Wet Bed Gang.O rap, o bairro, a selva, o novo álbum

A banda de Vialonga compõe uma história séria no panorama da música nacional. Um percurso feito de dor e libertação, terapia e superação. O novo álbum foi lançado terça-feira, agora há concertos: sábado, 25, no Campo Pequeno, em Lisboa, e 4 de março na Super Bock Arena, Porto. “Gorilleyez” salta para a estrada. E os quatro amigos voltam a levantar a sua bandeira. “Somos o grito das ruas.”

Tudo começou aqui às portas de Lisboa, nos bairros maiores do que algumas vilas e cidades, feitos de blocos de apartamentos, prédios aprumados, uns mais baixos, outros bem altos, como as torres com mais de dez andares. Em 2014, um grupo de amigos, uns do bairro de cima, outros do bairro de baixo de Vialonga, que cantavam umas músicas e jogavam à bola no mesmo campo, uniu-se e criou uma banda de rap, o irreverente movimento Wet Bed Gang.

A linguagem é dura porque assim tem de ser, a mensagem é de superação. O bairro continua a ser a casa deles. Literalmente. Por dentro e por fora. E eles – e os seus nomes de guerra Kroa (Tomás Sozinho), Gson (Gerson António), Zizzy (Pedro Osório) e Zara G (Lisandro Silva) – estão prontos para explodir em palco. Uma vez, outra vez, as vezes que lhes apetecer. As vezes que o público pedir. “Nós somos o grito das ruas. O berro mais barulhento das ruas.” É Zizzy quem descreve a bandeira da banda.

É quarta-feira de manhã, Vialonga anda na sua vida, não há grande movimento cá fora, cai uma chuva miudinha, que vai e volta, o céu não abre. Zizzy é do bairro, viveu sempre aqui, não quer sair daqui. Há uma senhora que o cumprimenta ao longe, Zizzy fala-lhe em cachupa. Já morou no 10.º andar de uma das torres de Vialonga, sem elevador. “Sou daqui. O bairro faz parte da minha história de família.” Os pais conheceram-se precisamente aqui, no bairro, na altura as casas eram atribuídas por concurso, recorda. “As minhas duas famílias, a paterna e a materna, foram escorraçadas de África.” De Moçambique. Há também essa história da sua história. Zizzy apercebe-se de um rapaz de mochila às costas que o reconhece, pára, diz-lhe que é importante ir à escola, que nunca se esqueça disso. “Puto faz-te à pista, puto faz-te à escola.” O miúdo não articula palavra, sorri com a cara toda, contente e satisfeito, segue caminho.

No mural dedicado a Rossi, fundador da banda, paredes-meias com o campo onde jogavam à bola (Kroa há de brincar que foi um ponta de lança desaproveitado), naquelas ruas por entre tantos prédios, num quadrado de cimento (e chamam-lhe o quadrado), ponto de encontro dos miúdos do bairro e palco de danças freestyle, no café-restaurante da Associação dos Africanos do Concelho de Vila Franca de Xira, no alto de uma das torres de Vialonga, com tanta cidade à volta, a banda conta a sua história num chão entranhado na pele, no ar que respiram. Na noite anterior, andavam no alto do arco da Rua Augusta, na baixa de Lisboa, a gravar um vídeo para as redes sociais. Os quatro, sempre os quatro, ao comando das operações, na escolha dos planos, dos ângulos, da narrativa que querem contar. Zizzy explica. “Fazemos tudo, as músicas, os vídeos, idealizamos as capas, os visuais, a maneira como nos apresentarmos, a estratégia de lançamento.” Sempre em cima do acontecimento, sem interferências.

A manhã está calma. Kroa recua ao passado num café de Vialonga. Há uma mulher que passa junto à mesa e pede licença para interromper. Conhece-o, conhece-os dali do bairro. “São estes os jovens de futuro, geração muito boa, são joias preciosas”, comenta e vai embora. Kroa sorri, agradece, volta à conversa, ao passado. “Íamos a concertos, a semanas académicas ver espetáculos, éramos bué de fazer as coisas em cima da hora, no último minuto.” Foi o que aconteceu naquele concerto de Regula na Semana Académica de Lisboa em 2015. Meteram-se a caminho, à pica, uns com bilhetes, outros sem, saltaram grades, pouco depois estavam à frente do palco. Nessa altura, davam os primeiros passos como banda, desde então não pararam de crescer, tornaram-se líderes de audiência nas plataformas de streaming áudio e vídeo. Um verdadeiro fenómeno.

