Agarrar os livros
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Esta semana fui abençoada por uma mensagem matinal que dizia: “A mãe sabia que se empilhasse todos os livros que vendeu numa só torre, teria 45 quilómetros de altura?”. O carinho do gesto e a imaginação da missiva aqueceram o meu coração. Como sou pouco dada a números e sofro de vertigens, respondi: “Mas seria uma torre tão alta e estreita, que ninguém poderia subi-la.”
Quem não tem em casa livros que nunca leu, à espera de uma oportunidade para serem descobertos, saboreados e depois partilhados com alguém que amamos? Um livro nunca aberto lembra-me as raparigas que ninguém ia buscar para dançar nas festas de garagem. Tive a sorte de crescer nos anos 1980, com matinés no Rock Rendez-Vous onde, sempre que tocava um slow, casais de namorados faziam concursos na pista para ver quem conseguia dar o beijo mais longo. Tive a sorte de dançar slows nas boîtes antes de serem discotecas e de enviar e de receber cartões que começavam sempre por “O Amor é…”. O amor escrevia-se em cartas e bilhetes deixados na caixa do correio ou no vidro do carro.
Nos anos 1980 lia-se pouco em Portugal. Salazar sempre considerou mais importante preparar as elites do que educar o povo. A literatura tornou-se uma arma de contestação durante o Estado Novo; poetas e escritores eram chamados à sede da PIDE para desincentivo, ameaça ou castigo sempre que as suas obras eram consideradas desapropriadas ao tom apolítico e passivo no qual Salazar queria manter os espíritos. Era o Portugal do modo funcionário de viver que O’Neill tão bem descreve. Lembro-me de crescer num país a preto e branco, mesmo depois de ter chegado a televisão a cores, com barracas nas traseiras dos prédios que tardaram em desaparecer e rebanhos de ovelhas que atravessavam a cidade.
O país foi acordando aos poucos, a Expo 98 deu um grande empurrão a Lisboa e no início do milénio os portugueses acordaram para os livros. A leitura de romances massificou-se e aquele objeto, outrora nas mãos de professores, de intelectuais e de artistas, passou para o cidadão comum que o lia no metro e na sala de espera das urgências. Os livros entraram na moda, eram divertidos, com capas refrescantes, serviam de tema de conversa entre amigos e família, juntando diferentes gerações em volta de um título. Depois chegaram as redes sociais, os smartphones e mais tarde as plataformas de streaming. A ficção emigrou para os ecrãs individuais e o romance, vivido ou lido, passou a existir na ponta dos dedos.
Tento imaginar a torre de 45 quilómetros de altura e toda a inutilidade que representa. Esta não é uma crónica derrotista, é antes um apelo ao que é verdadeiramente valioso e que vai ficar para o futuro. O livro físico será sempre um tesouro para qualquer país, num mundo esventrado pela tirania do virtual. Os grandes livros constroem grandes nações e fortalecem a identidade nacional. Não seríamos o povo que deu mundos ao mundo sem “Os Lusíadas”.
Hoje já ninguém dança slow, mas o romantismo que corre nas veias dos portugueses, aquela vocação para o drama que tanto admiramos em Camilo, continua a respirar na ficção nacional. É em nome de todos os escritores que escrevo, para que os portugueses não se afastem da palavra escrita em português.