Amarante, o Rodrigo
Há uns anos, assistindo ao concerto de Rodrigo Amarante junto ao Tâmega, escrevi deslumbrado que “Deus podia ser só assim”. Na altura, bastaria ouvir Rodrigo cantar “Irene” ou “Tardei” para sentir que o céu inteiro vinha à terra, com as suas figuras ternas e em paz. Havia paz.
Era a delicadeza, a maravilha do poema, a coisa cristalina da melodia. Em alguns instantes, de verdade, a arte pode ser tão sublime que nem sei se um deus estaria à sua altura. Estou muito convencido de que se Deus existir ele haverá de tolerar nossa estupidez e maldade só pela esperança de, vez em quando, acontecer a pura e improvável maravilha. A pura maravilha de que Rodrigo Amarante é capaz justifica a existência de todos nós, os bons e os maus, os melhores e os piores, os que ao menos entenderam e os que jamais entenderão.
Quando encontro alguém que busca sair de seu súbito inferno, esse tempo que ameaça eternizar-se, porque qualquer hora de terror se coloca como uma hipótese para sempre, digo que virá um dia melhor, virá esse instante em que se cria uma certa redenção da qual recebemos recompensa e ajuste com o sentido da vida. Afinal, viver não é sem preço mas é de valor incalculável. E tenho a impressão de muitas vezes ter sido salvo, que é o mesmo que dizer que encontrei justificação para a vida ou o seu sentido, num só quadro, num livro, num poema, na canção à hora exacta, essa companhia que é só espírito e que me sustenta como nada mais poderia.
Esta noite há concerto do Rodrigo Amarante em Penafiel e subir à cidade é romaria, peregrinação, como se fossem a lavar as almas os fiéis. É o lugar da aparição e eu ando a preparar há tempos minha vida inteira para mais este momento.
Há apenas uns dias chegou às plataformas musicais a banda sonora do filme “His three daughters”, onde Rodrigo Amarante, cantando em inglês, reitera a gentileza única. O timbre de sua voz, que é tão deixado ao ar, uma passagem sem atrito como se existisse apenas por natureza e não por intenção, inventa em mim uma estação. Um tempo do ano que é mais distante do que o outono, não é inverno, porque contém um sol de fim do dia muito longo igual ao do verão, e é tão longe que, por mais cante o amor por alguém, me explica sempre a solidão.
Tenho estado parado neste disco. Não há mais nenhuma esperança para este ano. “In time”, “Any other name” ou “Only when” já são o dinheiro com que Deus enche os cofres de seu banco. Para 2024 estamos de arrendamento pago. O mundo vale a pena só por isto.