Sérgio Godinho: “A democracia está sempre em perigo, mas depende do quanto se quer da democracia”

Acredita no amor à primeira vista (mesmo que as dissonâncias separem depois). Não se revê como cantor de intervenção, chamem-lhe escritor de canções (título que inventou para um disco). Não entende essa coisa das gerações, não percebe essas fronteiras por tempos e idades. Aprecia a transversalidade dos seus públicos e gosta de destruir barreiras. O seu primeiro álbum saiu há 52 anos. Recebeu o Prémio Carreira Play 2023. Aos 77 anos, tem concertos, vai publicar o terceiro romance, acaba de lançar um songbook com 75 canções, anda a afinar contos já escritos. Que força é essa, Sérgio, que o faz continuar na estrada?

O momento há de surgir na conversa. Uma mulher pára-o na rua para lhe agradecer por tudo e por tanto. E diz-lhe: “Você constrói-me”. É bonito. Não se esquece. Os primeiros discos contam e cantam a história do país. As canções são percursos, vivências, interrogações. É mais de perguntas do que de respostas, admite. Saiu de Portugal porque queria mundo. Voltou. Cantor, compositor, intérprete, ator, autor de bandas sonoras, realizador, argumentista. O homem dos sete instrumentos. Um saltimbanco. Um senhor.

“Palavras são imagens são palavras” [estamos com esse livro nas mãos] tem poemas e fotografias. Primeiro escreveu e depois fez as fotos? Ou foi à procura de uma imagem antes do poema?
Foi caso a caso. Sempre fiz poemas, vou fazendo, não me sento a fazer poemas, e sempre tirei fotografias. A maior parte que está nesse livro é de iPhone ou de câmara compacta. Esta foi tirada num comboio em movimento, ia no Alfa para o Porto, as coisas mais próximas estão desfocadas. São fotografias onde há um olhar pessoal. Caso a caso, achei que podia haver acasalamentos que seriam interessantes. Mas também é verdade que houve fotografias que me suscitaram um poema. O primeiro poema “A cada degrau” foi inspirado na fotografia. Tinha visto estas escadas já com erva a crescer e isso suscitou o poema. Qualquer coisa pode ser o ponto de partida para uma criação. O meu ímpeto, que é transversal, que é comum, é criar.

Diz, aliás: “Não vivo se não criar, não crio se não viver”. Será este o seu mais belo e fidedigno cartão de visita?
Acho que sim, de certo modo, porque não consigo viver numa bolha só de criação sem ter contacto com a realidade. A realidade dá-me, muitas vezes, as pistas para a criação. Se estiver muito tempo, enfim, a viver, mas sem criar, começo a ficar com uma determinada urticária, um bocadinho inquieto. Não quer dizer que a criação resulte sempre, nem sequer sou um imediatista, eu preciso de trabalhar.

Tem método nesse processo criativo ou as coisas surgem ao acaso?
Não há uma criação, há várias. Ultimamente, tenho estado muito dedicado à ficção narrativa e menos às canções. Muitas vezes, é um estímulo exterior, um convite. Fiz uma canção para o Camané chamada “O fado que em tempos te cantei”, fiz letras para canções dos Clã no último disco, “Tudo no amor” é uma canção de que gosto imenso. Não há um método geral até porque, como digo, as criações são de foro diferente. Criar uma canção é, desde logo, matéria de duas formas de expressão, de duas artes, a música e as palavras, e cada uma tem os seus códigos próprios.

Sérgio Godinho com Camané e Manuela Azevedo, num concerto em 2019
(Foto: DR)

É da inquietação que nasce a criação?
De certo modo, acho que é. Neste momento, entreguei um terceiro romance à editora, ainda vai ser revisto por mim e pelo editor, fazemos sempre isso. Uma olhadela de outra pessoa comigo não é uma coisa hostil, bem pelo contrário, é um último trabalho de colaboração. Tenho uma série de contos escritos e, neste momento, tem-me acontecido, à noite, atirar-me a um conto e ver o que há ali que pode ser melhorado ou alterado. Essa necessidade de criar quando, no fim de contas, esses contos sairão sabe-se lá quando. Essa necessidade de pôr as mãos na massa, como se diz.

