Uma vida a fazer escala para o próximo destino

Joaquim Pinto Lopes, fundador da empresa Pinto Lopes Viagens (Pedro Granadeiro / Global Imagens)

Tem uma agência de viagens batizada com o seu apelido e uma vida passada a calcorrear destinos possíveis e impossíveis. Aos 78 anos, Joaquim Pinto Lopes quer ver mais. Muito mais. Porque há sempre um pedaço de Planeta que merece ser visitado e uma curiosidade infinita por satisfazer.

A Jugoslávia ainda era Jugoslávia naquele verão da década de 1970 quando viu chegar um autocarro pleno de portugueses ávidos de conhecer aquele território tão diverso de identidades e geografias, então unido pelo cimento da liderança de Josip Broz Tito, o presidente que voltara costas a Moscovo e decidira traçar os rumos do socialismo local com toques muito próprios. Era raro encontrar quem de Portugal lá fosse e quisesse saber de perto a que cheiram a costa do Adriático ou as montanhas brutas e cativantes que dominam a hoje independente Bósnia e Herzegovina e dali se espalham em altivez e quase arrogância de beleza. Joaquim Pinto Lopes, então com pouco mais do que 40 anos, liderava a comitiva lusa, feita de cidadãos desejosos de viajar e de conhecer o que poucos então conheciam. Parado o autocarro na cidade de Split, hoje uma das mais visitadas da Croácia, numa tarde que começava a cair e a abraçar o anoitecer, foi tempo de encontrar alojamento, por ali raro e difícil. Uma espreitadela aqui, outra ali, e nada. Melhor solução não houve do que bater à porta do único parque de campismo naquelas bandas disponível. Joaquim, sempre ele, falou com os responsáveis do parque e disse-lhes que ali havia quase meia centena de pessoas sem teto disponível para dormir. Que sim, que podiam entrar, responderam-lhe. Mas com um senão: aquele era um espaço naturista. Um paraíso de amantes de nudismo em pleno país comunista. “Parece mentira mas foi mesmo verdade”, desbobina em sorrisos Joaquim Pinto Lopes. Explicou as delicadezas aos membros do grupo, ouviu deles assentimento e lá seguiram todos em direção a um alojamento que tinha tanto de inesperado como de inusitado. “Vieram os restantes campistas ajudar-nos simpaticamente a montar os nossos acampamentos, que ainda eram significativos. Pormenor, estavam todos nus. Os únicos vestidos éramos nós”, volta a sorrir Joaquim. “Até um padre que vinha connosco ficou espantado com tal cenário. Mas não criticou, achou graça.”

Esta foi uma das muitas aventuras vividas na primeira pessoa por Joaquim Pinto Lopes, 78 anos, líder da agência Pinto Lopes Viagens e um dos mais intrépidos viajantes que se pode encontrar em Portugal. Gosta de destinos onde poucos se atrevem a ir, não recusa desafios, abre as portas do Mundo aos outros. As mesmas portas que um dia abriu por ele próprio, quando o bichinho de calcorrear o Planeta lhe começou a bater forte e não mais o largou. “Essa viagem à Jugoslávia foi das primeiras que organizei para um grupo específico. Lá está, um país raro, era dificílimo ir para lá. Mas conseguimos e correu tudo acima das expectativas”, sublinha com orgulho.

(Alfredo Cunha)

Feitas as contas sem problemas de maior – Joaquim tem tudo anotado ao detalhe e não deixa escapar pormenor de valia, desde datas a locais onde foi a escritos e notas do que viu e o fez seduzir – já parou em 150 países e territórios. Dos mais sonantes mediaticamente, aos que poucos se atrevem a lá ir, como a Coreia do Norte. “Dá uma média anual de 15 viagens e de 182 dias passados fora”, contabiliza. E um desfiar de memórias, aventuras e prazeres que não têm preço algum a pagar senão a “gratidão pelo que a vida me tem proporcionado” e que não cansa de sublinhar.

“Mais Mundo Houvesse”

Tantas foram as histórias colecionadas que deram mesmo em livro, lançado recentemente. Chama-se “Mais Mundo houvesse” e foi escrito por Gonçalo Cadilhe, José Luís Peixoto e Raquel Ochoa. “Mais Mundo houvesse e lá chegaria, tenho a certeza”, garante sem ponta de hesitação.

(Pedro Granadeiro / Global Imagens)

“Já visitei tantos pontos que nunca imaginei visitar. Como a Antártida, que adorei. Nunca imaginei ver lá tantos e tão belos animais. É o estado puro, como se estivesse onde o Homem raramente toca e que precisa de ser admirado”, desdobra.

