A prisão psicológica que é a chantagem

O músico P. Diddy, que está em prisão preventiva desde setembro

O caso do rapper norte-americano Sean “Diddy” Combs é o reflexo do muro de silêncio que se ergue em torno de quem é ameaçado e que se cala para se tentar proteger. Porque é que cedemos perante chantagistas? O controlo, a vergonha e o medo do julgamento social entram na equação.

O caso abalou os Estados Unidos e correu o Mundo. O músico norte-americano Sean Combs, conhecido como P. Diddy ou Puff Daddy, em prisão preventiva desde setembro, está acusado de comandar um império de crimes sexuais, abusando de mulheres e de homens (há também menores à época entre as mais de 100 vítimas que o acusam) durante anos, desde a década de 1990, em festas organizadas por ele. As vítimas seriam drogadas e coagidas a manter relações sexuais com prostitutos ou com o próprio rapper e os encontros eram filmados. Essas imagens serviriam, depois, para o artista as chantagear para manterem o silêncio. E as vítimas calaram durante anos. O processo, além dos abusos que destapam o véu de uma indústria coberta de manchas negras, traz para o debate a questão da chantagem. E este é apenas um exemplo entre muitos. Porque é que cedemos, afinal, a chantagistas?

“A palavra-chave do processo de chantagem é o medo, o medo que a chantagem gera na pessoa. Um medo que tem quase um efeito debilitante na capacidade de tomar decisões racionais. É esse medo que impede a vítima de agir”, começa por explicar Ricardo Barroso, psicólogo da justiça, professor na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que trabalha em programas com agressores sexuais, com vítimas e também na área da prevenção da violência com jovens. “Há uns tempos li um artigo que dizia que a chantagem é como uma prisão psicológica. A pessoa antecipa que não consegue fugir da situação ou que essa fuga pode ter resultados ainda piores e entra num processo ainda mais debilitante que é o silêncio.” Filipa Costa Macedo, psicóloga clínica, concorda e vai ao princípio de tudo. A chantagem, quando há uma relação com o chantagista ou agressor, diz, tende a ser algo progressivo, subtil. Ou seja, “o agressor começa por ser uma pessoa sedutora” até conquistar uma posição de controlo. No caso que envolve P. Diddy, a psicóloga acredita que “ir a estas festas fazia parte desse movimento sedutor, provavelmente muitos iam por deslumbramento, até por uma promessa de maior estrelato”. E mergulhavam num mundo de exageros e excentricidade. “Depois vem a chantagem e o medo, o medo da minha imagem perante amigos, perante família, neste meio mediático também perante o público, pode arruinar uma carreira. Muitas vezes também tem a ver com um sentimento de vergonha e de culpa pelo que aconteceu. Algo que é comum a casos de violação, em que o sentimento de humilhação é enorme. E pode haver a sensação de que, se isto não se souber, então não aconteceu.”

O silêncio torna-se, por isso, estratégia de autopreservação. “A pessoa acha que manter o silêncio, ficar quieta, obedecer à chantagem de que está a ser alvo é a forma de se proteger, quando, na verdade, agrava mais o problema. Porque o agressor vê este resultado como um sucesso”, sublinha Ricardo Barroso, pese embora reconheça que é muito difícil não ceder, “o medo do julgamento social, de ser tornado público, é paralisante e leva a que as pessoas calem durante muito tempo, para evitar a vergonha e a humilhação”. Mas para entender o silêncio das vítimas, também é preciso perceber o perfil de um chantagista. “São tipicamente manipuladores, calculistas, pessoas de grande frieza emocional e que estabelecem um grande controlo sobre as vítimas, aproveitando-se das suas vulnerabilidades. No caso dos abusos sexuais, também é comum o agressor induzir culpa, ‘foste tu que vieste ter comigo’ ou ‘não fiz nada que não tivesses gostado’.”