Escrever e compor organizam-lhe a cabeça?
É engraçada… essa pergunta… Outro dia, perto de minha casa, moro perto do centro de Lisboa, seja lá o que isso for, num dos centros de Lisboa, uma rapariga parou-me na rua, uma rapariga não muito nova, não sei quantos anos, e disse-me “muito obrigada”, coisas que se dizem muitas vezes, simpáticas de ouvir. E depois disse-me: “Você constrói-me”, o que achei uma coisa espantosa. “Você constrói-me.” Aí fui eu que lhe agradeci. E lembrei-me que a minha mãe, que gostava muito de música, tinha o curso superior de piano, tocava em casa, gostava muito de Bach. Uma das coisas que ela dizia era: “O Bach organiza-me a cabeça”. O que é muito interessante porque, de facto, na escrita dele consegue-se ver todos esses desenhos, esses gráficos, dessa organização. Sim, há uma forma de organização.

Apresenta-se como escritor de canções. Demorou tempo a encontrar a sua narrativa musical, a sua voz, quando, no início do início, sentia que tudo lhe soava a Zeca Afonso?
Quando comecei a cantar, a compor, não encontrava uma voz pessoal, uma voz poética e musical. Quando uma vez disse que tudo me soava a Zeca Afonso foi um exemplo porque o Zeca é um exemplo maior. Mas as minhas canções não são como as do Zeca, têm muito pouco a ver, os universos, não só musicais como poéticos, são muito diferentes. Quando saía um disco do Zeca, era muito estimulante para mim porque dizia “uau, que inspirado que ele é” e, de certo modo, estimulava-me a fazer as minhas próprias coisas, apetecia-me compor. Mas não como o Zeca, não para imitar o Zeca.

Com um ponto em comum, ambos foram chamados cantores de intervenção. É um rótulo que o chateia?
Não me reconheço nele. É uma designação que, aliás, apareceu só depois do 25 de Abril, e durante um período, e não define aquilo que fazemos na sua totalidade. O que é intervenção? Podemos intervir em pontos da sensibilidade das pessoas, pode haver uma canção mais social, uma canção mais para-política. As canções do Zeca são de teor muito diverso. “Grândola, vila morena”, símbolo do 25 de Abril, é, desde logo, escrita para um coro alentejano e é sobretudo uma ode à amizade. E tantas outras canções do Zeca, como tantas outras canções minhas, não sei que rótulo é que se pode pôr. A maior parte das minhas canções mais conhecidas como “O primeiro dia”, “Com um brilhozinho nos olhos”, “Espalhem a notícia”, “Lisboa que amanhece”, “É terça-feira”, etc., onde é que encaixam no termo intervenção? Não encaixam, pois não? São canções vivenciais, umas mais lúdicas, outras mais sérias, canções de percurso, canções de interrogações. Sobretudo gosto de misturar géneros. Tenho uma canção chamada “Dancemos no mundo” que fala dos casais separados por razões religiosas, ideológicas, políticas, e do seu desejo de poderem dançar juntos sem que essas barreiras existam. É uma canção de amor? É uma canção política? É tudo isso. Gosto que essas barreiras se destruam. Não me reconheço em etiquetas.

O homem dos sete instrumentos. Não será um peso demasiado pesado, passe a redundância, de fazer tudo e fazer tudo muito bem?
Atenção, quando faço, espero que saia bem. Aí sou teimoso. Posso ser preguiçoso noutras coisas, mas sou teimoso até encontrar aquele grau de apuro em que digo “não consigo que isto vá mais longe”. São definições que vieram das minhas canções. Tenho uma canção chamada “O homem dos sete instrumentos”, assim como “Escritor de canções” foi algo que inventei para um título de um disco. Achei que dizer escritor de canções criava uma espécie de conflito interessante.

Falou da sua mãe, pianista, tinha jeito para escrever versos, o seu pai era melómano, uma avó alfarrabista.
Alfarrabista durante um tempo. Era atriz, tinha um programa numa rádio local, do Porto, onde dizia poesia, esse som da poesia, dita. A oralidade da poesia sempre me foi muito caro. Nessa altura, quando era adolescente, apareceram os espetáculos ao vivo do João Villaret a dizer poesia, os meus pais tinham esses discos, eu próprio vi o Villaret ao vivo. Essa oralidade sempre foi um grande estímulo para mim porque é aí também que se ouve a música das palavras.

