Publicidade Continue a leitura a seguir

Voltar à sala de aula depois dos 40

Aos 45 anos, Andrea Marques, que abandonou a escola em miúda ainda no 5.º ano, concorreu ao Ensino Superior e está a fazer a licenciatura em Educação na Universidade do Minho. Estuda de dia e trabalha num hospital privado à noite (Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Publicidade Continue a leitura a seguir

Uns estreiam-se no Ensino Superior. Outros estão a completar o 12.º ano que a vida não lhes permitiu fazer na juventude, em busca de subir na carreira. Há até quem se aventure em cursos de formação profissional para plano B. São trabalhadores-estudantes, saem de casa de manhã e regressam às tantas da noite. Com filhos e numa ginástica de tempo que só a força de vontade colossal pode explicar. Há uma certeza: nunca é tarde.

A estrutura gigante em vermelho faz-se anunciar, mesmo à beira da estrada, em letras garrafais: Universidade do Minho. E a azáfama de uma vida massacrada por um rodopio constante até podia dar de si, mas Andrea Marques chega tão despachada quanto serena. Aos 45 anos, fez a mochila para a primeira licenciatura – Educação, é esse o curso -, o sonho que lhe foi roubado numa infância de ziguezagues. Justifica-se num ápice. “Aos 40, ainda temos pelo menos vinte anos de vida profissional pela frente.” E nem a dureza da logística a trava. Às seis e meia da manhã está a pé para organizar as rotinas de três filhos (é divorciada, tem a guarda total). Depois, vai a correr para a universidade – ora a pé, ora de autocarro, não tem carta de condução – para assistir às aulas entre as 9 horas e as 13. Às 14, entra no hospital privado onde trabalha como auxiliar de ação médica, só há tempo para almoçar um galão e um pão com manteiga. Sai já com o relógio a passar das 22 horas. Todos os dias.

A história até aqui é um labirinto de dor, um caracol apertado como os que lhe cobrem o rosto. Filha de um casamento de violência doméstica, Andrea viu-se obrigada a arrumar a vida numa mala para fugir de casa com a mãe e os dois irmãos mais novos, a caminho de uma nova cidade, longe. Era muito boa aluna – afinal, as aulas eram escape ao ambiente familiar hostil -, mas sendo a filha mais velha teve que largar a escola no 5.º ano para ajudar a mãe. Aos 14 já trabalhava. “Foi um sofrimento medonho, a escola era extremamente importante para mim.” Fábricas de calçado, lojas de roupa, supermercados, geriatria, já teve muitas profissões. Mais tarde, ainda tentou voltar à escola à noite, não conseguiu. Por uma razão: foi mãe com 22 anos e teve de alinhar prioridades.

Mas o Mundo gira e dá voltas. Há cinco anos, divorciou-se e enfiou todos os medos em caixotes. Março de 2020, mudou-se com os três filhos, em plena pandemia, da Póvoa de Varzim para Braga, cidade universitária, tudo pensado ao milímetro para ficar mais perto do sonho – e a pensar nos filhos também, um rapaz de 14, uma rapariga de 16 e outra de 23, que fez uma pausa na universidade em Évora e que tem sido uma ajuda. Pelo caminho, Andrea tinha feito os 5.º e 6.º anos à noite. O 9.º completou através do programa Novas Oportunidades. Ainda começou a fazer o Secundário em pós-laboral na cidade minhota. Mas, em janeiro do ano passado, encheu-se de coragem e tentou o concurso de acesso ao Ensino Superior para maiores de 23. “Fui a primeira pessoa, na primeira hora já estava a inscrever-me no curso de preparação.” Conseguiu 19 valores nos exames de Português e de História. E em setembro entrou na primeira opção, uma espécie de prémio que há muito merecia.

O horário pós-laboral não resultava para quem trabalha num hospital, em turnos que nunca acabam às 18 horas. Escolheu fazer a licenciatura em horário diurno – já que as aulas ocupavam essencialmente as manhãs -, numa ginástica que se adensa por estar a estudar ao lado de colegas mais jovens, que fizeram tudo “no tempo certo”, sem um hiato de 30 anos nos estudos, com conhecimentos e a disponibilidade que Andrea não tem. “Mas por ter 45 anos não entro de gaiato no navio, já vinha a contar que ia ser difícil e frustrante.”

