
Em Paços de Ferreira, há um ateliê onde são criadas instalações artísticas pelas mãos de reclusos. Constroem obras para festivais, para shoppings, não têm mãos a medir. Trabalham todos os dias, das nove às cinco. Em Caxias, há uma olaria de onde saem peças de cerâmica que são vendidas para todo o Mundo. São negócios e projetos de reinserção social, tudo ao mesmo tempo. Que transformam vidas e alimentam a esperança no futuro.
São onze da manhã em Seroa, freguesia de Paços de Ferreira, e Atalmiro Semana está sentado em frente à máquina de costura, desenvolto com o corta e cose, despachado como se a vida tivesse sido sempre isto. Veste uma camisola amarela, fala pelos cotovelos. Lá fora há arame farpado a lembrar a realidade cinzenta em que mergulhou, mas dentro deste pavilhão, no exterior do complexo onde moram, lado a lado, os estabelecimentos prisionais de Vale do Sousa e de Paços de Ferreira, quase dá para esquecer isso. Miro, como é conhecido, é recluso. De segunda a sexta, logo pelas nove, entra neste pavilhão, ou melhor, no ateliê onde faz nascer projetos artísticos. Dali só sai às cinco da tarde, quando tem de voltar para dentro da cadeia. Tem 51 anos e as contas estão-lhe na cabeça como uma voz ensurdecedora que não é capaz de calar. A sentença ditou 19 anos e meio de pena, 11 estão cumpridos, o resto é uma contagem decrescente permanente. E o ateliê é tábua de salvação nos dias que não correm, mantém-lhe a mente ocupada, dá-lhe esperança para o dia em que a liberdade chegar. “Já tinha conhecimentos de costura, porque o meu pai é estofador, mas aqui aprendi artesanato, tudo. Comecei a desenvolver capacidades que desconhecia. Já sou um artista”, comenta.
O projeto nasceu pelas mãos da artista Madalena Martins, que começou a carreira como designer gráfica até que se aventurou a criar peças, de candeeiros a mobiliário. As encomendas começaram a chover, não tinha capacidade de produção, falaram-lhe dos reclusos, foi bater à porta do Estabelecimento Prisional de Vale do Sousa, começou a trabalhar com presos e já lá vão 13 anos. “A diretora da prisão acredita muito na reinserção social e eu encontrei aqui mão de obra. Funcionou para ambos os lados. Os reclusos são pagos, por projeto ou à peça, e tento ser muito justa nisso”, conta a artista. A vida foi acontecendo, Madalena foi aproveitando o know-how dos presos, também foi dando formação. A reutilização de materiais é palavra de ordem nas obras que criam, já chegaram a transformar ali 50 outdoors da Super Bock em almofadas para festivais, a dada altura surgiram propostas para fazerem instalações artísticas. Recentemente construíram a árvore de Natal pouco convencional, uma estrutura de 12 metros, que está a decorar o AlgarveShopping por estes dias. Reutilizaram materiais, redes de uma instalação que tinham criado para a Rua de Santa Catarina, no Porto, além de plásticos de uma lavandaria, cerca de 400 quilos, que começaram a transformar ainda no verão.
Neste ateliê, há um bem precioso que não se encontra fora das grades: tempo. “É tudo tão natural e fluido. Estas pessoas escolhem fazer parte disto, sempre tive uma ótima relação com eles e descubro muitos talentos.” Uns vão, outros entram, agora são cinco reclusos a trabalhar no ateliê, Miro é o que conta mais tempo, cerca de oito anos. Já é braço-direito e esquerdo de Madalena, quando sair da prisão vai ser contratado pela artista, está tudo alinhavado. “Ele veste a camisola, vai para a cela pensar na melhor forma de fazermos as coisas, chega com propostas. É uma entrega muito leal.” Até já é ele quem vai descobrindo outros reclusos com vontade de trabalhar e que leva para o ateliê.
