Sevgil Musaieva: “Não esperávamos muito de Zelensky”

Sevgil Musaieva em casa, com Abigail ao colo, um dia antes do início da invasão

A guerra começou a 24 de fevereiro de 2022. No dia anterior, em Kiev, Sevgil Musaieva, a poucos meses de fazer 35 anos, repousava em casa, com a sua cachorrinha, Abigail, ao colo. A diretora do jornal digital “Ukrayinska Pravda”, eleita pela revista “Time” uma das pessoas mais influentes do Mundo no ano passado, não suspeitava que vivia então as últimas horas de paz. O balanço do conflito iniciado pela Rússia ainda não está fechado. Há vidas perdidas, feridas insanáveis e traumas velados. O conflito visto a partir do seu interior dói mais. Desassossega-nos. Desistir? “Quem nasceu para voar nunca rasteja”, disse um dia Serhiy Rudenko, escritor e jornalista ucraniano.

Madrid, 8 de fevereiro de 2023. O VI Congresso Internacional de Editores da União Europeia e da América Latina anuncia a subida ao palco de Sevgil Musaieva, estrela maior do jornalismo ucraniano. A revista “Time” elegeu-a uma das pessoas mais influentes do Mundo em 2022. Num inglês irrepreensível, descreve a guerra híbrida (militar e propagandística) que os russos encetaram há um ano no território da Ucrânia.

Horas mais tarde, senta-se à mesa com a “Notícias Magazine”. Analisa as motivações do inimigo e assinala os erros do Ocidente que poderão ter motivado Vladimir Putin a iniciar o “pior conflito” desde a Segunda Guerra Mundial. Ri-se, hesita, reflete, lacrimeja. As emoções são moldadas por cada pergunta. Não é loura nem tem olhos azuis. “Eu sou tártara da Crimeia, mas nasci no Uzbequistão. Fiz depois a universidade em Kiev”, explica Musaieva.

Quando lhe perguntamos se as emoções são difíceis de conter, relata, sem complexos, a última vez que chorou. Os ucranianos pensam como o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard: “A vida só pode ser compreendida olhando para trás, mas só pode ser vivida olhando para a frente”.

Um ano após a invasão russa, os ucranianos já conseguem entender os motivos da invasão? De início, foram todos apanhados de surpresa?
Os ucranianos não estavam, de facto, preparados. É interessante pensar nisso sob essa perspetiva. Claro que depois da invasão da Crimeia, em 2014, eu sabia que algo mais iria acontecer porque Putin não iria parar por aí. A verdade é que aceitámos essa violação do Direito Internacional.

Ficou espantada com a relativa indiferença do Ocidente quanto à Crimeia?
Sim, fiquei espantada e acho que esse foi o grande erro. Se tivesse havido uma reação firme do Ocidente em 2014, talvez a invasão de 2022 não tivesse acontecido. A responsabilidade é tanto da liderança ucraniana quanto da comunidade internacional. Acho que foi o episódio mais grave desde a Segunda Guerra Mundial e deu-se a Putin a abertura para fazer o mesmo com outros países. Pessoalmente, não queria acreditar na invasão. Como é que em 2022 é possível um conflito desta escala? A nossa fronteira com a Rússia é de dois mil quilómetros. Já morreram muitos civis e militares ucranianos. É difícil de conceber que existam ataques de mísseis contra cidades pacíficas.

O problema está nos russos ou só em Vladimir Putin?
O principal responsável é Putin, mas temos de ter em conta como ele foi capaz de acabar com toda a oposição e com a comunicação social independente. Em mais de duas décadas, a Rússia passou de democracia a autocracia e depois a ditadura. A propaganda do Kremlin contaminou os cérebros. Os ucranianos foram demonizados aos olhos do povo russo. Isso é que torna possível que os russos entrem no nosso território e matem ucranianos.

“Desistir não é opção. Temos de continuar a lutar e a viver ao mesmo tempo”, garante a diretora do jornal digital “Ukrayinska Pravda”

Putin está doente e já não tem nada a perder?
Não temos qualquer confirmação disso. No entanto, garanto que não vou verter uma lágrima que seja se Putin morrer.