Ainda trabalha aos sábados, 12 horas, sobram-lhe os domingos para tudo o resto. “Como estou sozinha, sou eu para tudo. Estamos a morar numa cidade onde não tenho retaguarda familiar. Aos domingos, vou às compras, organizo a casa, tento pegar em alguma coisa da faculdade. Há muito sentimento de culpa por não estar lá o tempo todo para os meus filhos. Há pesos, angústias, mas isto é para conseguir melhorar a minha vida e assegurar-lhes oportunidades que não tive.” E eles motivam-na, muito. A esperança de vir a tornar-se mestre em educação especial é maior do que todas as cicatrizes. O plano está bem definido: quer vir a trabalhar no apoio aos pais de crianças com necessidades especiais.

Direito é um dos cursos mais procurados

Andrea voltou à sala de aula depois dos 40 e é o espelho da realidade de muitos trabalhadores-estudantes pelo país. Vamos a números. De acordo com o Ministério do Ensino Superior, no ano letivo 2020/2021, os mais recentes dados disponíveis, havia 4143 alunos inscritos nas universidades através do concurso para maiores de 23 anos, curiosamente o número mais baixo desde 2011. E os alunos com mais de 40 anos representavam 19% do total de estudantes do mesmo concurso. Os cursos de Ciências Empresariais, Administração e Direito são, de longe, os mais procurados.

Luísa Monteiro Rebelo é a prova viva. Terminou a licenciatura em Direito, na Universidade de Lisboa, aos 46 anos, ao fim de quatro anos de autênticas maratonas. Hoje, aos 48, está prestes a acabar uma pós-graduação. É a segunda desde a licenciatura, o vício por aprender entranhou-se. Põe os óculos, abre os livros e faz rewind na cassete. Quando terminou o Ensino Secundário, não sabia o que queria seguir e escolheu começar a trabalhar para afinar ideias. Só que a vida carregou no acelerador, tornou-se bancária, entretanto casou e foi mãe. “Quando o meu filho tinha seis anos, achei que ele já não precisava tanto do meu apoio e decidi candidatar-me ao concurso para maiores de 23 anos.” Uma coisa muito pensada. Luísa já tinha contacto, no banco onde trabalha, com matérias relacionadas com Direito, legislação e quis seguir precisamente essa área.

Luísa Monteiro Rebelo está a acabar uma pós-gradução. A bancária tirou a licenciatura em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aos 46 anos. Estudava à noite e trabalhava de dia
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Nunca tinha pisado o chão de uma faculdade. O nervoso miudinho não perdoou. Antes de avançar, fez o curso de preparação que a Universidade de Lisboa disponibiliza “para quem não estuda há muito tempo”. “Porque há uma grande insegurança, já não era testada há anos. Usei as minhas férias para me preparar. Fazemos as provas e depois há uma entrevista com um júri na própria faculdade, lembro-me que havia 20 vagas. E correu bem.”

Uma carga letiva de 20 horas semanais e uma vida de trabalhadora-estudante começava aí. Mora em Azeitão (Setúbal), levantava-se às 6 horas para estar às 8.30 horas no banco. Do trabalho ia direta para a faculdade e as aulas só acabavam às 22.30. Voltava a casa de transportes públicos, viagem de hora e meia. Aproveitava qualquer nesga de tempo para estudar. “Não foi fácil, mas em nenhum momento vacilei ou fui abaixo. Ia a todas as aulas, nunca estive em sofrimento numa aula.” Na verdade, a faculdade ajudava-a a limpar a cabeça dos dias de trabalho. Enfiava-se na biblioteca muitas vezes, mas também investiu muito dinheiro em livros. “É um curso extremamente caro por isso. Cheguei a gastar 500 euros por semestre. Mas fi-lo por minha opção.”