Enquanto Madalena fala, Miro vai dando um adianto ao trabalho, e eis que se aproxima, a história que o levou ali é um murro no estômago, um erro que não pode mudar e que prefere não ver estampado nestas páginas. “Foi um grande desvio na minha vida, era encarregado numa fábrica, tinha a minha vida normal, nunca na vida imaginei vir preso. Foi muito duro.” Os primeiros tempos foram uma travessia no deserto, teve de aprender a sobreviver num “mundo à parte”, agarrou-se a tudo o que podia. Leu todos os livros da biblioteca, fez o 12.º ano na prisão, acabou os estudos com diploma de mérito, até que veio a proposta para trabalhar com Madalena. “Foi aí que surgiu a minha veia artística. Este projeto permitiu-me fugir ao ambiente prisional. Não foi um escape, é um escape. Aqui não me sinto recluso, sinto-me útil, parte da sociedade.” Entrar na prisão é despir-se de tudo e o trabalho no ateliê dá-lhe motivos para continuar a acreditar em si. Miro nem sabia que levava jeito para as artes, os dias de clausura deram-lhe isso, a descoberta. “Uma coisa é fazermos sempre o mesmo trabalho, outra coisa é isto, são sempre novos desafios para chegarmos ao produto final. E tenho muito orgulho.” Pelo caminho, há muitas experiências, “não sai tudo à primeira”, desenham moldes, testam materiais, é trabalho de minúcia e paciência. No fim, vê o resultado das criações em fotos e vídeos.
A meio da conversa aparece um cão rafeiro, Miro chama-lhe Rex, de manhã compra sempre alguma coisa na prisão para lhe dar de comer. Com este trabalho, vai amealhando dinheiro, gerindo o dia a dia. “Tenho de me sustentar aqui dentro e tenho de ter dinheiro para quando vou de precária. Nunca gostei de ser carraça da sociedade, não queria que os outros me sustentassem.” Ao mesmo tempo, vai sonhando com o futuro. Casou já depois de estar preso, no ano passado, a 25 de agosto. Reencontrou uma vizinha de infância nos dias das primeiras saídas precárias, começaram a conversar, às tantas ela já o visitava na prisão, apaixonaram-se. “Arredondando as contas, faltam uns cinco anos para sair. Para quem leva onze, não é nada. Mas o que custa mais são os fins de semana, porque não estou aqui no ateliê.”
Em Caxias criam-se peças de cerâmica
As histórias de negócios focados nas artes que ganharam forma em estabelecimentos prisionais não são muitas, mas vão existindo. Se caminharmos para sul no país, em Oeiras, a espreitar o Tejo, há um edifício centenário, imponente. E por trás dos muros que se agigantam a parecer tocar o céu, dentro da prisão outrora usada pelo Estado Novo para encarcerar presos políticos, há uma oficina de cerâmica a funcionar a ritmo acelerado. João (nome fictício, como o de todos os reclusos daqui para a frente) já leva três anos no Estabelecimento Prisional de Caxias, e desata a contar todo o processo. “Inscrevi-me numa formação, foram dois meses, onde aprendi sobre técnicas de cerâmica, mas também sobre trabalhar em grupo”, relata. Aprendeu a trabalhar o barro, a conhecer os fornos, a vidrar as peças. Depois pôs as mãos na massa, o ateliê funciona duas vezes por semana, sempre à tarde. Neste momento, são quatro reclusos, ele é o mais experiente nestas andanças. Veste uma bata cinzenta, mostra os moldes, como faz a cozedura, a banca onde lixa as peças para eliminar imperfeições. Há ali taças, copos, chávenas, saboneteiras, que estão à venda online, compradas sobretudo por clientes estrangeiros, e no aeroporto de Lisboa também. Ainda produzem para hotéis ou para empresas, fizeram agora chávenas para a Delta.