Esse caldo cultural onde cresce foi determinante para ser quem é?
Sem dúvida. E não era só isso. Os meus pais foram sócios, desde o primeiro momento, do Teatro Experimental do Porto. Íamos ao São João, ouvi muita música clássica com os meus pais, íamos a exposições de artes plásticas. Vivi sempre muito próximo da cultura e a cultura no Porto sempre foi bastante pujante e viva. Não é por acaso que a grande escola tradicionalmente de arquitetura é no Porto, de onde saíram dois prémios Pritzker, para um país do nosso tamanho é absolutamente espantoso. Estive sempre muito perto da cultura ativa e também dos seus limites censórios. Isso é outra história. O meu pai era completamente antissalazarista. Lembro-me de ter visto filmes, no primeiro país onde estive, na Suíça, com mais 15 minutos porque aqui estavam cortados, sobretudo cenas de nudez ou de sexo ou com aspetos políticos. Quando apareceu o Bergman, lembro-me de as legendas, às vezes, serem exíguas, quando as frases eram imensas. Claro que também era por uma questão de economia porque se falava muito nos filmes do Bergman. De qualquer maneira, era uma forma de censura porque não tínhamos acesso à língua sueca.

Esse rasto da censura foi marcante, enquanto jovem?
Nessa altura, não tinha uma atividade política, só comecei a ser marcado quando comecei a fazer discos e já estava no estrangeiro. Mas tinha conhecimento do que havia, do fenómeno do lápis azul, e do que havia para contornar essa censura.

Quando decide estudar, escolhe Economia no Porto, depois desiste, vai para Genebra estudar Psicologia durante dois anos…
Ainda fui aluno de Jean Piaget, embora ele viesse dar uma aula de cátedra todas as semanas, era só uma presença simbólica. Tive uma desilusão e, se calhar, foi salutar. Eu, de facto, queria era ir para o estrangeiro.

Queria ter mundo.
Queria ter esses outros mundos que não conhecia e dos quais estava sôfrego, e queria ser autónomo também. Aos 20 anos, quando parti, tinha necessidade de sair e, no entanto, tinha um bom ambiente familiar, não me posso queixar disso. Gosto muito do Porto, mas, nessa altura, estava a abafar. Aquela psicologia que se ensinava em Genève era muito sobre as teorias do Piaget, desenvolvimento intelectual da criança, epistemologia genética, coisas que, no fim de contas, não me ensinavam outras coisas e, se calhar, foi bom que fosse assim porque fiz a rutura. Houve um momento muito importante para mim, em que estava em crise, e queria deixar Psicologia, como fiz. Um momento em que disse a minha vida vai ser pelas artes. Gostava muito de cinema, cheguei a pensar ir para uma escola de cinema. Gostava muito de teatro, tinha feito teatro no Teatro Universitário do Porto. Gostava muito da música e estava, muito imberbemente, a começar a fazer canções, de uma maneira ainda muito precária. Estava a aprender a fazer canções.

Era por aí o caminho.
Era por aí, senti-o, porque, de facto, já quando era adolescente, gostava de, repito, teatro, de representar, aprendia poemas de cor e dizia-os, e sempre gostei de música. Aos 15 anos, comprei a minha primeira guitarra acústica com um trabalho de verão que fiz no escritório do meu pai, que era negociante de têxteis, foi ele quem trouxe para Portugal o nylon e outras coisas.

Sérgio Godinho reconhece: “Não consigo viver numa bolha só de criação sem ter contacto com a realidade”
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Maio de 68, estava em Paris. No 25 de Abril, estava no Canadá. Foi o cheiro a liberdade que o fez voltar?
Já tinha dois discos gravados. No fim de contas, estive nove anos fora, nos dois primeiros, ainda a estudar e estava adiado da tropa, ainda pude vir cá no Natal, depois, quando deixei de estudar, tornei-me refratário, ou seja, aquele que não responde à chamada, ao apelo pátrio. Comecei a viver com uma canadiana, a Sheila, mãe da minha filha mais velha, já não tinha passaporte, já não tinha papéis, a certa altura tive um passaporte de exilado da Holanda, mas era extremamente restritivo, tinha de se pedir vistos para ir a qualquer país. Informámo-nos, eu e a Sheila, que se nos casássemos ao chegar lá, teríamos papéis com bastante facilidade e resolvemos ter essa aventura de ir para outro continente, conhecer outro país.

