Ser familiar de bombeiro é um limbo constante. Por um lado, há o orgulho que não cala. Por outro, há o medo, a inquietação que só sossega quando eles (e elas) entram pela porta adentro. Relatos de dias de admiração e angústia.
Houve ali uns momentos, ao primeiro fôlego daquela manhã doentia em Albergaria-a-Velha, distrito de Aveiro, em que Mariana Rios, 30 anos, ainda se convenceu que aquela podia ser uma segunda-feira como as outras. O companheiro, Fábio Marques, de 36, tinha sido chamado para combater o fogo na tarde anterior, mas faz tempo que ela se conformou com as saídas de rompante, as ausências prolongadas, a inquietação miudinha de quem teme mas confia. Dormiu relativamente bem, começou a preparar os filhos, Ariana tem três anos, Leonardo tem seis, havia de os levar à escola e depois seguir para o trabalho. Achava ela. Só que um telefonema de Fábio naquela segunda-feira, 16 de setembro, veio inverter o guião. “Quando vi como as coisas estavam, a minha preocupação foi ligar e dizer-lhe: ‘Não vás levar os meninos, não vás para o trabalho, não saiam de casa.’ Porque já estava a perceber que ia ficar um caos, já começava a haver confusão nas estradas, sabia que se saísse ia ficar aflita.” Mariana ainda ficou confusa – “eu não tenho mais dias de férias”, respondeu-lhe, à deriva -, mas a ficha não tardou a cair-lhe. “Nessa altura, percebi que tinha de se passar algo realmente grave, porque ele nunca me tinha dito aquilo.” Quase em simultâneo, foi para a parte exterior da casa, viu o céu tomado por um imenso manto de fumo negro, como se alguém tivesse abolido o dia e imposto a noite por decreto, logo às primeiras horas da manhã. “Comecei a regar o jardim porque com a intensidade das chamas e o vento iam caindo uma série de cascas de pinheiro, ainda a arder.” Na verdade, o fogo não andou muito longe, houve um mato a uns 200 metros que foi arrasado pelas chamas, está todo pintado de negro, é impossível não notar. Depois, com o ar cada vez mais pesado, foi obrigada a refugiar-se dentro de casa. “Mas mesmo com tudo fechado estava irrespirável.” E às tantas, ela, que nem é “propriamente dramática”, como faz questão de dizer, viu um filme de terror a passar-lhe diante dos olhos. “Comecei a pensar que íamos morrer aqui asfixiados. E que ia ser o fim para todos: uns por causa do fogo, outros por causa do fumo.”
Para piorar, ouvia as rajadas de vento, impetuosas, demoníacas, inquietava-se ainda mais, pôs-se num estado de nervos tal que a ansiedade virou indisposição física, passou uma boa parte do tempo a correr para a casa de banho. A ideia de morrerem dentro de casa, sufocados por um manto de fumo, acabaria por a largar. Mas a imagem de Fábio no meio daquele inferno à solta vinha-lhe uma e outra vez à cabeça. “Normalmente, quando ele vai, sinto alguma preocupação, mas sei que é cuidadoso e que à partida está tudo controlado. Desta vez não, não por não confiar, mas por ter medo que o fogo fosse maior do que ele.” Olhando ao cenário, entende-se o receio. O concelho está tristemente habituado aos fogos, mas ninguém se lembra de labaredas tão indomáveis como estas. Estima-se que mais de 80% do território florestal tenha ardido, mais de 40 casas foram destruídas, quatro pessoas perderam a vida (duas delas já no hospital, na sequência dos ferimentos graves causados pelo fogo). Para conter os nervos, Mariana ligava quase de hora a hora, umas vezes Fábio atendia, outras não conseguia, ela notava-o “aflito”, tinha a voz rouca, estava exausto, parecia impotente. Ele não o esconde, foi possivelmente o cenário mais duro que já enfrentou, mesmo que seja bombeiro há 17 anos, profissional há quase oito, chefe de uma equipa de intervenção permanente, mesmo que já tenha combatido inúmeros incêndios, o de Pedrógão incluído. Desta vez, saiu de casa no domingo à tarde, voltou quatro dias depois, pelo meio foi dormindo duas, três horas no quartel, às vezes nem isso.
