Valter Hugo Mãe

Ano Novo


Esta semana completarei cinquenta e três anos de idade e, por isso, será natal. Faço minhas listas de motivação para o ano novo convencido mais da sua poética do que da probabilidade de as cumprir. Gosto, quase irresistivelmente, de listas e adoro a ideia de algum dia, por brio ou maturidade, viver segundo a enxuta decisão que tome. Mas sou à deriva. Sou mais feito para mudar de rumo do que o vento a passar. Vou pela vontade do momento e não sei viver de outro modo.

Ainda assim, estimo as minhas promessas de comer saudável, extinguir a coca-cola, filha-dum-raio, ler o que me falta de Vergílio Ferreira, vestir cor, deixar de contribuir para quem gosta de se lamentar sem escolher nunca uma solução, venerar os mortos pela alegria e jamais pela dor, cobiçar os quadros do Eduardo Luís, do Palolo, do Ângelo de Sousa, do João Dixo, pedir por um Armando Azevedo e outro António Olaio, escrever meu livro novo, escrever sobre o que o medo me faz, não ter mais medo, ser tão diante do perigo que não tema o que acaba.

Não estou em paz com a música rock nem com a política. Não gosto de mais de viajar sozinho. Não quero ir a colóquios falar de inteligência artificial nem de mercados futuros. Só sei falar dos meus livros e só me apetece falar de entender o medo até não o ter. Mais me apetece ouvir os outros. Ver como falam os outros que frequentam o mundo num jeito absolutamente distinto do meu.

Queria saber de quem eram as muitas centenas de livros que abandonaram junto do jardim de Palma de Mallorca, no lixo. Queria voltar a ver o Bergman no cinema e o Teatro Bruto a fazer contemporâneos portugueses. Queria que o Porto, num eixo com a Galiza, tivesse um museu da Língua Portuguesa, um lugar onde se documentasse o que é falar o que falamos. Adoraria ver a dona Júlia Côta e a dona Júlia Ramalho condecoradas pelo Presidente da República. Espero que, no dia de todos os santos, ressuscite o meu sobrinho.

Vou ter cinquenta e três anos de idade e quero mudar de casa, mudar de cidade, arranjar um espelho que me devolva o olhar que vi no vidro de uma loja há dias. Tão ao acaso quanto certeiro. Sem mais ilusões. Apenas a aceitação sincera do que significa já não correr, porque é sem distância o lugar onde temos mesmo de chegar. Na nova casa, na nova cidade, não esquecer de nada nem de ninguém, mas escolher melhor. Como quem decide por Bach em todas as ocasiões em que se possa ouvir algo melhor do que o silêncio.

*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia