Transplantados desportistas. Alguns até vão a campeonatos

São gratos aos que lhes permitiram receber um órgão que, no próprio corpo, não estava a funcionar bem. Hoje, caminham, andam de bicicleta, praticam ténis e participam em competições desportivas. Não há barreiras. Qualquer atividade física é boa para exercitar o corpo e a mente. São doentes transplantados, cujo esforço físico é a melhor adrenalina para cuidarem de si próprios.

Aos 14 anos, Pedro Grilo deixou de fazer qualquer atividade física intensa ou moderada. Os anos passados a praticar andebol e futebol ficaram para trás quando lhe foram diagnosticadas lesões pulmonares. O cansaço era de tal forma extremo, com períodos de muita expectoração, que o então adolescente só participava nas aulas de Educação Física. Mas até esses momentos na escola eram angustiantes. “Nunca mais pude fazer exercício físico, o que foi uma chatice.” Foram mais de 30 anos: parado, sem liberdade para correr, saltar ou disputar uma partida de bola com os amigos. O problema só ficou resolvido após receber o transplante de dois pulmões a 15 de fevereiro de 2018. Tinha 48 anos.

Hoje, com 54 anos, é possível encontrá-lo a fazer uma caminhada em Reguengos de Monsaraz, no Alentejo, onde mora com a família. Nos dias primaveris, faz corridas de cinco quilómetros. Na época mais fria, resguarda-se no ginásio. Corre ou anda “três a quatro vezes” na passadeira e faz “trabalho muscular com pesos”. Uma sensação de liberdade e felicidade, como há anos não sentia. A doença de base congénita de Pedro Grilo chama-se bronquiectasia, caracterizada por uma dilatação anormal e irreversível dos brônquios. “Tentava camuflar para parecer uma pessoa normal. Mas quem estava perto de mim sabia o que se passava. A partir dos 18 anos, deixei de fazer qualquer atividade física.” Nessa altura, realizar um transplante nem sequer era uma hipótese. Uma recaída em 2012 mudou tudo.

“Durante a adolescência, tive períodos com muita febre, o normal para a doença. Fui piorando e, em 2012, tive uma pneumonia que me levou a um internamento hospitalar”, revela à NM. Esteve 15 dias no hospital a receber oxigénio. O cenário agravou: passou, aos 42 anos, a receber oxigénio 24 horas por dia. Só um transplante pulmonar o poderia tirar daquele suplício. Foram seis anos de espera. “Saía para algum lado e não tinha liberdade nenhuma. Tinha de voltar para encher o depósito [de oxigénio]. Quando estava de férias, a empresa deixava o depósito onde eu estava e eu tinha de estar sempre a carregar o oxigénio”. Em 2018, um telefonema do Hospital de Santa Marta foi um alívio: “Acho que não sobreviveria mais um ou dois dias”. O transplante de dois pulmões, considerado “mais seguro pela ciência”, esclarece-nos, motivou-o a ser um “exemplo de superação”, daqueles que participa em competições.

“Após o transplante, o recomendável é que se faça atividade física, como caminhadas. Houve um dia em que pensei: ‘Porque não hei de correr um bocadinho’?”, afirma Pedro Grilo, professor e fotógrafo de aves nos tempos livres. Além das corridas de cinco quilómetros, participou em agosto do ano passado nos Jogos Europeus de Transplantados, na cidade de Oxford, em Inglaterra. Mais do que os objetivos desportivos, de superar os próprios recordes pessoais, quis divulgar a importância de doar órgãos e de dar esperança aos que estão em lista de espera. A 31 de dezembro de 2021, havia 76 doentes a aguardar por um transplante pulmonar. No mesmo ano, foram realizados 64 transplantes desse tipo, de acordo com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação. O número subiu para os 76 transplantes pulmonares no ano passado.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Pedro Grilo não é o único transplantado a marcar presença em competições lá fora e a fazer do exercício físico um mote para agarrar e aproveitar a vida com todas as forças. O médico-cirurgião José Fragata, veterano na realização de transplantes em Portugal – já foram mais de 300 corações -, recorda-se bem do dia em que Sandra Canha chegou ao seu consultório com uma lembrança da Tailândia. “Eu vim cá dar-lhe a medalha, porque foi o senhor que a ganhou”, lembra o também diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Na altura, a jovem tinha acabado de participar nos Jogos Mundiais de Transplantados, na vertente de ciclismo, que se realizaram em Banguecoque. Poucos anos após ter recebido um transplante de coração, pelas mãos de Fragata, Sandra Canha queria sentir a vida a pulsar. Uma competição no estrangeiro, mesmo que a participar por “brincadeira”, era o evento ideal para dar uso ao novo órgão que havia recebido.

