Streaming: o labirinto nunca termina na próxima temporada

Vício, solidão ou problemas mentais são algumas das consequências mais graves que a visualização desenfreada de filmes e séries pode causar. O humorista e guionista Nuno Markl fala-nos de como, subscrevendo várias plataformas de streaming, tenta racionar o consumo. Os números, a preocupação de especialistas com o futuro e como fazer a melhor seleção do que ver.

Subscreve quatro plataformas de streaming de vídeo e tem a sensação de que nunca há nada de cativante? Escolher algo para assistir é um problema no meio de tantas opções? E está na dúvida se deve optar pela mais recente plataforma? O streaming de séries e filmes – conteúdo “on demand” (“a pedido”, na tradução para português) – chegou em força ao nosso dia a dia, oferecendo-nos um sem-fim de opções. Esse sem-fim significa, tantas vezes, dúvida e confusão. “É um desperdício de dinheiro?”, “Estou a fazer a escolha certa?”. Se, por vezes, se sente perdido, não está sozinho.

O humorista, radialista e guionista Nuno Markl é o primeiro a levantar o braço para se acusar como fã da sétima arte. Mas se a pergunta for “e fica confuso com tanta oferta?”, a resposta é igualmente positiva. “Às vezes termina um mês e apercebo-me que o passei sem sequer abrir uma das plataformas que subscrevo”, confessa à “Notícias Magazine”. “Uma das” porque, como o próprio afirma, subscreve “tudo o que há”, “até as que acabaram de chegar ao mercado há pouco, as de menor dimensão e as consideradas de ‘geeks’ do cinema”.

Ainda que tenham sido uma companhia durante os confinamentos, a procura de Nuno Markl por um conjunto alargado de escolhas era anterior à pandemia. “Já na altura do aluguer de cassetes estava sempre nos ‘blockbusters’.” Fazendo o paralelo com os anos pré-internet, podemos considerar que as lojas de aluguer de filmes em formato físico “são os primórdios da ‘Netflix'”, diz.

Mas voltemos à atualidade. A verdade é que, para grande parte da população, as plataformas de streaming e o aluguer de filmes e vídeo à distância de um clique tiveram uma importância acrescida quando o Mundo ficou quase parado. Por consequência, houve um aumento significativo do consumo.

Um dos primeiros sinais de que o mercado “on demand” começou a ter um impacto acrescido durante a pandemia foi a criação, pela Marktest, de um barómetro próprio para a monitorização desta categoria. “Com a pandemia sentimos a urgência do mercado em saber quais os números do streaming e isso aconteceu porque passou a ser um meio significativo”, com mais pessoas a utilizá-lo, explica Manuel Monteiro, diretor de estudos de meio da Marktest.

Com o “BStream – barómetro de streaming”, lançado em 2021, a empresa especializada em estudos de mercado anunciou um número até então nunca conhecido: mais de 40% da população com 15 ou mais anos de idade utiliza plataformas de streaming de vídeo. No caso da subscrição, ou seja, estar a pagar efetivamente o serviço de streaming (diferente da utilização, já que esta pode ser feita através da conta de amigos ou familiares), o valor está atualmente nos 33,6%. Manuel Monteiro afirma que, até ao momento, não há qualquer sinal de que o pós-pandemia e o regresso à rotina estejam a ser um momento de decréscimo da procura por estes meios. “Prevê-se que, apenas com ligeiras alterações, os números de subscrição e utilização continuem nestes valores.”

A “morte” da televisão

Com base nestes valores e no aumento sentido durante o período da pandemia, Fábio Ribeiro, professor e investigador especializado na interatividade entre cidadãos e os media, acredita que há uma mudança nos hábitos de consumo, “mas não tão acentuada como se tem feito parecer”. Há pontos fulcrais a considerar que não têm entrado na avaliação das plataformas de streaming. Em primeiro, “a televisão ainda está viva”. “Tivemos a música do ‘Video killed the radio star’, que falava de como a televisão foi a ‘morte’ da rádio, mas a verdade é que isso não aconteceu e a rádio ainda aí está.” Agora, o mesmo acontece com a televisão e os serviços de streaming.

O investigador do Centro de Estudos de Comunicação Social (CECS) e diretor da licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) ressalva as questões sociais, económicas e de acesso. “O consumidor das plataformas de streaming ainda é visto como generalista, mas não o é.” Pessoas mais velhas e com níveis socioeconómicos mais baixos estão, ainda, “de fora deste novo luxo que é ver o que quero quando quero”. 80% das pessoas que utilizam estes conteúdos têm entre 15 e 25 anos e a maioria pertence a classes sociais A e B (as mais altas), avança Fábio Ribeiro.

