Como envolver os mais novos mas tarefas domésticas

Bárbara Ramos Dias com os três filhos: Vicente, de 10 anos, Vasco, de 14 e Francisca, com 16. Juntos partilham as tarefas de casa sem esforço

Limpar, arrumar, cozinhar, lavar, esfregar, passar. Uma vez, várias vezes, todos os dias, toda a vida. Há coisas que não se podem varrer para debaixo do tapete e que não se fazem sozinhas. Como envolver todos, sem exceção, nas rotinas de casa? Com compromisso, sem gritos, com verdade. Há momentos que até podem ser divertidos.

Vasco tem 14 anos, adora cozinhar, faz o jantar todos os dias com a lista preparada previamente pela mãe. Vicente tem 10, é responsável pelas coisas dos gatos lá de casa, costuma dar um jeito à sala antes de a família sair, gosta de aspirar. Francisca tem 16 anos, trata da roupa, tarefa que faz com gosto, o resto tem dias. Três irmãos, vivem na mesma casa, dividem tarefas.

Bárbara Ramos Dias é a mãe, psicoterapeuta de crianças e adolescentes, coaching parental, autora de vários livros, entre eles “Guia de cabeceira para pais desesperados”. Lá em casa, as tarefas são feitas em conjunto, ninguém fica de fora. “Não é ajudar, é partilhar”, avisa. Se todos cumprirem a sua parte, tudo bem. Não há roupa suja no chão da casa de banho, louça espalhada pela sala, camas por fazer. A filosofia de cada um só arrumar o que desarruma, só limpar o que suja, não cola nesta casa.

É assim desde cedo, começando por tarefas simples, lavar uma fruta, separar a roupa branca da escura, puxar as orelhas da cama. “Todas estas atividades fazem com que se sintam úteis e mais crescidos”, garante Bárbara Ramos Dias. E há uma premissa que não deve sair da cabeça: valorizar o que é feito, não o que está por fazer.

“Se não é na adolescência que se habituam a lavar os dentes, não é na adolescência que se habituam a arrumar o quarto”, observa Renato Paiva, pedagogo, diretor da Clínica da Educação. O sentido de compromisso é fundamental, o exercício de hábitos também, reunir toda a família nas rotinas domésticas idem, aspas. Por vezes, como um jogo, quem arruma primeiro os brinquedos, como ter a cozinha arrumada se cada um levar a louça que usa para a bancada. “É esta entreajuda que deve existir no registo da família.”

Mesmo que haja ajuda externa, de avós, de pais, de empregadas, e respetiva delegação de tarefas, há sempre um futuro que deve ser tido em conta. “A envolvência dos miúdos é sempre benéfica, na independência e autonomia.” Não é preciso esperar que cresçam muito. “Fazer a cama, nem que seja só esticar as orelhas, a partir dos quatro, cinco, seis anos.”

Há estratégias e táticas, conversas a ter. Desde logo, a velha máxima de que, se todos partilharem tarefas, mais tempo para atividades em família, brincar, ver um filme, um jogo de tabuleiro depois do jantar, mais passeios ao fim de semana. Os post-its com desenhos de caras alegres ou caras tristes, consoante o comportamento, podem andar pela casa, nos sítios arrumados ou desarrumados. “Vivemos todos na mesma casa, se todos fizerem um bocadinho, andamos mais alegres, mais bem-dispostos”, comenta Bárbara Ramos Dias, que acrescenta mais uma proposta que funciona como um incentivo. O dia da princesa e o dia do príncipe para todos os que cumprem as tarefas, pai e mãe incluídos. Por exemplo, dez sóis para dez tarefas feitas e o bónus de escolher o que se quer fazer durante um dia, ver um filme, não fazer nada. Um dia para fazer o que apetece, seja uma tarde de cinema da mãe com as amigas, seja um dia de sossego para o pai, seja aquela brincadeira em conjunto para os filhos (o tal dia da princesa, o tal dia do príncipe). “Isso faz com que todos tenham as suas tarefas e é um incentivo para toda a gente.” Ou seja, ver o lado positivo do que parece chato.

Margarida Crujo, pedopsiquiatra, psiquiatra da infância e adolescência na CUF, chama a atenção para os dois lados da questão. Por um lado, o peso, o enfado, o aborrecimento, aquela conotação negativa associada às tarefas domésticas. Por outro, a maneira de tirar partido do que tem de ser feito e das interações que acontecem. Em seu entender, é tudo uma questão de perspetiva, ou seja, a narrativa à volta de arrumações e outras obrigações tem peso.

É fácil ilustrar esses dois lados. Margarida Crujo avança com os cenários. “Mãe, podes vir brincar comigo? Não posso, ainda tenho de fazer o almoço e pôr a mesa. Pai, queres vir jogar comigo? Vou já, ainda estou a aspirar a casa.” Ou então. “Mãe, podes brincar comigo? Sim, mas primeiro brincas comigo a este jogo de tirarmos a louça da máquina e descobrimos o sítio certo onde a arrumar. Pai, vens jogar comigo? Sim, sim, jogamos esse jogo e depois ao jogo de termos a cama feita e o quarto arrumado em dez minutos, pode ser? Eu conto o tempo.” As mesmas perguntas, atitudes diferentes. “Se for esta a narrativa contada desde a infância, e se esta forma de encarar as tarefas estiver enraizada na rotina, não teremos adolescentes tão revoltados com a ideia de terem que fazer determinada coisa em casa, coisa esta que eventualmente lhes tiraria o tempo de ecrã, no qual estão sobejamente mais interessados”, sublinha a pedopsiquiatra.