O exercício físico esmoreceu na pandemia, reconhece Sandra Canha, aos 47 anos. O medo de ser infetada pela covid-19 voltou-a para dentro de casa. Os doentes transplantados são imunodeprimidos, o que significa que as bactérias e os vírus podem ser mais perigosos, porque o sistema imunológico dos utentes está alterado. “Sempre fui muito de fazer caminhadas”, aponta. Está agora empenhada em ir para o ginásio e a mover-se como antes. O médico assim a aconselhou. “Uma pessoa que tem um transplante tem uma responsabilidade muito grande, porque aquele órgão que foi para ela poderia ter ido para outra pessoa”, defende José Fragata, que realça a importância de fazer “exercício físico regular” após um transplante. “Mas não precisa de fazer desporto de competição”, acrescenta.

Melhorar a “fitness cardiovascular”

Quando, aos 21 anos, recebeu um coração novo, Sandra Canha já havia ultrapassado a sua quota-parte de problemas de saúde. Aos 19 anos, recebeu o diagnóstico de doença de Hodgkin, cancro no sistema linfático. Fez quimioterapia e radioterapia. Anos mais tarde, apareceu-lhe uma massa, “que também era cancro”, perto do coração, que tornou irreversível a necessidade de um transplante cardíaco. “Felizmente, não estava metastizado”, recorda. Hoje, está reformada por invalidez e junta à parca quantia que recebe do Estado alguns trabalhos como administrativa. Sabe que a pausa no exercício físico foi por vontade própria, mas lamenta que não haja uma ligação mais estreita entre as unidades de saúde e o desporto propriamente dito. “No estrangeiro, há programas de exercício físico para transplantados nos próprios hospitais”, adianta a também membro da associação Coração Feliz.

Depois do medo da pandemia a “paralisar” dentro de casa, Sandra Canha voltou ao ginásio e a fazer caminhadas pela sua saúde. Recebeu um transplante de coração aos 21 anos. Tem atualmente 47
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

“Depende um bocadinho do órgão transplantado, mas os doentes a seguir a um transplante sentem-se com uma maior capacidade física”, esclarece Susana Sampaio, nefrologista no Hospital de São João, no Porto. A médica explica que “o objetivo não é que os doentes transplantados se tornem atletas, mas que tenham cuidados, tal como o resto da população”. Se “há um aumento da frequência cardíaca, há também menor risco de doença cardiovascular”, salienta à NM. No caso dos transplantados renais, diz, o uso de corticoides aumenta o apetite e gera o aumento de peso. Por essa razão, a movimentação física é tão importante. Numa primeira fase, “como estão mais imunossuprimidos”, os clínicos não aconselham a que se frequentem espaços com muita gente, como ginásios. Seis meses depois da operação, o ideal é começar a fazer caminhadas e subir o esforço a cada dia. Um passo de cada vez. “Não começar logo a fazer corridas de 30 minutos”, vinca a médica.

A consciência do que é exequível é uma avaliação que deve ser feita pelos doentes. Conhecer os limites do próprio corpo é essencial. E as dúvidas podem sempre ser esclarecidas com as equipas médicas, até porque não há uma receita predefinida. “O exercício físico tem de ser adaptado à capacidade física do doente”, elucida Susana Sampaio, o que inclui avaliar a existência prévia de outras patologias e ter em conta a idade dos utentes. Por exemplo, quem tiver “artroses nas ancas”, aconselha-se a ir para a piscina e a fazer hidroginástica. Mas, até aí, são precisos cuidados, como ver se os locais fazem controlos regulares da água, para evitar a proliferação de bactérias, ainda mais problemáticas em transplantados.

A idade média das pessoas em hemodiálise – o tratamento que limpa as toxinas do sangue e funciona como um rim artificial – está nos 65,9 anos, precisa Susana Sampaio. “São doentes com idade mais avançada e não têm grande capacidade de exercício.” Além do acompanhamento nutricional, as caminhadas são a maneira mais acessível, fácil e eficaz de controlar o peso. “Se colocarmos correr e nadar de um lado e os pesos e os halteres do outro, eu diria que os pesos e os halteres são a pior coisa. São exercícios em que a força aumenta, mas ninguém se mexe”, considera José Fragata. Tudo o que seja para a “fitness cardiovascular” é a melhor aposta, diz.

