Mais de 200 mortes, dezenas de milhares de casas e carros destruídos, infraestruturas colapsadas, um rio de destruição como não há memória. A tragédia que se abateu sobre a Comunidade Valenciana resultou de um cocktail explosivo entre a força da Natureza, potenciada pelas alterações climáticas, e a incúria da ação humana. E sim, há lições importantes a reter.
Um rio furioso de água castanha a jorrar pelas ruas, revolto e indomável, a arrastar com ele carros parcialmente submersos, que vão avançando aos repelões, movidos pela força bruta da água, e depois se amontoam, um após o outro, formando montanhas que são um retrato desconcertante da tragédia. Aldeias inteiras inundadas, estradas e campos cobertos por um denso manto de lama, um nível de destruição e caos que não julgávamos possível, e logo aqui aqui ao lado, em Espanha. O rescaldo da “tempestade do século” é aterrador: mais de 200 mortos confirmados, quase uma centena de pessoas por encontrar, cerca de 70 mil casas arrasadas, mais de 100 mil carros danificados ou destruídos, um sem-fim de infraestruturas colapsadas, de abastecimento, de comunicações, de transporte, fachadas e paredes que desmoronaram, até uma ponte que não aguentou o ímpeto selvagem das águas e desabou com estrondo.
Os números dão uma ideia mais precisa do dilúvio: na região de Valência, onde os danos provocados pelas enchentes foram particularmente letais, houve várias localidades onde em oito horas choveu tanto como num ano. A comarca de Horta Sud, composta por pequenas comunidades que se estendem por uma dezena de quilómetros a partir do sul da cidade de Valência, foi particularmente fustigada, com a cidade de Paiporta a assumir-se como rosto maior da catástrofe. Só aí, nesse município espanhol, foram já encontrados mais de 70 corpos. E o elevado número de desaparecidos diz que a contagem dificilmente ficará por aqui. Enquanto a Comunidade Valenciana procura, aos poucos, colar os cacos e reagir ao pesadelo, uma pergunta inevitável ecoa: como foi possível?
Para Maria José Roxo, professora catedrática do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, cuja investigação se centra em temáticas como a desertificação, as mudanças climáticas e as catástrofes naturais, não há dúvidas: o que aconteceu em Espanha, e em particular na região de Valência, foi uma “tempestade perfeita”. “Houve uma associação inequívoca entre a força e o poder da Natureza e as atividades humanas no território que potenciaram os seus efeitos”, resume. Mas comecemos então pelo fenómeno meteorológico que ali se registou, com particular intensidade entre 29 e 30 de outubro, e que é vulgarmente apelidado de DANA – acrónimo de “Depresión Aislada en Niveles Altos”, em português, “depressão isolada de altos níveis” -, ou simplesmente “gota fria”.
Susana Cardoso Pereira, professora no Departamento de Física da Universidade de Aveiro, na área do clima e das alterações climáticas, e investigadora no Centro de Estados do Ambiente do Mar (CESAM), detalha o fenómeno. Antes, vale a pena enunciar dois conceitos fundamentais: o de corrente de jato e o de onda da Rossby. A corrente de jato é um fluxo de ar que circula na alta atmosfera, ao longo de latitudes específicas, com trajetos ondulantes. Estas ondulações são as tais ondas de Rossby. “Imaginemos uma corda em movimento ondulatório, vai ter uma crista e uma cava”, sugere a docente. “Nas cavas das ondas de Rossby surgem, por vezes, zonas de baixa pressão que acabam por se desprender da corrente de jato e ficar isoladas, podendo persistir durante algum tempo num mesmo local, dependendo das condições atmosféricas. Forma-se então a chamada ‘gota fria’ [ou DANA].” Ora, quando essa bolsa de ar frio se cruza com uma superfície de ar quente e húmido, o resultado é uma enorme instabilidade.
“Estes são fenómenos que acontecem frequentemente em zonas costeiras, por causa dos contrastes térmicos que há entre a superfície do oceano e a Terra. A instabilidade provocada pelo contraste térmico vai gerar uma rápida condensação [passagem do estado gasoso ao estado líquido] e a libertação do calor latente dá origem à formação de grandes nuvens convectivas, as chamadas cumulonimbus, que por sua vez originam fortes chuvas, trovoadas e granizo.” Junte-se a isso o facto de estes sistemas terem um caráter quase estacionário (contrariamente a outras tempestades que se movimentam depressa) e assim se percebe a concentração absurda de água numa área relativamente pequena. Segundo os dados da Agência Estatal de Meteorologia de Espanha, só em Chiva, município da província de Valência, caíram quase 500 milímetros de água em algumas horas (para se ter uma ideia, a precipitação no Baixo Alentejo ao longo de um ano completo não chega aos 400 milímetros). Falta dizer que a “gota fria” é um fenómeno característico da orla mediterrânica e que ocorre com particular frequência no fim do verão e no início do outono, precisamente por causa das altas temperaturas à superfície.