Os russos odeiam os ucranianos?
Uma parte deles, sim. Daí que sejam capazes de matar ucranianos. Esse é o resultado da propaganda de Estado que retrata os ucranianos como nacionalistas e fascistas. O objetivo da chamada operação especial da Rússia era o da desnazificação e desmilitarização da Ucrânia. Depois houve uma mudança no discurso de Moscovo. O objetivo da operação militar passou a ser o da luta contra os países ocidentais e contra a NATO.

Para além da energia e dos cereais, a invasão teve outros motivos? Sabemos que ao longo da história a Ucrânia foi considerada fundamental pelos líderes russos.
A Ucrânia é vista pela Rússia como um legado histórico e é importante perceber isso para contextualizar esta guerra. A Ucrânia foi a sua maior colónia.

A capital da Rússia até já se situou na Ucrânia.
Sim, é verdade. Foi em Kiev. Há aqui uma grande carga simbólica. E não nos devemos esquecer de que a Igreja Ortodoxa tem as suas origens na Ucrânia. O nosso país é visto como parte do império russo.

A invasão de 2022 foi devido ao assunto mal resolvido da Revolução Laranja em 2004?
Durante muito tempo, mesmo após a queda da URSS, a Rússia teve uma grande influência sobre o cenário político e económico da Ucrânia. Depois aconteceu a Revolução Laranja em 2004. Nesse momento, os ucranianos mostraram que desejavam a integração na União Europeia. Os ucranianos sonharam durante anos não fazer parte da Rússia. Estavam fartos das humilhações e só queriam ser um Estado independente. Para nós, era muito importante fazer parte da família europeia. Sofremos muito durante séculos debaixo do império russo e, depois, do soviético.

No dia 21 de fevereiro, poucos dias antes da invasão russa, Olga Rudenko, editora do “Kyiv Independent”, escreveu no “The New York Times” que Zelensky era “dececionantemente medíocre”. Esse era também o sentimento de alguns ucranianos?
Muita gente não aceitava a presidência de Zelensky em 2019. Na verdade, não esperávamos muito dele, até porque surgiram alguns escândalos de corrupção antes da invasão russa. No entanto, logo nos primeiros dias da guerra, ele deixou bem claro que não ia abandonar o país e que ia lutar contra o agressor. Depois disso, tornou-se um herói para a comunicação social ocidental e para os próprios ucranianos. Ele tornou-se um símbolo da resistência ucraniana. Muita gente não esperava tanto dele.

Visita de Sevgil Musaieva à Câmara Municipal de Trostianets, cidade a 30 quilómetros da fronteira com a Rússia. Os russos ocuparam Trostianets no primeiro dia de guerra

Qual é a importância de Zelenska na Ucrânia? Ela é vista apenas como uma primeira-dama comum ou como um exemplo para todas as mulheres?
Acho que ela é mais do que uma simples primeira-dama. Até ao final do ano passado, Zelensky não saiu do país, exceto para os EUA, já na reta final de 2022. Só mais recentemente é que visitou Londres, Paris e Bruxelas. Até então, Zelenska era uma espécie de embaixadora da Ucrânia, deslocando-se frequentemente ao estrangeiro.

As mulheres ucranianas sofrem com algum tipo de desigualdade?
A desigualdade entre homens e mulheres ainda é um problema na Ucrânia, uma vez que ainda não temos muita representatividade na política. Simultaneamente, na comunicação social e nas Forças Armadas, por exemplo, há muitas mulheres. A sociedade ucraniana respeita as mulheres, mas há alguns problemas. O papel de Zelenska é importante enquanto símbolo da luta das mulheres pela igualdade.