Mas a inacessibilidade às plataformas de streaming por parte da população não se esgota por aí. A literacia é a problemática que fica, tantas vezes, por equacionar. “Não nos podemos esquecer que ver um filme num destes sites implica ter um dispositivo móvel, saber utilizá-lo, saber aceder a este conteúdo, ter como pagá-lo virtualmente… são diversos níveis de literacia que grande parte da população portuguesa ainda não alcança.” Em suma, “para se considerar que o streaming está a destronar a televisão era necessário, primeiro, colmatar todas estas falhas de acesso”, considera Fábio Ribeiro.

As preocupações dos especialistas não se ficam por quem não consegue aceder a estes meios. Quem os utiliza está também no foco de algumas problemáticas. Deve ser unânime que é bom termos por onde escolher, mas demasiada oferta e demasiado tempo em frente a vídeos podem significar riscos? Há quem defenda que sim.

“Bingewatching” é um termo corrente entre as gerações mais novas, que, tantas vezes, vangloriam nas redes sociais ou entre conversas de amigos as longas horas que passaram “colados” ao ecrã. “Colados é a palavra acertada”, destaca o neuropsicólogo Alberto Lopes, “porque o comportamento de ver uma série de forma ininterrupta por horas tem um efeito de vício, semelhante ao que, a nível neurológico, é associado ao uso de drogas”.

O extremo e a corrida

Mas não se pense que isto é de agora. Alberto Lopes realça que o termo “bingewatching” foi já em 2013 considerado um dos mais importantes daquele ano para a Oxford. A definição aparece ainda antes. E, afinal, o que é isto do “bingewatching”? Numa tradução para a língua portuguesa, “binge” significa “extremo” e “watching” significa “visualização”. O neuropsicólogo frisa que há uma baliza temporal para se considerar: ver três episódios de uma hora ou seis de meia hora. Ou seja, estar três ou mais horas em frente a um ecrã a consumir episódios consecutivos de uma série. “Quando dito assim, pode parecer demasiado, mas são valores facilmente atingidos de forma regular, principalmente entre as gerações mais novas.”

Mais recentemente, e como consequência do aumento da procura por estas plataformas, surgiu o termo “Big Race” (“a grande corrida”, numa tradução livre). “Falamos de um comportamento que surgiu recentemente e que retrata um consumidor que fica 24 horas seguidas a visualizar conteúdos para que consiga terminar uma nova temporada, em tempo recorde, logo após o seu lançamento.” As próprias plataformas de streaming, através de publicações nas redes sociais a considerar “fãs excecionais” estes utilizadores, “glorificam um comportamento que é nocivo para a saúde”, denuncia o neuropsicólogo Alberto Lopes.

Nuno Markl não se revê nestas atitudes, faz até “o exato oposto”. “Quando gosto de uma série tento ‘fazê-la render’, vendo os episódios a conta-gotas até que uma nova temporada seja lançada.” Já o fazia na tal altura dos “blockbusters”, quando “comprava uma caixa inteira das cassetes de uma série e calculava de quanto em quanto tempo podia ver um episódio para que durasse até chegar a caixa da temporada seguinte”. O humorista considera que a pressão de pares é a grande “arma” das séries. “Atualmente apontam-nos o dedo e sentimos vergonha se não vimos determinada série que está no topo das listas.” Nuno Markl compara com os clássicos cinematográficos: “Eu ainda não vi grandes filmes dos anos 1970 ou 1980 e ninguém me diz que sou ‘totó’ por isso, porque é que o fazem com séries que têm apenas meses?”

“Quando gosto de uma série tento ‘fazê-la render’, vendo os episódios a conta-gotas até que uma nova temporada seja lançada”, reconhece Nuno Markl, humorista, radialista e guionista
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Foi com um “grande fenómeno” da plataforma Netflix que Nuno Markl se apercebeu da ansiedade causada por estes comportamentos. Na altura da série “La casa de papel”, conta, não passava um dia sem que alguém lhe perguntasse se já tinha visto. Tanto perguntaram que, até hoje, ainda não a viu. “Fiz de propósito para contrariar essa pressão de grupo.” Ainda que seja sem se aperceber, o humorista previne, assim, alguns dos sintomas físicos e psicológicos associados ao consumo excessivo de conteúdo de vídeo.

Sintomas físicos e psicológicos

Boca seca, ritmo cardíaco acelerado e sentimento de vazio. Uma série que nos “cola” ao ecrã faz com que, durante o tempo de visualização, estejamos “quase que a viver aquilo como uma realidade”, causando sintomas semelhantes a perturbações de ansiedade ou depressão. Mas porque é que uma série é tão viciante? O especialista Alberto Lopes menciona dois fenómenos: Zeigarnik effect e estímulo constante da dopamina.

O primeiro é conhecido na psicologia como o facto de uma tarefa inacabada deixar o nosso cérebro constantemente em alerta. “E o que é que as produtoras fazem? Não terminam a narrativa quando termina o episódio, obrigando a ver o seguinte para saber o que aconteceu em determinada ação.” Assim, quando vemos apenas um episódio ficamos com o subconsciente “sobressaltado” e a “pedir” para terminar aquela “tarefa”.

