Joel Neto

A vil condição


No hall do aeroporto, por onde o Artur circula agora com total à-vontade – empurrando um trolley como a um carrinho de supermercado, seguindo um garoto que tem uma mota de miniatura, pedindo “mais pruta” de cada vez que se lembra dos pacotinhos de polpa de fruta que enfiámos na mochila –, detemo-nos a certa altura diante da loja. É o aeroporto de uma pequena ilha a meio do Atlântico, com uma só loja disponível para os impulsos dos turistas, mas podia haver cinquenta que as crianças continuariam a parar para ver “a baca” e “o piu-piu” de peluche pendurados àquela porta.

Por detrás do balcão, uma rapariga boceja. Acabou de atender duas estrangeiras, com quem foi simpática, embora egocêntrica. As senhoras deram por si curiosas sobre a receita da queijada da Graciosa, à venda em caixinhas seladas de cartão, e a todas as perguntas a rapariga respondeu na primeira pessoa do singular. Entretanto, e como eu não me aproximei, volta ao telemóvel. Nem por uma vez olha para o Artur: levanta os olhos para mim quando me desculpo por o miúdo se ter posto a tirar os ímanes do expositor – e logo regressa ao telemóvel. Desloca-se uns centímetros para o lado quando o pequeno se estica balcão acima, na intenção de filar uma caixa de queijadas – e retoma o seu inexpressivo scroll.

É indiferente a este bebé, talvez a todos os bebés, e a dado momento eu pergunto-me se haverá alguma condição mais deplorável do que a da indiferença a um bebé.

Eu já fui indiferente a um bebé? Acho que sim, que já fui. A certa altura da vida, só a ideia de voar perto de um bebé me contrariava: era garantido que ia haver berreiro. Portanto, não é garantido que a indiferença a um bebé constitua um ser, mais do que um estar – uma manifestação de cansaço, um compromisso com a respectiva inexistência, uma proclamação de auto-importância. E, no entanto, resta isso de se ser capaz de estar ali, frente a uma criança que brinca, tão sem dolo ainda, descobrindo o mundo, e de nem sequer se olhar para ela.

Talvez com dor, mas ainda assim. Ser-se indiferente a um bebé é ser-se indiferente à inocência. É cruzarmo-nos com a própria esperança, com o que pode restar de esperança depois de toda a esperança ter morrido, e sermos capazes de dominarmo-nos com tal eficiência que nem as nossas micro-expressões nos traiam. É ser-se indiferente à beleza, e eu já nem me lembro bem do dia em que estive aí. Talvez pudesse ser esse, se me coubesse escolher, o retrato da minha vida: ter chegado ao ponto em que não me consigo lembrar do dia em que fui indiferente a um bebé. Em todo o caso, apetece-me abraçar todos aqueles que o logram – há muito, para sempre, ou só num ano mau das suas vidas.