As aldeias onde a febre da seleção não chega

São terras encaixadas nas serras, de casas em pedra e caminhos sinuosos para lá chegar. Sem cafés, mercearias ou farmácias. Longe das metrópoles, de ruelas estreitas, de agricultura e pastorícia. Em pontos remotos do país, há gente que não tem o nome de Cristiano Ronaldo na ponta da língua, que não sabe que está a decorrer um Europeu de futebol e que não pára em frente à televisão a ver os jogos. O fenómeno da seleção nacional, que desperta união e paixões desmedidas, está longe de ser transversal.

A rede de telemóvel é escassa, as ruelas estreitas em chão de pedra, as casas e casinhas de granito, amontoadas em cima da serra de Montemuro, toda verde por esta altura, num sossego quase inabalável. Aqui, não há um café, uma mercearia, uma farmácia. Só uma capela. E a estrada, cheia de curvas e contracurvas, que nos leva até à pequena aldeia de Vale de Papas, em Cinfães, é a mesma a que temos de voltar para ir embora. É porta de entrada e de saída. “Quantas pessoas cá moram? Agora talvez umas 14”, atira uma moradora que está de volta das árvores, chapéu na cabeça e uma bata a cobrir-lhe a roupa, espécie de farda que anuncia que anda dedicada aos afazeres domésticos e que não resta tempo para conversas. Nas janelas, não se avista uma única bandeira de Portugal, a febre da seleção nacional de futebol parece assunto de outras gentes, a sofrência com os jogos não tem ares de morar aqui, poucos parecem importar-se com o Campeonato da Europa que está a decorrer.

Meia dúzia de passos à frente, Cristina Cardoso assoma à porta da entrada de casa, que é, ao mesmo tempo, o único espaço aberto ao público na aldeia – chama-se “Artesanato Casinhas de Colmo”. “Vivo cá desde sempre, agora moro com a minha avó, nunca quis sair daqui”, despacha-se a explicar. Tem 36 anos, uma pequena casa toda em pedra, lá dentro uma televisão, que ora está desligada, ora está sintonizada nas novelas. “Sei, vagamente, que há alguma coisa a acontecer, porque dá nos noticiários, mas não vejo futebol, se estiver a dar mudo de canal, não gosto, nunca me interessou. E, no geral, aqui na aldeia o futebol não é assunto de que se fala.” Não? Faz uns segundos de pausa em busca de justificação. “Se calhar porque estamos mais afastados das grandes cidades, é uma coisa lá deles.” Cristina não se recorda de Portugal ter sido campeão europeu, não sabe quem é Éder, o herói improvável que nos fez erguer a taça em 2016, ou Roberto Martínez, o novo selecionar nacional. Conhece um jogador apenas. “Cristiano Ronaldo, só porque é muito falado. Sei que é português, que é o melhor do Mundo, que marca muitos golos.”

“Sei, vagamente, que há alguma coisa a acontecer, porque dá nos noticiários, mas não vejo futebol, se estiver a dar mudo de canal, não gosto, nunca me interessou. E, no geral, aqui na aldeia o futebol não é assunto de que se fala”, conta Cristina Cardoso, artesã

O som dos sinos das cabras ao fundo desfaz o silêncio que envolve a aldeia, até agora só interrompido pelo chilrear dos pássaros. Em Vale de Papas ainda se vive muito da agricultura e da pastorícia. “Antigamente viviam mesmo todos da agricultura. Os meus pais ainda vivem. Mas, agora, alguns trabalham na construção civil, saem de manhã e voltam à noite.” Cristina é artesã, passa por aqui os dias a construir miniaturas das típicas casinhas de colmo da aldeia, feitas de pedra, madeira e telhados de palha, a colar com minúcia pedrinha a pedrinha. “Vendo a turistas que vêm cá, estrangeiros e portugueses. A maioria portugueses. Porque esta é talvez a mais típica aldeia de Cinfães.” Também vende pelo Facebook, envia por correio. Ainda faz brezes, os cestos tradicionais da serra de Montemuro. E vende chás, que ela própria apanha no monte, seca e embrulha num saquinho – “estas ervas nascem espontaneamente, não são plantadas” -, pão que coze num forno a lenha, salpicões, compotas. “Gosto de cá estar, a maioria das pessoas foge da aldeia, mas eu gosto deste contacto com a Natureza.”