Já a dopamina, o neurotransmissor responsável pela sensação de satisfação, quando constantemente estimulado – por exemplo, ao ver repetidamente episódios de uma série – pode acabar por ter um efeito contrário: de vazio. “Provavelmente muitos já experienciaram terminar uma série que gostavam e, no final, sentirem-se tristes, quase como se tivessem perdido algo ou alguém importante.” Porque, justifica Alberto Lopes, “há uma ligação muito forte que se cria com as personagens de uma série, quer seja por empatia, associação ou desejo de ser igual, e, quando nos apercebemos que não vamos mais acompanhar a sua história, o cérebro considera aquilo uma perda significativa para a nossa vida”.

Mais solitários

Também no campo das alterações de hábitos, neste caso não de consumo mas de comportamento, o neuropsicólogo Alberto Lopes acredita que há uma a destacar acima de qualquer outra: a tendência solitária. Com a era da Internet e, posteriormente, das redes sociais, caminhamos para uma sociedade individualista: em que cada um tem a liberdade de escolher o que fazer, quando e onde. “As plataformas de streaming só vieram acentuar essa individualidade”, adverte o especialista.

Se no início do século a televisão era um momento de convívio social e familiar, em que todos se reuniam em torno de um só ecrã para ver um único programa, hoje há a facilidade de ter múltiplos conteúdos. “Se eu não gosto do que o meu pai ou a minha esposa estão a ver, vou para o quarto ou sento-me num canto da sala, com o computador, e vejo algo diferente. Não há conversa, não há contacto.”

Ainda que Markl admita que esse é um caminho fácil e tentador, tenta contrariá-lo, fomentando que estes conteúdos sejam um momento de convívio com o filho. E, também, de aprendizagem. Dá um exemplo: “Recentemente, o meu filho chegou da escola e disse que todos os amigos estavam a ver um reality show da Netflix e que queria ver. Não gostando desse conteúdo, era fácil deixá-lo no quarto ou na sala sozinho, entretido, a ver sem mim”. Mas não o fez. Assistiu ao episódio do tal programa e no fim aproveitou a oportunidade para debaterem o que tinham acabado de ver. E como aquele conteúdo não era o mais apropriado para a idade dele.

Além da pressão para ver a série que está em alta no momento, é cada vez mais comum a pressão sentida para subscrever várias plataformas de streaming de vídeo – ou, pelo menos, para fazer a escolha mais acertada. Mas, entre tantas opções, pode ser difícil selecionar “a melhor”. Primeiro, há que considerar o fator económico. Ainda que o preço seja semelhante entre empresas, pode ser importante fazer uma comparação (ver tabela).

E não esquecer o serviço público. A RTP Play foi lançada em 2011 e, para Fábio Ribeiro, professor da UTAD, “é um alerta para as outras plataformas de que o streaming também tem de ser acessível a todos”. A adaptação do canal de televisão público ao streaming vem na onda europeia, por exemplo da BBC, que, em 2007, lançava o iPlayer. E não é apenas o serviço público que segue as tendências. Diversas plataformas chegaram a Portugal depois de se terem fixado em alguns países europeus. É o caso da mais recente, a SkyShowTime, já com presença noutros locais.

Avaliar, escolher e experimentar

Para o investigador de meios de comunicação, a adaptação da televisão ao streaming é o futuro. “A televisão não vai ‘morrer’, mas vai precisar de se adaptar, e começamos a ver isso acontecer, com o caso, por exemplo, da Opto, lançada pelo canal de televisão SIC.” Também no Brasil aconteceu o mesmo, com a GloboPlay a ser criada em 2015 e já disponível em Portugal.

Voltemos à escolha mais acertada: outra avaliação a fazer às diversas plataformas é o seu ponto forte e o tipo de conteúdo que consumimos. Ainda que as genéricas, que têm um pouco de “tudo”, como a Netflix ou a HBO Max, sejam as mais procuradas, há opções de nicho a considerar. De origem portuguesa, a recente FilmTwist oferece um catálogo exclusivamente dedicado ao terror – o que cativou, aliás, Nuno Markl, que “não via oferta de qualidade nesta categoria em mais nenhum lado”.

O conteúdo de nicho é a grande falha do mercado português de streaming de vídeo. Pela Europa já se encontram opções como o Cinesquare, especialista em cinema independente e de autor, o Discover.film, apenas com curtas-metragens, ou o Filmdoo, pago individualmente por cada conteúdo e que apresenta apenas cinema não-comercial, ou seja, que não correu salas de cinema.

Ainda que a crise seja um fator a considerar em qualquer mercado, Manuel Monteiro, diretor de estudos de meio da Marktest, avalia o das plataformas de streaming de vídeo como “estável. O investigador Fábio Ribeiro corrobora a ideia de Manuel Monteiro e questiona: hoje somos três milhões a ver streaming de vídeo, daqui a cinco anos seremos seis? Logo depois, responde: “Duvido, estamos a atingir um ponto limite de adoção deste meio”.