(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

No território nacional há uma associação que é tida como a referência por aqueles que receberam um novo órgão e não se resignam a uma vida sedentária. O Grupo Desportivo de Transplantados de Portugal (GDTP) é a organização nacional que tem levado atletas portugueses (e não só), que fizeram um transplante, a vários pontos do Globo para participar em competições. A última prova foi na cidade de Perth, na Austrália, nos Jogos Mundiais de Transplantados, que decorreram entre 15 e 21 de abril. Dora Saraiva, de 57 anos, é uma das atletas do grupo.

Proteger o braço com uma faixa

Nunca parou de fazer exercício físico. Quem a ouve, percebe que gosta de se mover e de tratar o corpo como um templo. A espera por um transplante renal e o longo período de sete anos em hemodiálise não a fizeram abrandar. Desde tenra idade que o desporto faz parte da sua vida: dos sete aos 18 anos fez ginástica rítmica. Durante a faculdade concentrou esforços no ginásio. “Sempre gostei de aulas de grupo”, confessa à NM. Quando lhe perguntamos se alguma vez foi aconselhada pela equipa médica a fazer exercício, diz-nos que nunca lhe fizeram qualquer recomendação. “Talvez porque perceberam que já era atleta”, presume a agora tesoureira do GDTP, adepta de trails na Natureza, de caminhadas e corridas na marginal da Costa da Caparica.

Desportista desde sempre, Dora Saraiva já experimentou quase tudo de atividade física. Das corridas à beira da praia às aulas de ginásio, nem os tratamentos de hemodiálise e, depois, o transplante renal abrandaram a motivação de se mover
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A partir do momento em que soube que tinha insuficiência renal crónica, em 1999, Dora Saraiva recusou-se a adiar sonhos. Foi mãe em 2006, mesmo depois de vários ginecologistas lhe terem dito que ter um bebé seria um grande “esforço”. Tinha de filtrar o “sangue por duas pessoas”. Quando a filha tinha três anos, começaram as tonturas e o cansaço. A medicação para controlar o nível de toxinas no sangue não estava a fazer efeito. “Estava a ficar intoxicada. As toxinas estavam em excesso no meu organismo.” Seguiu-se um período inevitável de hemodiálise, três vezes por semana e quatro horas por dia, durante sete anos, e uma longa espera por um rim. “Fazia tudo igual. Quando ia para os trails, protegia o braço com uma faixa.”

Um dia, em 2015, às quatro horas da manhã, recebeu uma chamada a perguntar se tinha disponibilidade para ser transplantada. Receber um órgão haveria de a tornar ainda mais adepta do desporto. Conheceu o GDTP e, de repente, estava a correr (algo que não gostava) e a fazer marcha atlética. Ganhou medalhas nos Jogos Europeus de Transplantados, realizados na Sardenha, em Itália, e nos Jogos Mundiais de Transplantados, na cidade inglesa de Newcastle. Competiu em petanca, bowling, natação e corrida. Não se lembra de ter parado, antes e após a cirurgia.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

“O doente transplantado fica irreversivelmente ligado ao hospital”, clarifica José Fragata, que aconselha os utentes a questionarem os médicos antes de iniciar “qualquer tipo de atividade diferente”. O diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta lembra que os benefícios do exercício físico não são os mesmos para um transplantado renal ou hepático e um transplantado cardíaco ou pulmonar. Se nos primeiros há uma “melhoria do estado geral de saúde”, nos segundos a atividade física vai “puxar verdadeiramente” pela capacidade dos órgãos (o coração e os pulmões, respetivamente). O clínico não descarta a possibilidade de ser feita a “monitorização cardíaca”, para saber “se o tipo de esforço é compatível com a reserva que têm”. A preferência deve ser no desporto ao ar livre, se possível, e investir em horários em que os ginásios não estejam tão “cheios”. Se uma sala de ginásio estiver repleta de gente, “estão todos a respirar do mesmo ar”, destaca.

Superar a quimioterapia

Fazer desporto ao ar livre não é uma experiência nova para Christian Bayon. Depois de receber o diagnóstico de leucemia aguda em 2016, o francês radicado há 33 anos em Portugal fez caminhadas de 45 minutos à volta do IPO de Lisboa durante o tempo em que esteve hospitalizado. Soube da doença em março daquele ano e cedo percebeu que a única possibilidade de sobreviver era um transplante de medula óssea. A operação seria feita em outubro. “Foi relativamente rápido”, diz. Mesmo durante os tratamentos de quimioterapia manteve os treinos de ténis. A médica não o desautorizou. “Não podia era nadar, porque a piscina pode ser um pouco perigosa.”