Bem diferente daquela vez em que demorou dez horas a percorrer caminho entre Seul e Busan, na Coreia do Sul, num percurso interminável feito cheio de engarrafamentos e outras peripécias, algumas delas assustadoras. Joaquim Pinto Lopes liderava viajantes que, a dada altura, começaram a sentir os temores a falarem mais alto do que a calma. E os minutos a demorarem eternidades a passar. Não teve meias-medidas e, qual líder de grupo que era como quase sempre tem sido, tomou as rédeas. “A única forma que encontrei para os tranquilizar foi ir contando várias histórias curiosas sobre viagens que tinha feito, entre outros assuntos leves que os fizessem distrair do que se passava em volta.” Resultou em cheio. Chegados ao destino, houve quem o viesse abraçar forte em forma de agradecimento.

Ou como quando foi à Bolívia e na hora de visitar as minas de prata de Potosí se deparou com uma greve e uma acalorada manifestação dos trabalhadores. A dada altura os viajantes que Joaquim comandava foram instados pelos mineiros a empurrarem pesadas vagonetes que obstaculizavam o caminho. “Regressámos ao hotel com as roupas cheias de pó”, ri.

Desde 1973 que Joaquim Pinto Lopes organiza viagens em grupo por todo o Mundo; viveu aventuras incríveis, conheceu o que poucos portugueses conheceram, trouxe memórias que jamais esqueceu. Esta fotografia foi registada nos gelados glaciares da Argentina

Também no continente americano, mas no centro dele, estava Joaquim Pinto Lopes quando se deram os primeiros sinais da pandemia de covid-19. Na Guatemala, mais propriamente. “De um dia para o outro anunciaram que os voos iam ser todos cancelados. Tentei várias soluções, estava tudo cheio ou já a não receber aviões porque os aeroportos começaram entretanto a fechar. Resumindo, voámos para a Cidade do México e dali para Madrid. Da capital espanhola viemos de carro para o Porto sempre a andar, nem deu para parar em lado algum para comer uma sandes que fosse porque já estavam os locais públicos encerrados por razões sanitárias”, conta. “O que interessa é que correu tudo bem”, vinca. Porque esse é mesmo o objetivo, tornar possível o que à partida parece impossível de resolver e “proporcionar às pessoas que viajam connosco momentos únicos, mesmo que as circunstâncias não sejam as mais favoráveis”.

A origem

Natural de Cete, no concelho de Paredes, Joaquim Bismarck Pinto Lopes – o primeiro apelido é alemão e vem de raízes de há dois séculos – nunca deixou a terra que lhe deu berço e juventude. Apesar de a sede da Pinto Lopes Viagens ser no Porto e de a empresa ter também representação em Lisboa e de Joaquim fazer questão de quase diariamente estar com os seus trabalhadores – “vestem a camisola como poucos, merecem tudo pelo tanto que dão de empenho” – é a Cete que regressa quando a hora é de voltar ao lar. “Sinceramente nunca me passou pela cabeça mudar de lugar para viver. Sinto-me bem ali, é o meu espaço”, define. O espaço que, na origem e no fundo, lhe deu quase tudo. Como as raízes familiares de que tanto se orgulha e que constantemente lhe vêm ao discurso em tons emotivos que lhe fazem sobressair brilho naqueles olhos já de si luminosos. “O meu bisavô criou a primeira companhia de transportes da região, que eram feitos ainda a cavalo”, recorda. Há imagens que o comprovam, filas e filas de equídeos que levavam a todo o lado mercadorias de vária espécie. Os tempos evoluíram, os meios de locomoção também. Vieram os primeiros automóveis e a empresa manteve-se. Sempre em mãos familiares. Até que, quase na segunda metade do século XX, vieram os autocarros, a primeira grande paixão de Joaquim Pinto Lopes, mal disfarçada e assumida com o prazer de quem olha para trás e quase toca o passado com as pontas dos dedos como se ele tivesse sido apenas anteontem. “Muitas vezes pedia para eu próprio ir nas viagens para fora. Adorava. Porque ficava a conhecer coisas novas, terras que não conhecia e que sempre quis visitar”, lembra-se. Tinha então pouco mais de 20 anos e umas ganas que jamais lhe seriam arrancadas de dentro com o passar das décadas seguintes. “Era um prazer tão grande ir naquelas aventuras”, suspira.

