem dos produtos que estava a usar e as características, e eram mais de 20. Há cada vez mais adolescentes que usam perto de dez produtos de skincare logo de manhã, e outros tantos à noite.” Com uma agravante assustadora. Do retinol ao ácido hialurónico, dos séruns às máscaras, são muitos os produtos que constam dos nécessaires das adolescentes e que em nada se adequam às características e necessidades de peles tão jovens. “Não faz qualquer sentido usar produtos antienvelhecimento até uma certa idade. O declínio da produção de colagénio [proteína que garante a elasticidade da pele] só começa a partir dos 25 anos”, sublinha a especialista.
Redes sociais e influencers
E ainda assim a onda cresce. Ana Mesquita, farmacêutica do Porto, percebeu-o duplamente. Primeiro, no contexto profissional, quando começou a atender um número crescente de adolescentes preocupadas com estas questões. Depois, no contexto pessoal, quando, aos nove anos, a filha, Francisca, lhe fez um pedido algo inusitado para a idade: “Ó mãe, eu quero skincare.” Ana foi tentar perceber em que se traduzia aquele pedido. “Nesta idade já lidam com crianças mais velhas que vão partilhando que usam determinadas coisas e elas vão absorvendo.” No caso de Francisca, pediu um sérum. Ana, com o know-how inerente à profissão, rapidamente lhe desconstruiu aquele desejo. “Expliquei-lhe que os séruns não são para serem usados por crianças, só se devem aplicar em peles maduras. E que na idade dela o mais importante é lavar e hidratar a pele. Comprei-lhe produtos novos para a higiene do rosto, uma água micelar para peles sensíveis, um creme hidratante simples, com o menor número de componentes possível, e uma máscara à base de água, que pode usar uma vez por semana. Para ela foi uma maravilha.”
Desta forma, Ana atendeu ao desejo da filha, recorrendo apenas a produtos inofensivos . Mas outros progenitores não têm o mesmo grau de conhecimento. “Muitos pais vêm à consulta porque estão preocupados com o número excessivo de produtos que as filhas usam”, sublinha Marta Ribeiro Teixeira. Não raras vezes, dá por ela a intermediar uma espécie de tira-teimas familiar. “Muitas vezes as mães querem que eu diga que aquilo não é correto e as filhas querem a minha aprovação para continuar a usar aqueles produtos. E que até acrescente outros.” Para cúmulo, lembra Sofia Magina, nem sempre o veredicto do dermatologista é a lei. Essas, a seu ver, são as situações mais melindrosas. “Os piores casos são aqueles em que eu não consigo convencer uma adolescente de 12 anos que não precisa de fazer aquilo tudo. Porque confiam mais numa influencer das redes sociais do que num especialista. Há pais que me pedem por tudo para eu passar uma máscara às filhas, que seja o mais leve possível, porque elas não aceitam outra opção. E recentemente até tive uma mãe que me veio pedir ajuda porque não consegue ir com a filha a uma loja de cosméticos sem que ela queira comprar tudo o que vê. E nem a conseguiu convencer a ir à consulta, porque ela achava que eu ia dizer que não podia aplicar aqueles produtos.”
Para a dermatologista do Centro Hospitalar de São João, o peso das redes sociais neste fenómeno é incontornável. “Estas jovens seguem cegamente os rituais e tutoriais que veem as influencers fazer e iludem-se com a imagem ideal da pele perfeita, particularmente apetecível para miúdos mais inseguros.” Catarina Lucas, psicóloga clínica, valida a teoria. “É comum encontrarmos [entre as jovens reféns da obsessão pelos cosméticos] adolescentes com baixa autoestima, muito preocupadas com a comparação social e a necessidade de serem aceites pelos seus pares. Em algumas situações também se verificam algumas caraterísticas obsessivas ou perfecionistas.” Não raras vezes, há até dificuldades na interação com os outros, assentes na premissa de que “serão rejeitadas se não estiverem ‘arranjadas e bonitas’”. “É aprendido um padrão de relação com os outros assente na imagem, cultivando ainda padrões de perfeição que sabemos não serem possíveis, limitando a capacidade das jovens em lidar com o imperfeito e com a imagem real.”
Do acne às queimaduras
Tânia Gaspar, também psicóloga, lembra que a adolescência é, por definição, uma fase da vida em que a pressão dos pares se faz sentir com particular relevância. E em que “há uma necessidade de integração muito grande”. O que de alguma forma também ajuda a perceber a força do fenómeno. “Nesta idade, há muito a tentação de contrariar o adulto, que não é visto com grande crédito. A mensagem tem muito maior ressonância se for transmitida pelos pares.” E as marcas aproveitam isso. Seja através das influencers, das campanhas agressivas de marketing digital ou da aposta em rótulos e embalagens irresistíveis. Ana Mesquita lembra até que, quando se entra em algumas lojas, “veem-se umas quantas máscaras em forma de unicórnios e pandas”. “E isso, nesta idade, exerce uma atratividade muito grande.” Sofia Magina reforça o apelo: “Os pais têm de estar muito atentos, porque falamos de um grupo muito vulnerável e permeável. E a dimensão deste fenómeno é impressionante.”
Tanto mais quando há riscos relevantes. Marta Ribeiro Teixeira explica quais: “Desde logo, há o risco de aparecimento de acne, de rosácea, de eczemas irritativos e reações alérgicas. Ou de agravamento destes problemas. Nos casos mais extremos, podem até ocorrer queimaduras, que levam à hiperpigmentação [escurecimento da pele] ou ao desenvolvimento de cicatrizes. Acontece com jovens que usam retinol e depois fazem a depilação com cera. A pele fica mais fragilizada e pode haver uma reação brutal.” Sendo que a combinação entre diferentes substâncias pode ser igualmente nociva. A combinação do retinol com o ácido salicílico, por exemplo, pode causar uma reação irritativa e danificar a barreira cutânea, tornando a pele seca e descamativa. O mesmo pode acontecer quando se aplica retinol de manhã, prática proibida pelos dermatologistas.
Há ainda outros riscos, do ponto de vista psíquico, que se relacionam com os tais comportamentos obsessivos. Sofia Magina relata mesmo histórias de pais que se queixam de não conseguirem sair de casa de manhã a horas decentes porque as filhas se recusam a fazê-lo sem que primeiro cumpram todo o ritual de skincare, nalguns casos durante mais de meia hora. Catarina Lucas deixa um alerta pungente: “É muito importante que os pais estejam atentos e ajudem as adolescentes a lidar mais positivamente com a imagem, sob pena de desenvolvimento ou agravamento de quadros de ansiedade ou depressivos.”