Uma médica disse a Christian Bayon que a “boa forma física” o ajudaria a superar melhor a quimioterapia. Depois de uma leucemia aguda e de um transplante de medula óssea, o exercício físico manteve-se, ainda que com algumas adaptações
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Foi um dos atletas entre os 60 e os 69 anos que ficou nos primeiros lugares dos Jogos Mundiais de Transplantados, em Perth (Austrália), no passado mês de abril: o quarto lugar na modalidade de triatlo. “Não fazia desporto em criança. Tinha 60 anos quando adoeci, mas estava muito saudável”, explica. Aos 21 anos começou no ténis e no windsurf. Aos 45 iniciou-se na natação. Quase nos 50 empenhou-se no mundo dos triatlos. Quando soube da doença, a médica disse-lhe logo que iria ter a capacidade para superar os tratamentos “pesados” de quimioterapia, porque estava “em forma”. A verdade é que não se resignou e a ambição de ser um modelo a seguir cresceu a cada dia.

“Quando saí do hospital, percebi o exemplo que podia dar”, observa Christian Bayon, tanto para doentes transplantados como para os que têm cancro. Ainda tentou criar um grupo de triatlo constituído só por pessoas que receberam um órgão, mas depressa descobriu que existia um grupo desportivo com os mesmos objetivos. “O exercício físico ajuda-nos a superar a doença com ânimo. É muito refrescante estar ao lado de uma equipa e não fazê-lo de forma isolada”, admite. Especialmente quando há recaídas, como uma que teve em 2019, e que o impediu de participar nos Jogos Mundiais de Newcastle. Mas seguiram-se outras competições, mais oportunidades.

(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

“Salvaram-nos a vida, recebemos muito, portanto temos de devolver qualquer coisa à nossa maneira. A nossa maneira é mostrar o nosso exemplo. Todos temos a sensação de querer devolver algo que recebemos”, confessa o também construtor de violinos. Talvez, por isso, seja tão importante para si ser fotografado com uma t-shirt onde se identifica como atleta transplantado e agradece a quem lhe permitiu viver uma segunda oportunidade. Para viver e correr como se o céu fosse o único limite.


Dados

814
Apesar do número de transplantes ter aumentado no ano passado (814), face aos registados em 2021 (799), os valores ainda estão aquém dos contabilizados no período pré-pandemia. Em 2019 tinham sido realizados 879 transplantes. Em 2018 e 2017 foram feitos 830 e 895, respetivamente, de acordo com os dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação.

476
Nos últimos anos, os transplantes renais e hepáticos foram os mais representativos em Portugal. Em 2022, houve 476 transplantes de rim e 200 transplantes de fígado. Em sentido contrário, as transplantações de coração (37) e de pâncreas (25) são diminutas. No ano passado foi atingido o número mais alto de transplantes pulmonares (76), contra 64 realizados em 2021 e 65 em 2020.

894
Foram também colhidos mais 22 órgãos de dadores falecidos em 2022 (894), em oposição aos 872 de 2021 e aos 750 de 2020. A recuperação do ano passado face aos dois primeiros anos da pandemia ainda não é suficiente para alcançar os valores mais elevados registados antes de 2019 e cujo pico foi em 2017 com 1011 órgãos colhidos. Em 2021, Portugal ocupou o quarto lugar no ranking mundial da doação de órgãos de dador falecido, com 29,6 dadores por um milhão de habitantes.


O que fazer depois de um transplante

Sessão típica de treino para um transplantado
O Comité de Transplantação de Órgãos do Conselho da Europa elaborou, em 2016, um guia de exercício físico para ter uma melhor saúde após o transplante. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, mas tendo em conta as recomendações dos médicos e o estado clínico dos doentes, a sessão típica de treino para um transplantado com um órgão sólido é composta por:

Treino aeróbico
Andar de bicicleta: três vezes por semana (preferencialmente) com uma duração de 30 a 45 minutos.
Caminhar: seis vezes por semana (preferencialmente) com uma duração de 45 minutos.

Treino de força
Duas séries de 20 repetições de 35% do seu peso máximo: duas vezes por semana (preferencialmente) com uma duração de 30 minutos.
Exemplo: se o peso máximo que um doente consegue levantar são 10 kg, deve levantar 3,5 kg cerca de 20 vezes e repetir a série duas vezes.