No final, média de 16, “muito boa para quem já tem os neurónios cansados”. Com uma certeza: o marido ajudou muito neste caminho e o orgulho do filho também foi motor. “Aos fins de semana, tentava adiantar as refeições, a gestão da casa. E reservava um bocadinho para ir almoçar fora, ao cinema, dar uma volta de bicicleta. Mas o tempo de lazer com a família naqueles quatro anos foram menos. Nas férias, dos meus 25 dias, 15 eram para estudar. Há coisas que temos que sacrificar.” No trabalho, a recompensa chegou: houve logo uma alteração da categoria profissional de técnica para jurista.

Fazer o 12.º ano à noite para subir na carreira

É essa a recompensa que Francisco Veiga, que trabalha na área da segurança privada, procura. “Nunca é tarde” e aos 50 anos não se amedrontou. Voltou a ser estudante a 16 de janeiro do ano passado – ou melhor, uma semana depois, porque foi apanhado pela covid-19. Está a fazer um curso de Educação e Formação para Adultos (EFA) de Ensino Secundário, à noite, na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo, no Porto. Tudo para conseguir o 12.º ano que lhe vai valer escalar na carreira. “Tenho aulas de segunda a sexta, das 18.50 às onze e meia da noite.” As rotinas? Levanta-se às seis da manhã para levar o filho de metro à escola e nunca se deita antes da meia-noite. Há de concluir o 12.º ano em outubro.

Um objetivo que nunca tinha imaginado antes. Francisco cresceu numa família de cinco irmãos em Tabuaço e teve o destino de tantos naquela época: foi trabalhar mal acabou o 6.º ano. Ainda foi padeiro na vila de Viseu antes de se mudar, em 1995, para o Porto. E foi na Invicta, já em 2000, que começou o percurso como segurança privado. Quando percebeu que a escolaridade era um trampolim, decidiu fazer o 9.º ano através de um processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), sistema idêntico ao antigo programa Novas Oportunidades. E logo depois surgiu no radar um curso EFA para fazer o 12.º ano. Não pensou duas vezes. “Já sou chefe de grupo, mas o meu grande sonho é conseguir ser diretor de segurança. Quando acabar o Secundário, vou fazer formação para isso, que são mais três meses. O meu filho de 11 anos até fica admirado por ir para a escola na minha idade.” Tem ainda uma filha mais velha, de um anterior casamento, e dois netos. Vai encontrando tempo para a família entre as folgas rotativas.

Voltemos ao curso. “Nas aulas, temos Inglês, Cidadania, Português. Não fazemos testes nem temos trabalhos de casa. Os trabalhos são feitos na própria aula. A cada trabalho que concluo fico com um módulo validado”, explica. Tem muitos colegas como ele, com mais de 40 a ambicionar crescer nas suas profissões. Entre as certezas e as dúvidas, admite: “É difícil, já pensei em desistir. Além da questão do tempo, mesmo tendo estatuto de trabalhador-estudante, levei um corte de salário, porque não faço noites, não faço horas extras, é uma diferença. Mas a minha companheira dá-me força e agora que cheguei até aqui já não desisto”.

Após fazer o 9.º ano em adulto, Francisco Veiga, 50 anos, já há um ano que tem aulas todos os dias à noite, depois do trabalho, na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo, Porto, para fazer o 12.º ano. O sonho do segurança privado é vir a tornar-se diretor de segurança
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Segundo Filipa de Jesus, presidente do Conselho Diretivo da ANQEP (Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional), que regula modalidades de educação e formação para adultos de nível não superior, há hoje várias opções para adultos. Com componente só escolar, “para pessoas que têm uma escolaridade desajustada face à idade”, com componente profissional ou com certificação escolar e profissional em simultâneo. Todas fazem parte do programa Qualifica (sucessor do Novas Oportunidades), que existe desde 2017 e funciona através de 316 centros pelo país. Estas modalidades de ensino são gratuitas e são prestadas em centros de emprego, escolas, autarquias, associações empresariais. Atualmente, há quase 900 mil inscritos, a maioria são pessoas empregadas. “E no final de 2022 obtivemos um marco histórico, mais de um milhão de certificações atribuídas desde 2017.”