E o cansaço não foi o pior. Nem o facto de ter ficado com queimaduras ligeiras no pescoço e nas mãos. Nem sequer aquele momento em que, chamados a avaliar a situação na Foz, entraram “na boca do lobo” e se viram rodeados pelas chamas. “Vimos que não havia hipótese de progredir mais e começámos a juntar as pessoas que ali iam chegando na rotunda, para as tentar manter a salvo. Estávamos cercados de ambos os lados, só com a salvaguarda de termos uma zona já queimada atrás, mas o fumo era tanto que não dava para ir para lado nenhum.” E portanto ali ficaram, passou à vontade uma hora, havia quem chorasse, quem gritasse, a dada altura o pânico era tal que até um colega teve uns segundos de desespero. “Vamos ficar aqui”, proclamou, fatídico. E ainda assim, como atrás se dizia, para Fábio isso não foi o pior. Pior foi a aflição que viu nas gentes da terra, foi o desespero de não poder acudir a todos, foram os insultos de que foram alvo. “O que mais mexeu comigo foi ver pessoal dos bombeiros a dizer: ‘Depois deste [incêndio], acabou.’ As pessoas viam os carros a passar e chamavam-nos porque havia casas a arder, mas nós temos missões para cumprir, não podíamos parar para tentar salvar todas as casas. E então insultavam-nos de tudo. Eu sei que é o desespero a falar mais alto, mas é cruel.”
Enquanto isso, Mariana, a companheira, procurava expiar fantasmas, da maneira que podia. “Estar com os meninos ajudou, porque tinha de tratar deles, e pelo menos durante o dia estava distraída. Eles ainda não têm grande perceção do perigo, até ficaram contentes por não ir à escola.” À noite, quando os pequenos dormiam e ela se fixava nas notícias, nas redes sociais, nos vídeos que iam sendo partilhados nos vários grupos, a inquietação aumentava. A dela e não só. Maria da Graça, 68 anos, mãe de Fábio, fica sempre angustiada, não o esconde, liga-lhe amiúde, às vezes ele até se irrita de tanto ligar, então reza, reza muito. Desta vez, foi ainda pior, ficou a ver as notícias até às tantas, numa das noites mal dormiu, andou ali num aperto permanente. “A dada altura, disse-me que ia para o Palhal, aquilo é assim uma cova, cheia de silvas e de tudo, fiquei muito preocupadinha, é o meu filho, peço muito a Deus por ele.” Maria da Graça tem um ar maternal e doce, percebe-se o amor ao filho só pela forma como o olha, anda “sempre com o coração nas mãos”, Fábio até diz, meio a brincar, meio a sério, que sempre que há notícias de bombeiros feridos a mãe assume logo que é ele. Ainda assim, ela jura que nunca deixa de o apoiar, quando era solteiro até fazia questão de ir todos os dias levar-lhe comida ao quartel, o orgulho infinito é palpável a cada palavra. O pai, Manuel da Silva, 73 anos, é aparentemente mais tranquilo. Não que não fique preocupado, esclarece. “Mas alguém tem de fazer este trabalho, não é?”.
O vídeo que tirou o sono a Marisela
A inquietação que aqui e ali se apodera da família de Fábio é replicada em grande parte dos lares onde há bombeiros. Ana Oliveira, psicóloga com vasta experiência de trabalho junto dos operacionais e dos respetivos familiares, reconhece isso mesmo. Ainda que a aflição ande quase sempre a par da admiração. “O combate a incêndios é um trabalho exigente, tanto física como psicologicamente, e envolve riscos para a saúde e para a própria vida. É perfeitamente expectável que os familiares sintam um misto de emoções quando estes saem para o terreno: ansiedade, medo, raiva e desespero quando vão, mas também orgulho, alívio e satisfação quando têm notícias ou quando os familiares voltam.” E sim, é também expectável que as reações sejam mais intensas no caso de “incêndios de maior magnitude ou mediatismo”. Dosear e filtrar o consumo de informação pode ser, nestes casos, uma ajuda importante. “Poder estar a par do que está a acontecer é importante, mas a exposição em demasia a imagens e vídeos pode dificultar a gestão da situação. Assim, é recomendável que a exposição seja equilibrada e que a procura de informação seja feita junto de entidades e sites oficiais.”