Aventuras impossíveis

Foi nessas viagens de autocarro da empresa onde trabalhava e tinha responsabilidades por dever de família que Joaquim Pinto Lopes foi magicando que seria “excelente ideia” traduzi-las em algo mais. Esse algo mais que foi o princípio de tudo sem que Joaquim então sequer o imaginasse. Foram deslocações em autocarro, mas agora a título particular, com amigos. Dar-lhes a conhecer a Europa toda, a mais acessível e a quase impossível. Até aquela Europa que no início dos anos 1970 estava para trás da Cortina de Ferro e se guardava quase secreta dentro de fechados regimes satélite da URSS, onde as liberdades individuais estavam castradas e a possibilidade de acolher visitantes estrangeiros era processo burocrático quase infinito, tais as dificuldades de se lhes ultrapassar as fronteiras.

As primeiras viagens fê-las com amigos, de carro, longos dias por estradas de aventura e bravura. Depois veio o propósito de querer estender tais objetivos de conhecimento a outros, tantos outros. “Em 1973 tive a ideia de começar a realizar viagens de grupo através de autocarro. Não foi difícil encontrar interessados e organizava diversos percursos todos os verões, praticamente nunca parava em Portugal, estava sempre fora”, recorda com prazer.

Joaquim Pinto Lopes fez ele mesmo obra e caminho. Tudo era por ele organizado, as rotas não deixavam escapar qualquer pormenor, até os autocarros era ele que os preparava com antecipação. “Faziam parte da frota da empresa familiar. Mas era eu que os escolhia e que tratava de tudo”, sublinha. O tudo incluía, inclusive, conduzir horas em fio sem que isso se traduzisse em sacrifício. “Adorava, adorava mesmo, não trocava por nada”, jura. “Fui motorista, fui guia, até cozinheiro fui. Fiz de tudo e voltaria a repetir se o tempo atrás voltasse”, solta convictamente.

Com o passar dos anos, as viagens foram suavizadas e Joaquim Pinto Lopes foi garantindo paulatinamente que se conseguissem ligações de avião até aos destinos. Aí sim, voltavam de novo os autocarros a entrar em cena, já alugados nos países visitados, mas mais uma vez com Joaquim a tomar conta das operações. “Nunca deixei que nada fosse deixado ao acaso. Quis sempre que quem viajasse comigo e sob minha responsabilidade se sentisse bem e sem razões de queixa”, orgulha-se.

As viagens em grupo não cessaram. Pelo contrário, foram sendo acrescentados cada vez mais destinos, até mesmo fora do continente europeu. Sempre com o objetivo “de conhecer e de mostrar Mundo às pessoas”. O sucesso foi passando de boca em boca e o ritmo de marcações foi aumentando de tom, até que, em 1994, a Pinto Lopes Viagens ganhou forma sólida e passou a dedicar-se em pleno àquilo que o seu fundador fizera primeiro por carolice, depois com responsabilidade, mas nunca como única fonte de labor. “Achei que não havia volta a dar. O volume de programas por ano já o justificava”, diz. De um pequeno escritório no Porto com meia dúzia de funcionários, passou a empresa que conta atualmente com cerca de 60 trabalhadores. “Ao todo, realizamos 800 viagens por ano para outros tantos grupos”, pormenoriza Joaquim Pinto Lopes. Para locais onde as agências de viagens convencionais pouco arriscam mas que ele tem a certeza que os clientes querem conhecer sem pressas e o máximo de informação.

Verbo obrigatório

Os quase 80 anos não lhe deixam abalar o entusiasmo. Os olhos brilham-lhe quando é hora de projetar novas viagens, novos projetos, novos destinos a desbravar. Porque apesar de conhecer o Mundo quase todo, falta-lhe esse quase para conhecer. E esse quase tem tanta coisa a descobrir, tanta coisa por tocar, tanta coisa por cheirar, tanta coisa para ver a troco de nada, apenas do deslumbre de conhecer o novo e de ficar na memória com mais experiência de sonho a título de cardápio enriquecido. “Tenho a idade que tenho mas nem a sinto, só umas mazelas aqui e ali. Quero continuar até ir embora. Nem sequer imagino como seria se não pudesse viajar”, observa. “Se calhar habituar-me-ia”, muda o tom e baixa os olhos. “Mas iria custar-me bastante, continuar enquanto puder é que é preciso”, confessa.

Dos gelados glaciares da Argentina aos confins da Ásia, Joaquim Pinto Lopes calcorreou todos os continentes e visitou locais improváveis, onde reteve episódios para a posteridade

Pára o discurso, abranda o sorriso, deixa-se levar por breves segundos de nostalgia. Para logo depois renascer e começar a falar das viagens mais recentes, as que fez ao Catar e ao Koweit, e das que tem em mente fazer. A próxima é ao Iraque e tem data marcada e planos traçados. Parar é verbo proibido na vida de Joaquim Pinto Lopes. Viajar, esse, é verbo obrigatório. Sempre obrigatório. Porque o Mundo é tão infinito como a curiosidade que Joaquim tem para o conhecer na primeira pessoa.