E trata-se de um fenómeno recente? Nada disso. José Carlos Ferreira, professor no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigador do MARE (Centro de Ciências do Mar e do Ambiente), da Nova, é perentório. “As pessoas têm de ter noção que este é um fenómeno comum, que inclusive acontece também no Alentejo e no Algarve. Em 1975, em Faro, choveram mais de 275 milímetros num só dia. As correntes de vento húmido e quente chegam à terra, sobem, encontram a gota de ar frio, e temos uma espécie de panela de pressão que, em dadas condições, causa bastante precipitação, é um fenómeno que ocorre com bastante frequência.” Também em Valência, está longe de ser novidade. Tanto que os jornais espanhóis se apressaram a recordar outros eventos semelhantes ocorridos em 1982 e 1987, por exemplo. O “El Mundo” adiantou mesmo que só no dia 11 de setembro de 1996, caíram na localidade valenciana de Tavernes de la Valldigna 520 milímetros de água.
É que, no caso da zona de Valência, há ainda “características físicas que dão a tónica para este desastre”. Quem o diz é Maria José Roxo, que, além de investigadora, é uma conhecedora profunda da região, por conta dos incontáveis verões que lá passou, em trabalho de campo. E quais são essas características? Por um lado, o facto de estarem em causa “rios de regime torrencial”, com caudais reduzidos ou nulos durante o verão e muito elevados nas épocas de maior precipitação. Por outro, o facto de se tratar de “um território altamente contrastado, com altas montanhas e encostas muitíssimo escarpadas, que compactam com planícies muito baixas”. O que significa que “quando há chuvas muita fortes, há uma carga de materiais e fragmentos rochosos que vão sendo arrastados e que vão contribuir para engrossar o caudal.”
Alterações climáticas, urbanização, ordenamento
Ora, não sendo novos, há hoje condições para estes fenómenos se registarem com mais frequência e intensidade. É aí que entra a força da emergência climática. José Carlos Ferreira explica. “O Mediterrâneo está hoje mais quente, o que faz com que haja muito mais vapor de água e se formem nuvens muito altas e carregadas. Isto dantes acontecia eventualmente de 15 em 15 anos, agora é mais frequente. Estes fenómenos muito violentos, com elevados caudais de ponta e cheias muito rápidas [as chamadas ‘flash floods’], estão a tornar-se cada vez mais comuns.”
Mas houve outros fatores a contribuir para a dimensão da tragédia humana e material que se abateu sobre Valência. É a tal associação entre a força da Natureza e as atividades humanas erráticas que Maria José Roxo enunciava no início. E que passam sobretudo pelas questões da urbanização e do ordenamento do território. “Há naquela região vários rios, que têm o nome de ramblas, cujos leitos começaram com o tempo a ser ocupados pelas pessoas, não só com culturas, mas também com casas. Canalizaram-se estas ramblas, criaram-se estrangulamentos de cursos de água que não podiam ter sido feitos daquela forma, foram domesticados e obrigados a correr para onde os seres humanos queriam. Esse para mim é o grave problema, a má ocupação do território. Porque, depois, perante um fenómeno destes, o rio vai extravasar para estas zonas.”
A este acresce um outro ponto, relacionado com o ordenamento do território. “A região de Valência é muito conhecida pela produção de citrinos, há uma enorme quantidade de pomares, quer na parte baixa, como em zonas mais escarpadas. E isto tem consequências. Uma das coisas que impressiona nas imagens é a quantidade de lama, que mostra que na enxurrada foram arrastados grandes pedaços de solo. Eles vêm das zonas agrícolas e são resultado da destruição do solo nas montanhas, à custa da agricultura intensiva.” O processo é fácil de entender: os solos vão-se impermeabilizando – seja por culpa da agricultura intensiva ou da construção massiva – e perdem a capacidade de absorver a água. Conclusão: ela escorre montanha abaixo. Há ainda um outro fator que importa notar, que se prende com os fogos que lavram na região durante os meses mais quentes. E que fazem “com que não haja um coberto vegetal que proteja o território.”