João fala com amor de cada peça, como se tivesse dedicado a vida inteira à cerâmica. Aquelas tardes são horas que parecem minutos, mais houvesse e ele não hesitaria. Tem 37 anos, ainda trabalha no bar da prisão e está a concluir o Secundário, tenta ocupar todos os segundos para enganar a mente, para fugir da tristeza de estar a perder o crescimento dos dois filhos. Segundo a diretora do estabelecimento prisional, Ana Cabral, há vários projetos em Caxias, desde leitura ao teatro, com contadores de histórias ou atores profissionais a irem até à prisão, muitos em parceria com a Câmara de Oeiras. “Somos uma cadeia de preventivas, a ideia não é os reclusos cumprirem a pena aqui, há sempre saídas, os grupos não são estáveis, mas é preciso criar espaços de bem-estar. Isto contribui para o equilíbrio e até para a reflexão sobre o que os fez vir parar aqui.”
Mas o caso da cerâmica é diferente, é um trabalho remunerado, um projeto que a Reshape levou para Caxias quando lá descobriu, num pátio, uma olaria trancada a ganhar pó. A organização, que conta quase dez anos, trabalha na reinserção de reclusos e ex-reclusos, ajudando-os a encontrar emprego depois da pena. Estima-se que seis em cada dez pessoas que saem da prisão voltam a cometer crimes, o objetivo é diminuir esse número. Foi por isso que surgiu a Reshape Ceramics, em 2019. “As prisões estão cheias de pessoas que fizeram tudo errado, mas que eventualmente vão sair e precisam de oportunidades. A prisão tem de ser uma oportunidade para se transformarem”, realça Marco Ribeiro Henriques, diretor da Reshape.
Criou-se assim um negócio social que funciona dentro da prisão (ainda há um ateliê em Arroios para quando os reclusos saem em liberdade, onde lhes é garantido um contrato de trabalho). Mesmo havendo um vazio legal sobre a regulação do trabalho prisional, a Reshape paga o salário mínimo aos presos. “Porque isto não é uma ocupação, é um trabalho. Somos um negócio social, mas não vivemos da caridade de quem nos quer dar alguma coisa pelas peças. Competimos com o mercado”, sublinha Marco. O caminho não tem sido fácil, este será o primeiro ano em que haverá lucro, mas a Reshape não desiste. Só em 2024, passaram pela oficina 21 reclusos.
João é um deles. Não se quer focar no que perdeu ao cair nas malhas da prisão, antes no que vai ganhar. “O trabalho aqui permite-me não sobrecarregar a família, ter um sustento. E é gratificante ter as minhas peças a serem vendidas para todo o Mundo.” Dentro da olaria, o chão cor de tijolo está coberto de branco, marcas do trabalho. A par de João está Miguel, 40 anos, as mãos todas sujas, que vai num despacho mostrar-nos que agora também estão a fazer velas ecológicas, feitas a partir de óleo alimentar reutilizado. Foi preso em janeiro, revela que quis aproveitar o tempo atrás das grades para aprender uma arte. E Manuel, também 40 anos, logo interrompe para explicar: “Isto ajuda-nos a manter a saúde mental e a ganhar mais valências para quando sairmos daqui.” Na verdade, Manuel sempre teve um fascínio por olaria, está a adorar a experiência. Tem três filhos catraios, duas meninas e um menino. Talvez a oficina seja o segredo para aguentar a tortura de estar longe.
O mais jovem por ali é Artur, 22 anos apenas, está em Caxias há coisa de nove meses. “Tive a sorte de ser acompanhado por uma técnica que me apresentou logo a Reshape e houve a oportunidade de vir para aqui.” Nunca tinha tido contacto com olaria, aprendeu rápido à força da vontade, até se gaba das peças à família. Agarrou-se à cerâmica “para ocupar o tempo, na cela não se faz nada”. Dentro da prisão também ganhou o hábito de ler e faz exercício físico. Afinal, na rotina passada a riscar os dias que faltam para a liberdade, a arte pode ser esperança, e há projetos que dão competências e futuro, que podem ser transformadores. O que Artur diz é a prova disso. “Quando sair, se houver oportunidade, gostava de trabalhar nesta área.”