529 e a somar
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Toda a vida fui o organizadinho. Era eu quem organizava as brincadeiras de infância e os campeonatos de futebol da adolescência. Fui eu quem, iniciado ao jornalismo com uma série de outros rapazes e raparigas da minha idade, fiquei encarregado de organizar as páginas em que escrevíamos. Os meus livros de ficção, escritos boa parte deles segundo uma versão pessoal – e cada vez mais demente – do método do outline, ocupam dossiês inteiros, páginas de Excel e mesmo agendas antes de ocuparem uma só linha do Word. E, até há um ano ou dois, à vontade um quarto do meu dia era preenchido a transpor para a agenda as notas tomadas no Gmail, no Simplenote, nos post-its e onde mais se inscrevessem, a planear, replanear e planear mais uma vez o dia seguinte.
Fiz muita coisa assim na vida – de todos os tipos, dos mais variados graus de qualidade. Há ano e meio, tornei-me pai de um bebé e nunca mais consegui olhar para agenda pela manhã: passei a olhar para ela ao fim do dia, já não para ver o que tinha de fazer, mas para ver o que não tinha conseguido fazer e talvez pudesse tratar no dia seguinte. Entretanto, abri uma empresa, uma livraria que é também uma cafetaria, um centro cultural, um agregador de serviços e sei lá mais o quê – e simplesmente deixei de ter agenda. Não consegui consultá-la um dia ou dois, até que olhei para aquele inferno de notas e de cores e já não tive coragem de subir para cima do cavalo outra vez. Já que estava nisso, também aligeirei nos anotadores. Os ficheiros do Simplenote estão todos desactualizados para lá da redenção. No email, tinha esta manhã 529 mensagens por ler, e mesmo assim depois de apagar todas as de procedências sem importância. E há bocado precisei de um post-it para anotar não sei o quê, não encontrei o caderno, deixei por anotar, e agora já não me lembro do que é.
A minha perplexidade é esta: não morreu ninguém, não se perdeu nenhum emprego, não ficou nenhum imposto por pagar. Mais surpreendente ainda: embora eu me esteja a esquecer de uma série de coisas – assuntos, reuniões, telefonemas, chatices -, nada do que é de facto importante está por fazer. Para um obsessivo, é perturbador. Aparentemente, o mundo continua em frente mesmo quando eu não estou a controlá-lo. Pergunto-me, portanto, quanta energia não desperdicei ao longo destes anos todos. Podia ter-me descontraído mais, ter gozado mais, ter sido o charmoso. Mas, no fim, suspeito que é essa a derradeira aprendizagem para a fase mais importante da minha vida. E, provavelmente, a maior das aliadas na demanda por me tornar um pai decente.