Duas a três vezes por semana chega o padeiro. O peixe fresco é uma vez por semana. E a mercearia vem numa carrinha onde compram detergentes, arroz, massa, carne congelada, fruta. “Quando queremos mais, temos de ir a Cinfães ou a Castro Daire, mais ou menos a 25 ou 30 quilómetros, ou a um minimercado que há aqui noutra aldeia, mais perto.” António da Costa passa e põe-se à conversa, carrega um carro de mão, 74 anos feitos, cabelos brancos, olhos claros. Vive em Lisboa, mas no verão volta à terra. “Futebol? Sei que Portugal está a jogar, mas não conheço o nome dos jogadores. Um rapazito novo que vive aqui em baixo, e que é benfiquista, é que deve saber disso, o resto do povo não liga.” E pede licença para seguir caminho. O Euro 2024 não é tema que faça vibrar a aldeia, muitos nem sabem que está a acontecer. Francisco Lopes aproxima-se de enxada ao ombro, boné na cabeça, chegado do campo. “Gosto do Sporting, mas não dou o meu dinheiro para ver a bola.” E sabe que está a decorrer agora o Europeu? “Sei, sei”, responde desinteressado. Para logo prosseguir. “É na Alemanha? Muito bem. Não sabia, não tenho acompanhado, não ligo muito à televisão.” Conta 78 anos, nascido e criado em Vale de Papas, trabalhou décadas na capital, na Carris, gosta mais do campo, mudou-se agora para Santa Comba Dão. “E depois tenho aqui na aldeia estas casas com os portões azuis, venho cá sempre que me apetece.”

“É na Alemanha? Muito bem. Não sabia, não tenho acompanhado, não ligo muito à televisão”, garante Francisco Lopes, reformado

O jogo Portugal-Chéquia, estreia da seleção nacional na fase de grupos do Euro 2024 (Portugal venceu por 2-1), transmitido pela SIC, foi o programa mais visto do ano em todas as televisões, segundo anunciou a estação de Paço de Arcos. Se juntarmos os espetadores que assistiram pela Sport TV foram mais de 3,6 milhões. Enquanto isso, no Interior do país, Portugal profundo, há aldeias enfiadas nas serras, isoladas, onde a maioria das gentes que as habita passa ao lado de uma febre que desperta união e paixões desmedidas. Reflexo de um país cheio de idiossincrasias. Sobretudo se olharmos aos números: a seleção portuguesa de futebol vale mais de mil milhões de euros, é uma das mais valiosas da competição.

Na lavoura não sobra tempo para o futebol

Isso pouco ou nada diz aos três irmãos que andam a pastar o gado no campo, em Pimeirô, aldeia vizinha de Vale de Papas, ainda em Cinfães, distrito de Viseu, encaixada numa encosta, de ruas íngremes. Quatro vacas, dois bezerros, um burro e as ovelhas seguem por um trilho de terra entalado entre os campos. “Nesta altura, levantamo-nos às seis da manhã e andamos aí até às nove horas da noite na lavoura. Temos de cuidar dos animais, de sachar o milho e de cortar a erva para depois, no inverno, darmos às vacas”, apressa-se a dizer Donzília Pinto, 63 anos, a irmã do meio, de sachola ao ombro. Então e televisão? “Realmente, quando ando a cozinhar, acendo-a e agora é só bola. Mas não sei o que é que está a haver. Não ligo, não me interesso com eles, o futebol aborrece-me.” Até gosta de ver novelas, só não tem vagar para passar horas em frente à televisão.

