Se naqueles dias em que mal tem tempo para estar sozinho, a irritação e o desconforto se apoderam de si, pode respirar, não é um alien. Aliás, esta é uma necessidade tão antiga como a nossa existência. A questão é que, entre os mil estímulos que hoje temos, fica mais difícil dar-lhe resposta.
Mariana Fernandes, hoje com 36 anos, lembra-se de ser ainda uma garota e de já ter este ritual bem impresso nos dias escolares: desse por onde desse, a primeira coisa que fazia quando chegava das aulas era fechar-se na casa de banho e tomar um banho demorado, vestir-se sem pressa, passar ali uns 20 minutos a descomprimir, a luz tão mínima quanto possível, só ela e o precioso espaço dela. Na altura, não percebia bem porque o fazia, na verdade também nunca pensou a fundo no assunto. Mas com o passar do tempo o porquê daquela rotina foi ficando mais claro. “Como passava o dia todo na escola, sempre com os meus colegas, era como se, antes de passar ao momento social seguinte, precisasse daquela quebra, daquele momento de relaxamento. Se não o fizesse, parecia que alguma coisa não estava bem.”
Hoje, com uma maior capacidade reflexiva e uma maturidade emocional distinta, não tem dúvidas de que os momentos a sós foram sempre uma parte importante do seu ADN. “É sozinha que me recarrego, que recarrego a minha paciência, a minha capacidade de pensamento, as minhas emoções. É como se tivesse uma barrinha, que vai diminuindo e a dada altura tem de ser carregada.” Aliás, a necessidade exponenciou-se de há uns anos para cá, desde que começou a trabalhar na área do digital e passa sete, oito horas num turbilhão de mensagens e solicitações constantes, com uma pressão brutal para que nada lhe escape. “Há dias em que saio tão assoberbada que parece que se mais uma pessoa falar comigo, nem que seja para dizer ‘estás muito bonita’, uma bomba no meu peito vai explodir.”
A boa notícia é que, com o tempo, aprendeu estratégias para gerir esta sensação de overdose social. “Muita terapia, exercícios de respiração e, se nada mais resultar, ir uns minutos para a casa de banho, sem fazer nada, sem telemóvel, só estar um pouco em silêncio.” O facto de agora viver sozinha também ajuda neste reset emocional diário. Mas se, por alguma razão, lhe tirarem esses momentos a sós ela sente-se como um comboio a descarrilar. Aliás, recentemente, teve mais um exemplo desta necessidade mandatória de uns momentos de solidão regeneradora. “Fui de férias com os meus pais, sendo que tenho uma relação ótima com eles, mas naqueles dias fazíamos coisas de manhã à noite. Então quando voltei passei um dia inteiro sozinha em casa, quase sem sair da cama. Foi claramente um reflexo de ter passado a semana toda com programas, sem ter tempo para mim.”
Este desconforto que Mariana sente quando lhe falta espaço para respirar e recarregar tem hoje um nome: aloneliness. Uma espécie de falta de solidão, por estranho que soe e paradoxal que pareça. O termo foi cunhado há uns cinco anos por Robert Coplan, psicólogo e docente de Psicologia na Universidade de Carleton (Canadá) e é descrito pela sua equipa como “o sentimento negativo que deriva da perceção de que não estamos a passar tempo suficiente a sós”.