O poder da imagem não é um fator menor nesta equação. Marisela, venezuelana de 38 anos há muito convertida a Portugal, que o diga. É esposa de José Carlos Brito, 40 anos, arouquense de gema, bombeiro já lá vão 21, sempre como voluntário (ainda que o estatuto de voluntário implique, no caso dele, três noites de escala obrigatórias). Na terça-feira à noite, dia 17, estava já na cama quando o telefone tocou, eram precisos reforços para suster as chamas, na altura tinham já extravasado as fronteiras de Castro Daire e galgado furiosas por Arouca adentro, entraram pujantes pelo concelho de Alvarenga, ele nem hesitou, o sentido de missão e o “bichinho” falam sempre mais alto, foi logo para lá, seguiram-se 24 horas anormalmente duras. “Foi muito intenso, na altura ainda havia poucos recursos, éramos 60 ou 70 para um fogo de grandes dimensões. Quase não conseguimos comer, quanto mais descansar.” Numa das raras pausas, lá conseguiu escrever à companheira a dar notícias, enviou também um vídeo, era um armazém agrícola totalmente tomado pelo fogo, no lugar de Pirraça, por entre a negritude mesclada da noite e do fumo sobressaía um magote de labaredas indomáveis e uma estrutura já parcialmente destruída. Marisela acordou por acaso pelas seis da manhã, viu o vídeo, ficou de tal forma incomodada com aquele quadro que não mais pregou olho. “Por um lado assumi que para ele ter enviado o vídeo, era porque não estava em perigo, por outro, ao ver aquilo, fiquei preocupada”, confessa. O tal poder da imagem, por vezes potencialmente perverso.
Não que Marisela desconheça tal cenário. Há uns 20 anos, por volta dos 18, também ela entrou para os bombeiros, foi uma professora da escola que lhe sugeriu que o fizesse, achou que a bravura dos soldados da paz casava bem com a veia aventureira da garota, ela seguiu o conselho e por lá ficou (foi, aliás, nos bombeiros, que conheceu José Carlos, com quem havia de casar). Também ela sabe o que é andar no combate aos fogos, estar cara a cara com o perigo, temer pela vida. Mas desde que foi mãe, já lá vão dez anos, foi-se vendo forçada a deixar a farda no armário. Têm três filhos, Carlos, o primogénito, tem dez anos, Afonso tem oito, Benedita, a benjamim, tem três aninhos, cada qual com o seu feitio. Carlos, conta Marisela, não liga muito aos bombeiros, pelo menos para já. Porém, garante que gosta que o pai seja um soldado da paz. “Porque pode proteger as pessoas e também me pode proteger a mim”, justifica com graça. Só que também tem medo, volta e meia faz perguntas, fica preocupado. “Porque ele pode morrer”, atira, pungente. Afonso é o oposto, adora os bombeiros, até já é infante, tem uma farda em ponto pequeno e tudo, volta e meia faz pequenas formações. Ter um pai que anda no combate aos fogos “é fixe” e até ver não fica muito preocupado. “É tranquilo”, remata, enquanto Benedita segue aparentemente alheia à conversa, graças aos vídeos que vai vendo no telefone.
Para os pais é diferente. Carlos Quaresma, de 72 anos, reconhece que “uma pessoa nunca lida bem, há sempre uma aflição, ainda por cima ele quando está a trabalhar não é de ligar, às vezes ligamos nós e também não atende”. E os nervos instalam-se num crescendo, até ao momento em que o veem regressar, com a serenidade da missão cumprida. “Uma pessoa espera que corra tudo bem, claro, mas só quando chega é que ficamos descansados.” Para Maria Teresa, a mãe, de 71 anos, não é melhor. “A gente sabe que ele vai, não sabe se ele vem”, assume, direta ao ponto. Faz questão de ir acompanhando as notícias, de cada vez que vê que algo aconteceu a um bombeiro aflige-se ainda mais. “Tenho muito medo, o vento embrulha qualquer um. Mas também tenho fé, rezo muito por todos.” E assim vai resistindo à inquietação, sem ousar nunca desejar que o filho vire a cara à missão que a todos enche o peito, qual limbo permanente. “Gosto que seja bombeiro, porque ele gosta, e porque fico orgulhosa, mas claro que também fico preocupada.” Quanto a Marisela, admite que aqui e ali lhe passam pensamentos negativos pela cabeça – “as coisas acontecem, não é?” -, mas a confiança que tem no trabalho dos bombeiros, e daqueles em particular, fala quase sempre mais alto. “Sei que têm muita experiência em fogos florestais e por regra consigo manter-me calma. Acho que o facto de também já lá ter andado me ajuda a ficar um pouco mais tranquila.”