Vivem os três, além do marido de Donzília, juntos. E é Adérito Pinto, o mais novo dos irmãos, 57 anos, a caminhar acelerado à frente para orientar o gado, quem arrisca no nome do mais famoso jogador da seleção: “Não é Arnaldo que ele se chama? Ele aparece na televisão, é um artistola que marca muitos golos de cabeça. Mas não percebo nada de futebol.” E ri enquanto acende um cigarro. Donzília sabe que não é esse o nome, aposta antes em Reinaldo. É então que o irmão mais velho, António Pinto, 66 anos, de bigode farfalhudo, põe os pontos nos is, em jeito de graça. “Nós não sofremos da bola, até podemos ver futebol na televisão, mas não somos praticantes. Não vamos deixar de trabalhar para ver jogos.” Tenta escapar rápido à conversa sobre a seleção, muda de assunto num repente e estica o braço para apontar para os terrenos da família. “Está a ver aqui? Isto é nosso. Temos milho e centeio. Só de cultivo temos um hectare.”

“Não é Arnaldo que ele se chama? Ele aparece na televisão, é um artistola que marca muitos golos de cabeça. Mas não percebo nada de futebol”, reconhece Adérito Pinto, agricultor

Os irmãos cresceram na aldeia de Pimeirô, de onde nunca abalaram. “Nunca fizemos mais nada a não ser o campo, não demos para mais. A minha mãe era pobrezinha, fizemos a quarta classe, não havia grandes condições para estudar”, conta Donzília. O gado segue o seu caminho, Adérito não se rala com isso, “eles sabem voltar”. O caçula dos três até chegou a trabalhar nas vindimas, teve de largar, era uma vida dura e, nos últimos tempos, a coluna começou a dar de si. Volta ao assunto do futebol só para dizer ser benfiquista, mesmo sem saber bem porquê. “Não ligo ao futebol, mas gosto que o Benfica ganhe. E a seleção, claro. Mas nem sei bem o que é o Europeu.” De quando em vez, vai ao café às portas da aldeia, da Associação de Melhoramentos e Cultura de Pimeirô, onde se junta o povo a ver futebol, “sem febre e sem doença, que aqui não há disso”, para comprar um maço de tabaco e ainda pára uns minutos a tentar prestar atenção, decifrar o jogo, apreciá-lo. “Só que estou sempre com pressa para ir ver o gado e venho-me logo embora. Nem consigo decorar o nome de nenhum jogador.”

Adérito, Donzília e António não assistiram ao jogo entre Portugal e Turquia, que, por ter calhado a um sábado, juntou milhares de adeptos pelo país em praças ao ar livre com ecrãs gigantes – e que garantiu a passagem da nossa seleção aos oitavos de final do Euro 2024, com uma vitória por 3-0. Afinal, vivem da agricultura e às cinco da tarde ainda há muito a fazer no campo.

“É o Ronaldo, o Ronaldo”

A largos quilómetros, numa aldeia transmontana escondida no Parque Natural do Alvão, Vila Real, o cenário não é muito diferente. É final da tarde, Isilda da Conceição anda a guardar as galinhas com a ajuda do filho, junto aos campos, no cimo da aldeia de Arnal, lugar de lendas, serra a toda à volta, cenário idílico, digno de filme. “Faço 88 anos pelo Natal se lá chegar”, realça. Mora na pequena aldeia, toda granítica, do chão às casas, que é rasgada por linhas de água, desde os 27 anos, quando casou. “Isto aqui é muito sossegado. Andei toda a vida na lavoura. Antes ainda tinha vacas, agora vendi tudo, só tenho galinhas e coelhos.” Tem os cabelos branquinhos e um lenço à mão para embrulhar a cabeça quando anda longe da sombra. Futebol não é com ela, faz logo questão de dizer. Da seleção nacional nada sabe, do Europeu menos ainda. “Sei lá eu disso. Nunca fui habituada a ver futebol. Acho que ninguém aqui na aldeia liga muito a isso.” O marido faleceu faz 30 anos e Isilda vive com o filho, António Augusto, que também sempre se dedicou à vida agrícola. Em casa, têm uma televisão. “E chega”, assinala ela. É sagrado, sagradinho, todos os dias vê o “Preço Certo” na RTP, quando calha também o “Telejornal” e pouco depois já está na cama. Não sabe ler, nunca foi à escola em menina, herança do Estado Novo, do analfabetismo em que o regime deixou o país mergulhado. “Os meus três filhos têm todos a quarta classe, mas eu nem o meu nome sei escrever. Por isso é que nem às notícias ligo muito, não ouvi falar de nada disso do futebol, só quero saber se dá chuva, sol ou neve, que aqui cai muita neve no inverno.”

