Joel Neto

Um tesouro sob o frigorífico


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

A avaliar pelo modo como o sonháramos, ia ser encantador. Eu descascaria a cenoura pela fresquinha, cortando-a em cubos perfeitos e deixando-a a enfeitar a bancada num tupperware velhote mas estimado. Chegada a hora, sentiríamos os três – os três, não: os próprios cães haveriam de aperceber-se – o doce odor da cenoura cozida, acrescentada das doses certa de batata e cebola, e entreolharmo-nos-íamos com brandura. Haveria no ar cintilâncias várias, activadas pelas varinhas de fadas invisíveis, e a Colette perguntaria ao Gauguin: “Alguma vez provaste sopa?”. Finalmente, sentarmo-nos-íamos os dois, eu e a Marta, diante da cadeirinha dele, com aquela colher linda que o David e a Rita nos ofereceram. A Marta derramaria sobre o prato um delicado fio do azeite de oliveiras cuidadas por jovens primogénitos algures numa planície temperada. O Artur deixaria de lado o talo de brócolo em que estaria a mordiscar, com um sorriso gentil em que se conteria a própria solenidade do momento. E, quando lhe déssemos a primeira colherada do puré, testada a temperatura no nosso próprio lábio, as cintilâncias multiplicar-se-iam, como num fogo-de-artifício silencioso cujas eclosões Rubinstein, sentado a um piano de cauda ao canto da cozinha, pontuasse com uma melodia romântica.

Chegado o momento, claro, fizemos a sopa na Bimby. O bebé até acordou bem-disposto, mas as horas em que pedira para mamar de noite condicionaram a manhã. Tratei dos procedimentos – a fralda e o cicatrizante, o hidratante e a massagem, as vitaminas e os medicamentos para o eczema – e precipitei-me para o corredor, onde tinha deixado os cães a comer e a Colette (percebia-o agora) gania há tanto tempo que já se tinha descuidado. Tive de deixar o bebé no fraldário, com a cinta apertada para que não se atirasse dali abaixo, e de andar pela casa a arrebanhar papel de cozinha, que aliás não se consegue cortar com uma mão só porque da última vez que fomos ao JBLA trouxemos papel de oficina. Praguejei um bocado, mas não me sujei, e, embora a Marta já tivesse aberto os estores do quarto, incapaz de dormir aquela hora ou duas que costumo proporcionar-lhe, ainda cheguei à cozinha antes dela, a tempo de tirar de cima da estante a jarra com as rosas que apanhara na véspera. “E o Artur?!”, estranhou, algo rabugenta. Apressei-me a ir desamarrá-lo e fui sentar-me com ele na sala, a ver se o zelo em fazê-lo dormir a primeira sesta compensava a vergonha de me ter esquecido dele na casa de banho – e, quando ele olhou para mim com aquele ar de: “Mas, pai, eu ainda nem mamei…”, meti-o nas mãos da mãe e fui ligar a Bimby, a ver se ao menos o almoço corria bem.

Enfim: da sopa, metade foi desperdício, um quarto polvilhado em redor, tipo chuveirinho, e só o restante quarto comido. Os cães lamberam sopa do chão, os brinquedos acumularam sopa nas articulações, a Marta tinha sopa até na testa. Estatística final: três babetes inutilizados, dois arranhões numa fronte (que nem sabemos quando ocorreram) e metade de uma banana debaixo do frigorífico, inacessível até aos cães. Mas a sopa de brócolos e a papaia, nos dias seguintes, melhorariam os resultados. E naquele domingo, quando respirámos fundo, pareceu-nos logo tudo bem, tudo perfeito: a primeira e bem-sucedida refeição sólida do Artur. Era Dia da Mãe, o primeiro dia da mãe Marta, havia 24 rosas numa jarra, como na canção – e agora só faltava o cocó.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)