José Campos e Matos, professor do Departamento de Engenharia Civil da Escola de Engenharia da Universidade do Minho, e coordenador de vários estudos sobre as “flash floods” em zonas áridas e semiáridas, também foca estes pontos. E sublinha dois conceitos essenciais: exposição e vulnerabilidade. “Com os dados que temos, e que obviamente precisam de ser ainda mais estudados, o que me parece é que as infraestruturas que existiam, desde logo de transporte, drenagem e escoamento da água, não foram devidamente dimensionadas para uma situação de um evento extremo como este que ocorreu.”
A isto acresce o facto de muitas das localidades que vimos completamente alagadas estarem localizadas em zonas de alta exposição. “As áreas onde houve os maiores danos eram zonas de leito de rio. O que significa que houve, na altura em que foram construídas, uma intervenção que parece não ter acautelado situações destas. Aqui entra a questão do planeamento. Por alguma razão, existem os planos diretores municipais, que impossibilitam a construção em dadas zonas, as reservas agrícolas, as reservas ecológicas, as bacias de cheia. Sempre que temos uma intervenção deste cariz no território, estamos a aumentar a vulnerabilidade.” Em suma, parece claro que houve falhas tanto ao nível da conceção de infraestruturas – por não terem sido construídos pavimentos drenantes, por exemplo – como do planeamento (reduzindo as zonas de exposição), eventualmente até da manutenção.
“E ainda há um terceiro fator, que tem a ver com a preparação das pessoas e das organizações, nomeadamente da própria Proteção Civil.” Vale a pena lembrar que o primeiro aviso emitido pela Proteção Civil da Comunidade Valenciana surgiu só pelas 20.10 horas locais, quando “já havia estradas cortadas e localidades inundadas”. Maria José Roxo não poupa críticas aos decisores políticos. “Não se compreende que hoje tenhamos tecnologia tão avançada ao nosso dispor e não consigamos salvar vidas. É triste e é lamentável. Os decisores políticos têm de ser pessoas competentes, têm de meter na cabeça que em qualquer circunstância que diga respeito a fenómenos extremos, há duas coisas fundamentais: uma é a prudência, outra é a precaução. Têm sempre de pensar que vai acontecer o pior. O número de vítimas teria sido muito mais reduzido se os sistemas de alerta tivessem funcionado. Há aqui um somatório brutal de erros de decisão.”
E quanto às infraestruturas, o que há a fazer? Para José Campos Matos, a resposta está sobretudo nas chamadas “nature-based solutions” (soluções baseadas na Natureza). Que no fundo passam por “deixar a Natureza percorrer o seu caminho”. “Temos cada vez mais de adaptar as infraestruturas à Natureza, de estudar o que existe e ajustar ao que pode acontecer. De apostar num dado tipo de vegetação, num dado tipo de solos, que drenem melhor. Mas o primeiro passo para diminuir este tipo de eventos é mesmo não construir em zonas de risco. Se existe um caminho imposto pela Natureza, não há que o alterar.”
José Carlos Ferreira, que tem estado envolvido em projetos deste âmbito, designadamente no município de Setúbal, acrescenta que “é preciso criar um território esponja, dar tempo à água de circular, de se infiltrar, apostar em florestas para absorver a água, em áreas urbanas mais permeáveis, com um asfalto permeável, com mais áreas verdes”. Outra solução passa por “renaturalizar os rios”, ou seja, restaurar o seu espaço natural. “Muitas cidades, na Alemanha, por exemplo, já estão a voltar a optar por ter leitos de cheia, a renaturalizar, a permeabilizar, a retirar alcatrão e asfalto.” E ainda há a hipótese de criar bacias de retenção nas zonas mais altas, como de resto está previsto no Plano Geral de Drenagem de Lisboa, cujas obras deverão ficar concluídas no final do próximo ano.
Até porque, sim, o risco de um evento destes se abater sobre Portugal é real e deve ser acautelado. “Temos de nos lembrar, por exemplo, das cheias dos anos 1960 na região de Lisboa, em que todas as bacias se transformaram em autênticas linhas de água, com muitas mortes a registar. Nada impede que isso volte a acontecer. Com a agravante de que entretanto artificializámos os solos.” Maria José Roxo concorda que o risco é real. “Não temos características geográficas tão vincadas como as da região de Valência, mas este tipo de fenómenos já aconteceu no território português, sobretudo no Sul. E sim, estamos vulneráveis porque, na realidade, em Portugal cometeram-se os mesmos erros. Um exemplo claro é o da cidade de Albufeira.”