Pravda significa verdade. O seu jornal é ironicamente inspirado no “Pravda” russo?
O “Ukrayinska Pravda” foi fundado por Georgiy Gongadze, que era um jornalista famoso. A dada altura, quando trabalhava na televisão, entrou numa lista negra, no início de 2000, por criticar o Governo e o presidente. Ele tinha um grande sentido de humor e quis dar novo significado a certos termos. Ele brincou com a palavra Pravda, muito conotada com a propaganda russa. O “Ukrayinska Pravda”, nascido em abril de 2000, tornou-se no símbolo do jornalismo independente. Ele foi raptado e apareceu decapitado seis meses depois de fundar o jornal. Leonid Kuchma, que era presidente da Ucrânia nessa altura, foi apanhado em escutas que indiciaram o seu envolvimento no assassínio.

O que é mais chocante, relatar as mortes ou as agressões sexuais perpetradas pelos soldados russos?
É difícil de explicar. O terror é tanto… É claro que choca quando ouvimos os habitantes das aldeias a contarem as suas tragédias. Nós temos cerca de 90 jornalistas, alguns dos quais na linha da frente dos combates. Alguns estão na Polónia, caso seja necessário manter o jornal ativo apesar dos cortes da eletricidade provocados pelos bombardeamentos.

Embora o “Ukrayinska Pravda” esteja situado num cenário de guerra, a empresa é lucrativa, quando a maioria dos media enfrenta dificuldades em todo o Mundo. Como explica isso?
Antes da guerra, o nosso modelo de negócio assentava em 80% de receitas publicitárias, 9% em donativos e a parte restante nos leitores. Agora, a situação mudou drasticamente: 60% são donativos, 30% publicidade e 10% vem dos leitores. É um dos jornais digitais mais populares no país. No início da guerra, a nossa audiência chegou aos seis milhões de leitores. Agora, está em um milhão e meio por dia. A versão inglesa do jornal teve 131 milhões de visitantes únicos entre fevereiro do ano passado, quando começou a guerra, e janeiro deste ano.

Ao cobrir uma guerra, é difícil evitar notícias falsas ou informações incorretas?
Estamos preparados para as provocações, mas é possível acontecer. No entanto, nunca nos arrependemos até hoje de ter publicado qualquer notícia.

No início de abril, Sevgil Musaieva realiza a primeira visita a Borodyanka, cidade perto de Kiev que foi muito castigada pelos militares russos

Um ano após a invasão, acredita na vitória sobre os russos?
Claro que sim. Não temos escolha. A duração da guerra irá depender do apoio militar dado à Ucrânia. A vitória sobre a Rússia será partilhada pelos ucranianos com os europeus. O Ocidente investiu muito neste conflito. Deram-nos armas e acolheram os nossos refugiados. Essa vitória será crucial para o futuro da geopolítica mundial.

Alguns analistas ocidentais salientaram a importância de não humilhar demasiado a Rússia. Quando o Ocidente fez isso relativamente à Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial, surgiu Hitler.
Putin é um Hitler. Acho que não pode haver meios-termos nem cedências.

Acredita que a Crimeia voltará a ser ucraniana ou caminhamos para um cenário semelhante ao da Finlândia, país que teve de fazer grandes concessões para conseguir a paz?
Nós não começámos esta guerra. As violações de soberania foram do lado russo. A Crimeia seria sempre um cenário de guerra, mesmo que viéssemos a ceder território. A Turquia e outros membros da NATO ficariam sob ameaça se a Crimeia se tornasse russa. Devo lembrar que há cidades ucranianas bombardeadas por mísseis russos lançados a partir da Crimeia.

A liderança russa diz que o Ocidente foi arrogante devido à expansão da NATO para o leste europeu. Como comenta essa acusação?
O problema é que a Rússia ainda vive no Mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. Eles não queriam que os outros países da antiga URSS decidissem o seu próprio destino. Este é um grande erro da Rússia. Nós já não vivemos no século XIX nem no século XX.