As lágrimas de quem conhece os meandros do fogo
Mas não é sempre assim. Cátia Carvalho, 36 anos, bombeira assalariada da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Leça do Balio desde o tempo da covid (antes, foi sempre voluntária), é um bom exemplo disso. Cresceu com o bichinho do combate aos fogos impregnado no ADN, a mãe foi bombeira voluntária durante anos a fio – agora está no “quadro de honra”, que é como quem diz, está aposentada -, o padrasto também, ela cresceu entre o fascínio da missão e o medo de que o fogo lhe levasse quem mais amava. Houve até um episódio que a marcou particularmente, foi na altura dos grandes incêndios que varreram Viana do Castelo, ela devia ter uns 14 anos, estava colada à televisão quando soube que havia uma série de bombeiros do distrito do Porto feridos, a caminho do hospital. Ela desatou a fazer telefonemas, primeiro ninguém sabia de nada, depois juraram-lhe que ela estava bem, Cátia acabou por descobrir que não lhe estavam a contar tudo, que a mãe era uma das bombeiras hospitalizadas. Acabou por escapar ilesa, mas o pânico que Cátia sentiu naquele momento não mais se apagou e volta à tona agora, que volta a partilhar a história.
Na tal fronteira entre o fascínio e o medo, Cátia não resistiu a fazer-se também ela bombeira. Lá conheceu Bruno Marques, 41 anos, bombeiro voluntário desde 1999, lá se apaixonaram, acabaram por casar e procriar, Enzo tem nove anos, Dinis tem seis. Antes de serem pais, chegaram a travar várias batalhas contra o fogo lado a lado, uma delas particularmente perigosa. Foi em 2011, foram chamados para acudir ao incêndio que lavrava em Montalegre, distrito de Vila Real, viveram segundos de desespero. “Estávamos na frente de fogo e éramos os dois elementos mais adiantados, o Bruno estava com a agulheta e eu a segurar a corda. De repente o vento virou e ficámos cercados pelo fogo. A sorte foi que os colegas que estavam atrás aperceberam-se e rapidamente nos puxaram pela corda.” Safaram-se os dois, não tiveram sequer mazelas, mas a experiência serviu-lhes para estabelecerem um pacto para a vida: quando tivessem filhos, não iriam nunca para um mesmo incêndio, não podiam arriscar que algo acontecesse a ambos. E assim têm feito desde então.
Mas, ainda que conheça bem os meandros do fogo, Cátia nunca aprendeu a ficar confortável com as horas que o marido passa diante das chamas. “Não lido muito bem, sobretudo desde que tive os meus filhos. Eles perguntam pelo Bruno, querem falar com ele, custa mais.” E nisto, os olhos ficam marejados, a voz ameaça falhar, a emoção toma-lhe o rosto e ela não a reprime. “E depois, quando ligamos e ele não atende, ainda custa mais. Claro que entendo que não pode atender sempre, mas é uma agonia, eles ficam ansiosos, perguntam porque é que ele não está a atender.” Desta vez, Bruno saiu domingo à noite para Canedo, em Santa Maria da Feira, terça foi chamado para Gens, para o grande incêndio que lavrou em Gondomar, quinta ainda seguiu para a freguesia de Monte Córdova, em Santo Tirso. Dias penosos, extenuantes, aqui e ali desesperantes. “Em Santo Tirso foi difícil porque tivemos de proteger casas, mas em Gens era muito fumo, muito mato, muitas casas em risco, inclusive ardeu uma oficina de autocaravanas.” Vale a pena lembrar e frisar que Bruno é voluntário, ainda por cima trabalha por conta própria, tem uma oficina dele, quando o fogo aperta há dias em que a fecha só para acudir a quem mais precisa, haverá lá melhor definição de altruísmo.
Naqueles dias de fogos e mais fogos, Cátia andou num desassossego constante, ainda por cima na segunda de manhã chegou ao quartel e soube da morte de João Silva, bombeiro de São Mamede de Infesta que conhecia “muito bem”, a notícia mexeu com ela, emociona-se outra vez, o medo fala ainda mais alto, a impotência também. “Parece que se não morremos de uma coisa, morremos de outra”, diz, desalentada. Para aumentar a inquietação, Bruno confessa que “arrisca muito”, Cátia também o sabe, ele até assegura ter sempre os meninos no pensamento, tem noção que tem de ter cuidado, mas na altura o sentido de missão fala mais alto, só mais tarde pensa no que podia ter sido. Quando é ele a ficar em casa é que não é tão afoito, Cátia conta que não pára de ligar, é como se as chamas fossem mais assustadoras quando vividas ao longe, por via da pessoa que amam. Ainda assim, não pensam virar costas, é maior do que eles, há amores que falam mais alto do que a angústia e este é um deles.