Tão histórico quanto importante. Em 2020, Portugal era o país da União Europeia com a maior proporção de adultos entre os 25 e os 64 anos sem o Ensino Secundário. E as modalidades de ensino criadas pelo Qualifica querem combater as baixas qualificações. Em idades mais avançadas, a maioria dos adultos é encaminhada para um processo RVCC, “porque trata-se de demonstrar e reconhecer competências profissionais e pessoais que já têm” pela própria experiência de vida. Também há os cursos EFA, num modelo mais tradicional, em contexto de sala de aula, mais procurados por jovens adultos. Há ainda Formações Modulares Certificadas, vocacionadas para formação profissional, “para atualização de competências ou reconversão profissional”. E o Vias de Conclusão do Nível Secundário de Educação, destinado a “adultos que abandonaram a escola numa fase avançada, no 11.º ou no 12.º ano, e que só têm algumas disciplinas por concluir”. É mais escolarizado, semelhante ao ensino recorrente, e é uma via já em desuso.

Hoje, o programa Qualifica tem uma média de 35 mil inscritos todos os meses. A evolução, desde 2017, foi brutal. “Mas temos um problema em Portugal muito expressivo: 35% das pessoas em idade ativa, ou seja, entre os 16 e 64 anos, não têm o 9.º ano completo. Na União Europeia, são 17%. Ainda há muito caminho a percorrer.”

A paixão por estudar

Aos 50 anos, quase nos 51 – ressalva ela -, Conceição Coelho não entra nesta estatística. Fez o 12.º ano “na idade normal”, mas quis o destino que, tantos anos depois, voltasse a estudar. Trabalha como administrativa numa Junta de Freguesia em Oliveira de Azeméis há duas décadas. Na área da contabilidade. “As pessoas nestas terras pequenas dirigem-se muito à Junta para pedir ajuda e havia coisas que não sabia.” Pôs pés ao caminho e foi fazer um Curso de Especialização Tecnológica (CET) de técnico especialista em contabilidade e fiscalidade. Tinha 46 anos, acabada de sair de um divórcio, três filhos. Mas, na verdade, a motivação maior foi a filha mais velha. “Na altura, ela estava sem emprego e sem estudar. Queria que ela fosse estudar, aquele curso estava aberto, mas ela não queria ir sozinha, então fui com ela.” Ao fim de um tempo, a filha encontrou emprego e desistiu, mas Conceição levou o curso, com aulas noturnas, até ao fim. Dois anos numa correria, com fins de semana agarrada aos livros, valeram-lhe subir um escalão no salário. E ganhou-lhe o gosto.

Aos 50 anos, Conceição Coelho, que trabalha como administrativa numa Junta de Freguesia, está a fazer um curso profissional pós-laboral de Técnico de Higiene e Segurança no Trabalho, em S. João da Madeira. É um plano B, diz
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Uma doença oncológica neste percurso não a atirou ao chão, nunca mais parou de estudar. Agora, está a fazer um curso EFA de Técnico de Higiene e Segurança no Trabalho, pós-laboral, no Centro de Formação Profissional da Indústria do Calçado, em S. João da Madeira (ainda recebe subsídio de alimentação). Até julho de 2024. “Nunca sabemos o dia de amanhã e gosto de ter um plano B.” Tem aulas quatro horas por dia, todos os dias da semana, menos à sexta-feira. Levanta-se às cinco e meia da manhã, faz o almoço para os filhos – de 26, 21 e 17 anos – levarem nas marmitas e deixa o jantar adiantado.

Estudar foi tábua de salvação a nível emocional, num pós-divórcio em que renasceu e na luta contra uma doença ingrata. “No início custou. Sair às oito da manhã e voltar às tantas da noite para casa com tudo para fazer é difícil, ainda levou um tempo para me reorganizar. E o tempo que levo para assimilar as matérias não é o mesmo. Os meus colegas são todos mais novos do que eu.” Só que os objetivos agigantaram-se, quer ir para a universidade. “Já andei a bisbilhotar tudo. Tenho os projetos bem definidos. Quero que os meus filhos vejam o meu exemplo e saibam que vamos sempre a tempo.”