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Vida tão breve

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A literatura também vive da tristeza, da solidão e do desencanto, de mulheres abandonadas e de heróis fracos, sendo profícua em narrativas nas quais as relações entre homem e mulher se estabelecem de modo assimétrico. Dizia Michelet que o homem caça e luta, a mulher intriga e sonha. Ao homem foi dado o papel da ação, à mulher, as virtudes da paciência, do sacrifício, da espera e da abnegação. Há milénios que as noções de identidade entre o homem e a mulher estão definidas de forma distinta e oposta, atribuindo o domínio ao macho de forma natural e inequívoca. Os valores associados à masculinidade são a força, a razão e a coragem. Eles dominam a vida pública. Das mulheres, é esperado que cuidem do lar, alimentem a família, eduquem os filhos e recebam os maridos depois da guerra, ou de qualquer ausência forçada ou voluntária, qual Penélope e Ulisses. O mito da espera astuta e sacrificial de Penélope sempre me fascinou, até ao dia em que pus os olhos no mapa e me apercebi que o herói nunca andou muito longe de casa, podia ter voltado mais cedo se assim o entendesse, mas não lhe apeteceu. Além disso, sabia, ou pelo menos intuía, que a sua fiel esposa o esperaria com a imaculabilidade de uma santa. Nesta distribuição milenar de papéis, os valores associados às mulheres são menos importantes e menos úteis, como a fragilidade, a emoção e a brandura. Durante a bafienta ditadura salazarista, o homem era a cabeça da família, a mulher, o coração. Flora, a mulher de São Tomás de Aquino é abandonada quando este decide entregar-se à fé cristã. Rodin cansa-se de Camille, Basílio entedia-se com Luísa. A literatura espelha a realidade do seu tempo. Bob Dylan era um jovem tímido e desafinado que a estrela Joan Baez catapultou para a fama. Quando a alcançou, ignorou a sua protetora, dando origem à maravilhosa e pungente canção “Diamonds and Rust”. Vale a pena ouvir a letra, é um portento de força e de sinceridade.

Os finais felizes são raros para as mulheres que esperam o regresso tão desejado quanto irrealista de um palerma elevado a príncipe nas suas cabecinhas ingénuas e sonhadoras, incapazes de perceber que ninguém corre atrás de um comboio que está parado. Até as mais temerárias, que defendem os ideais feministas, correm o risco da teia de uma paixão que não respeita as regras da reciprocidade amorosa. Não é defeito, é a génese feminina formatada para acolher, perdoar e amar incondicionalmente um homem que se ama como se ama um filho. A própria condição feminina consolida-se como uma forma de exílio interior. O homem é tão valorizado e poderoso que acaba por se tornar o lar e a pátria da mulher, como se dele dependesse toda a validação, interna e externa. Ainda hoje, quando uma mulher se divorcia e não volta a casar-se, as fações mais conservadoras da sociedade comentam que nunca mais refez a vida.

Como podemos contribuir para mudar paradigmas tão enraizados e que são fonte de tanto disparate e sofrimento nas relações amorosas? Talvez o primeiro passo deva partir das mulheres, em não aceitar regras implicitamente impostas que dão aos homens o poder de fazer mais ou menos tudo o que querem, de forma mais ou menos velada, e bater com a porta ao primeiro gesto ou palavra de desrespeito. Afinal, a vida é demasiado breve para se perder tempo com quem não merece. E os adultos são como as crianças, só vão até onde os deixamos ir.