Incentivar sem ralhetes e sem castigos

Os critérios e a organização familiar não são iguais em todas as casas. “Cada família é uma família, não há regras, não há coisas taxativas. Cada família sabe de si e como pode fazer bem”, realça Bárbara Ramos Dias. Por norma, de manhã, anda-se à pressa, acordar, banhos, vestir, pequenos-almoços, sair de casa, trabalhos, escolas, sobra pouco tempo. Ao fim do dia, é outra conversa. E a entreajuda familiar faz toda a diferença porque não é à toa, ou por acaso, que a roupa aparece dobrada nas gavetas e passada a ferro nos armários, os cereais nas prateleiras, os iogurtes no frigorífico, a casa sem pó. Alguém lavou, alguém limpou, alguém arrumou. E o respeito é bonito. “A vida é uma partilha, tem de haver verdade nas palavras”, sustenta Bárbara Ramos Dias. “E a casa é o nosso castelo, é o nosso porto de abrigo.”

O exemplo de cima para baixo, de pais para os filhos, não é um detalhe. Se o pai não faz, o filho pode perguntar porque tem de fazer. “O exemplo de ambos os progenitores é fundamental nos primeiros anos de vida, as crianças replicam o que veem, como nos hábitos de leitura”, aponta Renato Paiva. Pais desorganizados nas tarefas de casa, filhos despreocupados com esses trabalhos. “É importante enraizar uma rotina. Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”

Segundo Rena to Paiva, assertividade, segurança, a sensação de que são capazes fazem parte deste caminho. Para enraizar modelos, para perceber que não aparece tudo feito e que as tarefas domésticas nunca desaparecem da rotina por mais voltas que se deem. Explicar como se faz demora tempo, há aquela tentação dos pais fazerem pelos filhos para que seja mais rápido e fique melhor. Nada disso. “Explicar demora algum tempo e explicar significa educar”, diz Renato Paiva. Presentes e persistentes, é isso que todos devem ser nestas atividades domésticas que também sustentam um sentido de pertença do que é ser uma família.

E as coisas não se arrumam sozinhas. Bárbara Ramos Dias fala em atitude, ensinar para que aprendam, explicar para que façam, exemplificando, se necessário. “A vida é uma partilha e é importante que os filhos sintam que também têm responsabilidades, que há tarefas que têm de fazer”, salienta a psicoterapeuta.

Se a ideia é mudar a narrativa para que as tarefas domésticas não sejam indesejadas e mal-amadas para todo o sempre, então não podem ter agarradas a si a sombra do castigo. “Se tirares negativa no teste, pões tu a mesa durante a próxima semana toda, é uma frase absolutamente dispensável”, observa Margarida Crujo. Há outras maneiras. As famílias são como equipas, as tarefas são desafios. “Se todos contribuírem com a parte que lhes for ajustada, os desafios vão sendo completados mais rapidamente, a família ganha.”

As entropias, as caras fechadas, os amuos, as discussões, também se resolvem. Margarida Crujo explica. “Se algum adolescente não quiser contribuir, acho que lhe pode ser devolvido isso mesmo: de que não está a colaborar para o equilíbrio da família onde ele próprio se insere – e tal poderá eventualmente constituir um fator em seu desfavor, quando tiver algum pedido especial a fazer aos pais.”

Bárbara Ramos Dias dispensa gritos, berros, castigos, ralhar, ralhar, ralhar, dia após dia. “Não é por aí, de todo. É pelo incentivo. Com a verdade no coração é muito fácil partilhar sentimentos”, considera.

Não há propriamente uma idade certa para que os mais pequenos se envolvam nas tarefas domésticas. Nem idades, nem tarefas próprias deste ou daquele género, como noutros tempos. “As tarefas domésticas são necessidades das pessoas, no geral, e aprendermos a fazê-las com destreza trar-nos-á uma melhor adaptação ao nosso contexto de vida, independentemente das mensagens que as sociedades nos têm imposto (ainda hoje, em consulta, uma criança pequena insistiu para eu colocar a vassoura de brincar nas mãos da boneca, e tirá-la das do boneco”, repara Margarida Crujo.

Mesmo sem uma idade certa para o desempenho de determinada tarefa, é preciso atenção para garantir que a função é adequada ao desenvolvimento da criança e que não há qualquer perigo, qualquer risco – como o caso de manusear detergentes e substâncias tóxicas e objetos que cortam. “É válido que uma criança de quatro, cinco anos aprenda a ter autonomia para puxar os lençóis da sua cama e para arrumar os brinquedos do quarto, mas não é válido que seja autónoma para lavar a louça à mão, pois pode queimar-se”, exemplifica Margarida Crujo. O bom senso deve imperar.

Seja como for, as lides de casa nunca desaparecerão. “As tarefas domésticas não têm fim, a sua necessidade renova-se com as nossas vidas. Mesmo quem tem ajuda externa regular, tem nalgum momento necessidade de as realizar”, refere a pedopsiquiatra, adicionando: “Temos de fazer delas oportunidades de interação, tentarmos adereçá-las com alguma criatividade, para que não sejam tempo gasto, tempo perdido, mas sim tempo útil e de diversão com os nossos filhos”.

Não é possível ignorá-las, sob pena do caos absoluto e da desorganização extrema. Em todo o caso, uma tarefa pode ser muito mais do que uma tarefa física. “Arrumar a nossa casa é muito, também, organizarmo-nos internamente, pormos no lugar os cantos psicológicos de cada um”, frisa Margarida Crujo. Limpar a casa, limpar a cabeça. Em família, de preferência.