Recentemente, o psicólogo esteve na Interpol, “para perceber como funcionam muitos crimes online”, um deles é o “sextortion”. “Que se baseia precisamente em usar imagens íntimas, fotografias ou vídeos, como chantagem. Algo que acontece muito no contexto do fim de uma relação amorosa ou em aliciamentos que se fazem nas redes sociais com adolescentes, para que enviem imagens suas”, refere Ricardo Barroso, que avisa que é preciso muito cuidado. O primeiro alerta do psicólogo é para “não partilhar conteúdos íntimos online ou, sendo feitos no contexto de uma relação, ter controlo sobre onde estão armazenados, até porque não se sabe o amanhã”. O segundo é não ceder à chantagem logo desde o princípio. “O agressor tende a explorar o medo da vítima e o ideal é não ceder nem um bocadinho, fazer logo denúncia, a entidades policiais ou a alguma entidade, como a APAV, para que a manipulação não escale cada vez mais.”

Mas a chantagem é um mundo de várias cores, com múltiplas facetas. Acontece no contexto da violência doméstica, é a chantagem emocional, em que a vítima não distingue o que é amor do que é controlo. Ou no contexto das empresas, “por exemplo em crimes económicos ou fraudes, com a ameaça de expor informações comprometedoras da pessoa que pode falar e que podem destruir a sua carreira ou reputação”. “Aqui a motivação é financeira. Mas há uma coisa que é transversal, a chantagem é sempre uma forma de obter alguma vantagem”, sustenta Ricardo Barroso.

Nesta equação, será que o mediatismo pesa quando se trata de ceder ao chantagista? Sim e não. “No fundo, a ameaça neste tipo de casos mediáticos centra-se muito na humilhação brutal perante a opinião pública. Quanto mais visibilidade pública a pessoa tiver, mais intenso pode ser o efeito da chantagem”, assinala o psicólogo. Mais ainda no contexto atual de redes sociais, em que os comentários são implacáveis, em que há o caráter viral destas exposições públicas. Ainda assim, e apesar do peso da fama, Filipa Costa Macedo acredita que a chantagem tem sempre um efeito devastador. “As pessoas, à sua escala, dão importância ao seu meio, ao seu núcleo familiar, de amigos, de colegas de trabalho. As pessoas famosas têm a componente adicional da imagem pública. Mas, no geral, tendemos a valorizar aquilo que vai ter impacto no nosso meio”, seja ele mediático ou não.

E sim, o medo paralisante, já aqui abordado, vai ao ponto de nos calarmos perante atrocidades que sabemos que estão a acontecer. “Veja-se o caso dos abusos sexuais na Igreja, em que foi preciso esperar tantos anos para que as vítimas ganhassem coragem para falar”, recorda a psicóloga. O exemplo vem a propósito de uma questão: depois de tanto tempo de silêncio, de aprisionamento numa teia de chantagem, o que leva alguém a falar? É uma combinação de fatores, internos e externos. “A sensação de outra pessoa já ter falado, de se criar uma comunidade, de uma maior proteção” é um dos gatilhos. Mesmo que o medo da exposição não caia, “por ser feito em grupo, por haver uma rede de apoio, um sistema de denúncias, torna-se mais fácil”. “No caso de P. Diddy, ele agora está preso e a sua capacidade de atuar vai ser menor, o que aumenta a coragem e o sentimento de que agora ‘vou fazer com que isto não aconteça a outras pessoas’”, acrescenta Filipa Costa Macedo.

Ricardo Barroso segue-lhe o raciocínio. “Faço parte do grupo VITA, que está a lidar com os abusos no contexto da Igreja Católica, e o facto de haver uma entidade independente para ouvir facilita o processo de denúncia.” A par disso, as mudanças a nível social, político e legal também contribuem. “Começa a haver um ambiente sociocultural mais propício às denúncias. Embora ainda não estejamos no contexto perfeito – isso percebe-se quando ouvimos que a vítima ‘quer é dinheiro’ ou ‘tanto tempo depois é que fala’. Mas voltando ao ponto, o movimento Me Too ajudou na mudança. É certo que a chantagem pode ter contornos e acontecer em contextos diferentes, no trabalho, na família, no desporto, na escola, mas a base é a mesma.”

Outro elemento importante é o amadurecimento, o aumento da resiliência psicológica da pessoa que foi alvo da chantagem. “Quando percebe que o poder do chantagista está no seu silêncio, quando percebe o abuso que foi cometido sobre ela, há um ponto de viragem e procura falar quase para se libertar.” É a noção de que não se pode viver com o fardo do silêncio para sempre.