Os Wet Bed Gang junto ao mural dedicado a Rossi, fundador da banda já desaparecido e ao qual o grupo continua a prestar tributo nas músicas e em palco

Em 2021, “Ngana Zambi”, o primeiro álbum com o êxito “Bairro”, bateu o recorde de álbum português mais reproduzido numa semana com mais de 1,5 milhões de reproduções. Antes disso, “Devia Ir” e “Mesa Oito”, outros êxitos, alcançavam mais de 57 milhões de visualizações no YouTube. “Devia Ir” atingia 50 milhões de streams no YouTube, feito inédito nunca então alcançado por um grupo português.

O tributo, o legado, a amizade

Neste momento, vivem todos da música. Kroa, o mais novo de nove irmãos, estudou artes e representação, marketing, comunicação e relações públicas, até desistir dos estudos, os passes eram demasiado caros, ia dando uns toques na música. Zizzy deixou o curso de Gestão de Recursos Humanos pela banda, pela música, congelou a matrícula no dia do seu aniversário. “Nunca trabalhei em mais nada na minha vida.” A pergunta sai: é um luxo viver da música? “Sobreviver do que quer que seja é um luxo em Portugal”, responde.

Zara G deixou a escola aos 16 anos, ainda foi para França com o pai, sentiu que tinha de voltar pela banda, pela música. Não se arrepende. Gson cantava no coro da igreja, a professora de Música dizia à sua mãe que tinha jeito, mas não havia dinheiro para investir na arte, aos oito, nove anos, era o porta-voz das marchas populares na sua zona, o único miúdo negro nessa marcha. Trabalhou no McDonald’s, em cargas e descargas, num call center. E, de repente, uma banda. “Não somos aquele grupo pré-fabricado, não é um grupo de casting. A banda é uma consequência da nossa amizade”, conta, faz questão de contar. Zizzy destaca isso mesmo. “Vivemos bué de energias, nós somos realmente irmãos, um level de irmandade de verdade. Só saber que os tenho é muito bom.” Zizzy e Gson são do mesmo ano, de 1995, conheceram-se na igreja, iam com as suas mães, cantaram no coro, foram colegas de equipa.

O processo criativo é bastante democrático. Conhecem-se bem, conhecem-se há muito tempo, há margem de manobra em cada decisão. “Somos quatro cabeças a discutir o melhor caminho, ainda por cima crescemos juntos, é fácil dizermos as coisas como elas são”, considera Kroa. Sem cenas. Zizzy realça a liberdade de imaginar, de criar, de escrever, de compor, de dizer do que gosta e do que não gosta. “Não há regras para nada e somos livres.” Zara G assina por baixo. “Basta estarmos todos juntos, esta união.”

Kroa fala de inclusão na forma de comunicar, na maneira de mostrar que não há impossíveis. “A nossa linguagem não é fácil, por mais que isso aconteça, percebemos como as coisas são e não julgamos ninguém. Nem toda a gente vem dos mesmos sítios, dos mesmos lugares. Por mais que a gente tenha uma linguagem bruta, acaba por haver lugar para todos e o outro lado acaba por abraçar essa comunicação, essa mensagem.”

A história é feita de alto e baixos, as músicas falam do bairro, da fome, do amor, de relações, do que se sente. Gson olha para dentro, para os momentos de dor e de raiva, de resistência e de fé. “Foi um processo de terapia, de autoanálise, de introspeção, de descarga de energia, de desintoxicação, de uns miúdos frustrados por causa da condição social”, lembra. A superação transformou-se num coletivo. “Temos de nos salvar para salvar os outros. Saber dar é a melhor maneira de receber. É isso que a música nos tem dado”, confessa Gson. E, de repente, no palco principal do Sudoeste, de repente, em Cabo Verde, de repente, em Angola, terra de seus pais, a cantar na baía de Luanda para mais de 30 mil pessoas. Tudo por causa da música, o que lhes dá, onde os leva.

Há um legado, um tributo constante, em contínuo, a Rossi (“La Bella Máfia”), no início de tudo, quem uniu os do bairro de cima aos do bairro de baixo, quem batizou o grupo, na origem de tudo e que morreu antes de tudo. Foi dessa dor que a banda se ergueu e agarrou forças. “O Rossi tinha uma missão que foi concluída, criou um movimento que vai ser eterno na história da música portuguesa. Ele é uma lenda. Ele é que nos salvou. No fundo, foi ele que acreditou em nós, que nos dizia ‘vão por aqui, putos’.” Essa herança está sempre presente nas músicas, no palco, na vida.