Sevgil Musaieva no palco do VI Congresso Internacional de Editores da União Europeia e da América Latina, em Madrid

A pressa de entrar na União Europeia (UE) será positiva para a Ucrânia? Acredita seriamente que todo o processo será curto?
Nós não começámos este processo em 2022. Começámos em 2004, com a Revolução Laranja. Eu tinha então 18 anos. Sei que o meu país tem uma série de problemas como jovem democracia. Nós escolhemos este caminho da Europa em 2014, com revolução da “Maidan” (a Praça da Independência). Estamos há nove anos a percorrer esse caminho.

A Ucrânia, tal como a Rússia, tem um problema com o controlo dos oligarcas?
Sim, é verdade. Os oligarcas também foram afetados pela guerra, mas claro que temos problemas ao nível da corrupção e há alguma impunidade. Sabemos que a entrada na UE não vai acontecer amanhã, mas temos esperança num processo mais rápido do que é habitual.

Qual é a importância dos mísseis americanos de longo alcance para a Ucrânia e dos tanques alemães Leopard 2?
Os próximos dois ou três meses vão ser difíceis para nós, uma vez que esse é o tempo de espera pelo armamento. Nos próximos três meses, a Rússia vai aproveitar este compasso de espera para fazer uma grande ofensiva. Vamos assistir a uma escalada do conflito e, precisamente por causa disso, o presidente Zelensky deslocou-se, recentemente, a vários países europeus. Para a Ucrânia, o tempo significa vidas humanas.

Os soldados ucranianos estão preparados para usar este novo armamento ocidental?
Muitos soldados estão a receber formação e estarão preparados.

A sua família e círculo de amigos foram afetados pela guerra?
Sim. Eu nasci no Uzbequistão, mas os meus pais tinham vivido na Crimeia. Em 1944, os tártaros foram deportados da Crimeia para o Uzbequistão. Em 1990, um ano antes do colapso da URSS, Gorbachov permitiu o regresso dos tártaros à Crimeia. Depois deu-se a invasão russa da Crimeia, em 2014, e só então é que foram para Kiev. Em 2022, mesmo antes do inverno, resolveram sair da Ucrânia rumo à Alemanha. Pela segunda vez na vida, tornaram-se refugiados. Eu fiquei sem um amigo que conhecia desde os tempos de escola. E doeu-me muito quando tive de ser eu a dar a notícia à minha irmã sobre a morte do companheiro.

Conhece jornalistas que perderam familiares?
Um dos meus colegas perdeu o pai no massacre de Bucha. O apartamento de uma colega foi atacado por um míssil e ela foi viver para outra região.

Choram, por vezes, na redação do jornal?
Eu fico contente quando choro. Estou a libertar as emoções. A última vez que chorei foi quando caiu um míssil em Dnipro, a 14 de janeiro deste ano. Morreram 45 pessoas. Eram só civis inocentes. Eles usam normalmente aquele tipo de míssil para atacar porta-aviões, mas desta vez usaram-no contra um prédio residencial. Não conhecia nenhuma das vítimas, mas foi tocante relatar a história de uma rapariga que já tinha perdido o namorado na guerra e que com aquele ataque ficou, de uma só vez, sem o pai e sem a mãe.

Nos primeiros dias da invasão em grande escala, Sevgil Musaieva esteve em Chernihyv, a cidade que estava então sob ataque russo

A Ucrânia tem atualmente muitos órfãos?
Sim, esse é um problema sério. Não é possível adotar órfãos durante a guerra, mas acho que isso vai acontecer quando terminar o conflito. No dia 10 de outubro, houve um ataque de mísseis em Kiev e uma mulher morreu. O filho não teve ninguém de família para o ir buscar ao infantário, uma vez que o pai já tinha morrido meses antes ao combater os russos.

Como é que os jovens ucranianos lidam com a guerra? Para além dos mortos e dos feridos, a Ucrânia vai ter de lidar com muitos traumas mentais?
A guerra afetou-nos a todos. E é muito difícil medir ou explicar a gravidade do nosso trauma. Apesar disso, os ucranianos querem celebrar a vida. Esta guerra, com toda a dor que provoca, está a deixar-nos exaustos. No entanto, desistir não é uma opção que tenhamos. Temos de continuar a lutar e a viver ao mesmo tempo.