Para melhor o entender, vale a pena mergulhar no inglês e na diferença substancial entre os termos “loneliness” e “solitude”, enunciada por João Tiago Oliveira, investigador em psicoterapia e professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. “É uma questão que, para nós, portugueses, pode ser um pouco mais difícil de entender, porque temos uma única palavra para isto: solidão. No inglês, há dois. Usamos ‘solitude’ quando se trata de algo saudável, ou seja, a vontade de o indivíduo querer estar consigo próprio, e ‘loneliness’ se nos queremos referir ao mal-estar do indivíduo que deseja ter contactos sociais, mas não consegue. Este aloneliness acaba por ser uma imagem em espelho da ‘loneliness’, ou seja, o desconforto que se sente por não se ter tempo suficiente para estar sozinho.” O docente deixa, a propósito, uma ressalva: “É importante clarificar que este aloneliness é completamente diferente do evitamento social ou da solidão como normalmente a entendemos.” Até porque, já sabemos, são inúmeros os estudos que apontam os efeitos potencialmente negativos da solidão indesejada, designadamente o desenvolvimento de quadros ansiosos e depressivos. Há até um impacto ao nível da própria longevidade.
Mas voltando ao aloneliness. Se é certo que o termo é recente, a verdade é que esta é tudo menos uma necessidade nova na nossa existência. Isabel Lage, psicóloga clínica e educacional, lembra isso mesmo. “É verdade que muitas vezes a evolução humana, e desde logo a própria comunicação, foi possível porque nos organizámos em grupo, mas começámos por funcionar de forma individual e ao longo de séculos passámos muito tempo sozinhos. Lembro-me de ver um documentário, que era uma trajetória evolutiva da espécie humana, e o que se percebia era que assim que foi possível garantir alguma segurança, tenha sido por força do fogo ou de um abrigo, e pudemos deixar de estar sempre alerta, este tempo de estarmos sozinhos aumentou. Esta interioridade, esta necessidade de pensar e dar profundidade às coisas, está inscrita na nossa história desde o início.”
Ainda que, sim, a voragem da vida moderna, e este turbilhão de imediatismo e estímulos em que vivemos, possam exponenciar a necessidade de estarmos a sós. A especialista, que integra a direção nacional da Ordem dos Psicólogos, aprofunda a questão. “Antes, tínhamos muito mais momentos de ausência de estímulos. Que mais não fosse nas viagens de um lado para o outro. Não havia Internet, nem telemóveis, nem auriculares. Logo, havia mais momentos em que estávamos só connosco. Agora, como as oportunidades para isso acontecer são menores, como o mundo moderno está a diminuir a possibilidade de satisfazermos esta necessidade de forma natural, temos de o fazer de forma mais intencional. E isso pode levar-nos a crer que esta necessidade é algo recente. Mas não. É uma necessidade constante e biológica.”
E afinal, porque é que este tempo para nós é tão importante e que funções ele desempenha no nosso bem-estar? “Ajuda, sobretudo, ao nível da regulação da energia e, por consequência, da regulação emocional. Sempre que estou a responder a solicitações, isso tem um custo cognitivo e emocional, tenho de descodificar o pedido, reagir, tomar uma decisão, fazer um follow-up, logo a seguir já estou noutro tema. Isto do ponto de vista cognitivo é exigente, implica a ativação constante de uma função executiva. Por sua vez, isso requer energia e implica um desgaste natural.” E vai também ter um impacto ao nível da regulação emocional. Afinal, quem nunca sentiu que “explodiu” com um colega num dado dia porque estava exausto e assoberbado?
Por isso, a psicóloga lembra. “Entre todas as funções, tem de haver momentos de descanso. Só descansarmos quando dormimos é contranatura. Esta necessidade não deve ser vista como algo bizarro ou como uma ‘trend’. É algo natural e produtivo.” João Tiago Oliveira acrescenta que o tempo a sós é fundamental para “o autoconhecimento e a autorregeneração”. “Ajuda a regular emoções, a baixar os níveis de ansiedade, a organizar-me.” E recorda que a necessidade de estar sozinho varia de pessoa para pessoa, de acordo com as preferências e as características de personalidade. Pode até haver uma flutuação ao longo do tempo, de acordo com o momento que a pessoa vive. É comum, por exemplo, que, quando nasce um filho ou quando surgem fases de maior exigência profissional, haja uma maior necessidade de estar sozinho. E é algo muito premente na adolescência.” lm