“Os meus três filhos têm todos a quarta classe, mas eu nem o meu nome sei escrever. Por isso é que nem às notícias ligo muito, não ouvi falar de nada disso do futebol”, afirma Isilda da Conceição, agricultora

Resta pouca gente na aldeia, são uns nove resistentes, habitantes permanentes. Lojas não há, “vem cá um homem vender arroz, massa, azeite, óleo, sardinhas, carne”. Às vezes, Isilda também chama um táxi para ir até Vila Real às compras, e o filho até é capaz de ir a pé, horas a caminhar. O fenómeno do amor à seleção também não lhe toca a ele. “De futebol? Não sei nada. O meu pai também não via e nunca tive curiosidade nenhuma”, comenta António Augusto, 56 anos, a pele torrada pelo sol. Começa por dizer não conhecer nenhum jogador para logo depois emendar a mão e reconhecer o capitão da seleção nacional numa foto – ao contrário da mãe, que não reconheceu Cristiano. “É o Ronaldo, o Ronaldo. Mas só conheço esse. E não sei nada sobre ele, só sei que é jogador.” Não assistiu a nenhum jogo, nem tão-pouco sabia que está a decorrer um Europeu ou que Portugal se sagrou campeão no mesmo campeonato em 2016. “Éder? Não sei quem é.”

Anda António a cuidar das galinhas quando, ironia das ironias, chegam dois homens de carrinha, um deles traz uma camisola de Portugal vestida, o número 12 estampado nas costas, já desbotada de tão antiga. Fora oferecida, garante Adérito Nogueira. O agricultor de 55 anos morou aqui em tempos, agora vive na aldeia de Sirarelhos, mesmo ao lado. Está de passagem, em trabalho. “Vim a este terreno do meu cunhado sacudir o feno.” É de poucas palavras, anda atarefado. Confessa gostar de bola, do Benfica e de Portugal. Só não é fanático. Viu o primeiro jogo da seleção, “ganhámos 2-1”. Mas não sabe os horários das partidas e, se andar a passear as cabras, o futebol fica para segundo plano. A vida no campo não se dita pelo calendário dos jogos, segue a ditadura do sol, da luz do dia.

Adérito Nogueira anda a trabalhar num terreno do cunhado, na aldeia de Arnal, com uma camisola de Portugal vestida, já desbotada, que lhe foi oferecida há anos. Viu o primeiro jogo de Portugal no Euro 2024, frente à Chéquia, mas não é fanático. Não sabe os horários dos jogos e, se tiver de passear as cabras, o futebol fica para segundo plano

A vizinhança, apercebendo-se da agitação fora do vulgar, vai-se aproximando quando o sol começa a cair, os raios já baixos a invadir os olhos de frente. Na verdade, na aldeia de Arnal, também há quem diga ver os jogos da seleção, são poucos e cada um em sua casa, ora por influência dos netos, adeptos ferrenhos, ora reflexo de tempos emigrados. Mas o espírito está longe da exaltação coletiva que se vive por estes dias em muitos outros cantos do país, das manchetes mediáticas que tomam conta dos jornais em época de Europeu. Como reza a frase eternizada pelo antigo treinador italiano Arrigo Sacchi, dita já noutra era, “o futebol é a coisa mais importante entre as coisas menos importantes da vida”.