E a inspiração está ali, em Vialonga. “Nesta nossa circunferência, no que está à nossa volta. Temos um bairro que dá para contar a nossa história. Há tanta vida, tanta experiência, é só observar”, diz Zizzy.

Talento, verdade, transformação

Os quatro. Sempre os quatro. Sempre juntos. Amigos do bairro, amigos de futebol, amigos da escola. O bairro é grande, no bairro todos se conhecem. Há orgulho de parte a parte, orgulho da banda, reconhecimento de quem ali mora, pedidos de autógrafos, orgulho no tio Kroa, do avô de Zizzy que tira fotografias como quem não quer a coisa para colocar no grupo de WhatsApp da família de Moçambique. Orgulho por todos os poros. “De parte a parte. Demonstramos o nosso trabalho como uma referência da zona, o que nos dá orgulho de dizermos que somos daqui”, revela Kroa.

O bairro não sai deles e eles não saem do bairro. “Temos uma maneira de ser muito peculiar, muito nossa. Sinto que, no geral, as pessoas não são assim, há sempre uma capa a tapar o artista, a tapar a pessoa, um filtro”, observa Zizzy. A essência é fundamental, a verdade é essencial para os Wet Bed Gang.

O novo álbum está pronto, foi lançado esta terça-feira, dia de aniversário de Rossi. “Gorilleyez” tem a cara de um gorila a ocupar toda a capa. É um álbum, é um projeto, é um conceito, é o movimento WBG. “O nome fala por si, olhos de gorila, é a nossa maneira de ver as coisas, encontrar a selva de cimento, os nossos feelings ao nosso próprio crescimento”, adianta Zizzy. O gorila que desfaz o contexto do animal utilizado como arma de arremesso racista, o gorila como animal nobre e emancipado, guardião e líder da sua comunidade. Um gorila que olha de cima para a selva de cimento. “É a nossa interpretação e a nossa transformação”, atira Gson.

“Gorillaz”, canção na onda do hip-hop, já está cá fora, conta com a colaboração do artista L7NNON. Zara G, o mais reservado da banda, está bastante satisfeito com o trabalho. “O álbum está quase perfeito, tem vários estilos de vibes”, pormenoriza. As expectativas são altas. “O álbum está forte, está completo.” Os concertos estão marcados para dia 25 de fevereiro no Campo Pequeno, em Lisboa, e 4 de março no Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota, no Porto. Zizzy não abre muito o jogo, adianta apenas que a banda não irá decalcar o novo álbum. Os próximos concertos terão, refere, “convidados óbvios e nada óbvios”. Uma coisa é certa: cada concerto será uma celebração. “Uma festa de celebrar a nossa vida, a nossa wet”, garante.

A banda está pronta para subir ao palco com um álbum acabado de lançar e a vontade de mostrar o gorila como um animal nobre e emancipado, guardião da sua comunidade. Eles querem desfazer a imagem do gorila como arma de arremesso racista e mostrar a sua perspetiva sobre a selva de cimento

Zara G, 25 anos, o mais novo da banda, sempre acreditou que iam explodir. “Chegou uma altura em que acreditei mais, quando íamos para os palcos.” Continua a acreditar em subir aos maiores palcos nacionais, entrar num estúdio nos Estados Unidos, fazer colaborações fora de Portugal. Quer ser o que é, no fundo. “Quero inspirar os mais novos a não terem medo de fazer as cenas, podem fazer tudo, acreditem que conseguem.”

A banda cresceu a nível musical, profissional, pessoal também, e a vontade de voltar a pôr os pés no palco é grande. Os próximos concertos são feitos de histórias musicadas que contam a narrativa da selva de cimento pela perspetiva do gorila. Mais um álbum, muita estrada para andar.

Antes de entrar em palco, o ritual de sempre, juntos, abraçados numa roda, como uma equipa antes de entrar em jogo, um dos elementos do gang diz umas palavras, como uma espécie de oração, cantam uma das suas canções. Depois, é hora de explodir. Entrelaçados na infância, entrelaçados no bairro, entrelaçados na música, entrelaçados na vida. Com Rossi sempre ali, sempre por perto.