E volta a Portugal.
Quando veio o 25 de Abril, tínhamos uma viagem marcada para Paris e consegui saber que podia vir a Portugal. Estávamos com um grupo de teatro, em Vancouver, tínhamos atravessado o Canadá durante um verão numa carrinha, a trabalhar pelo caminho. Encontrei um país fresco de novidade, cheguei no princípio de maio, estive cá duas semanas. Realmente foi um banho de outra realidade e as pessoas conheciam as minhas canções.

No livro “Sangue por um fio”, num dos poemas, escreve: “Liberdade é uma palavra a ser usada extremamente com devida parcimónia”. A liberdade tornou-se numa palavra banal? Uma espécie de contrafação do que deveria ser?
Não há um conceito absoluto para liberdade. A liberdade é aquilo se faz com ela, embora me seja indispensável como ideia. Usei esse termo numa canção que chamei “Liberdade”, onde digo precisamente que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação, mas que esses conceitos sejam preenchidos porque senão são palavras ocas, conceitos ocos. Quando falei dessas cinco coisas, podia ter acrescentado a justiça, várias outras coisas, mas também digo algo que acho que é um bocado a ideia-chave dessa canção: liberdade de mudar e de decidir. A liberdade é a liberdade de mudar.

Os seus romances têm muito a presença do universo feminino. É um espaço que lhe é familiar?
Sim. Nas canções tenho personagens femininas e até algumas em que eu falo na primeira pessoa como “A balada da Rita”, aliás, composta para uma personagem feminina do “Kilas, o mau da fita”. E deixa-me fazer um parêntese e já volto. “A balada da Rita” é um bom exemplo. As canções, muitas vezes, acontecem-me por encomenda e, nesse sentido, gosto de encomendas, fazem-me escrever aquilo que eu não imaginaria escrever, mas depois as canções autonomizam-se. Se fizer uma versão, como aconteceu com “A balada da Rita”, que está no “Pano-Cru”, depois já nem me lembro que aquela canção foi do “Kilas, o mau da fita”. Realmente tenho várias personagens femininas, lido bem com o universo feminino, estou perto do universo feminino, compreendo as mulheres à minha maneira. Dou-me bem com mulheres, tenho muitas amigas, e isso também se transmite à criação. O que não compreendo são aquelas coisas que se dizem, “as mulheres são um mistério e não dá para as compreender”, já ouvi o Lobo Antunes dizer isso. Acho que há mulheres que são um mistério e outras que não têm mistério nenhum. E mais: eu acho que compreendo. Mas cada qual é cada qual.

Acredita no amor à primeira vista?
Ai acredito, acredito. Tenho um capítulo no livro “O sangue por um fio” que se chama “Do amor à primeira vista” e tenho um poema chamado “O destino súbito” que é precisamente isso. Há qualquer coisa de um ímpeto de duas pessoas se encontrarem e, de repente, perceberem que há ali consonâncias que podem depois não se confirmar, mas acho que é uma força. São forças, de facto, um bocado misteriosas, mas, lá está, é como a criação. Como é que a criação aparece? Às vezes, há ímpetos, não sei como é que aquilo aconteceu, que são misteriosos, mas, para lá disso, há o trabalho à volta disso. “Lisboa que amanhece” apareceu-me primeiro de uma maneira muito rápida, não só de letra, como de música. Depois parecia que ia ser tudo fácil e não foi para manter esse grau de frescura, de genuinidade, sem parecer uma coisa laboriosa. Nas canções, há uma coisa que é importante: o resultado parecer fácil, fluido, não uma coisa forçada quando, no fim de contas, deu muito trabalho a fazer. Não se pode sentir demasiado o trabalho.

“Não subscrevo nada a ideia de que dantes é que se faziam boas canções e que agora não há nada”, garante Sérgio Godinho
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Passaram-se 52 anos do seu primeiro álbum “Os sobreviventes”. As suas canções contam a história do país?
Sem me dar por isso, os títulos dos três primeiros discos refletem um pouco aqueles anos. “Os sobreviventes”, aquilo que foi de peso para trás, onde as pessoas estavam em 71. O “Pré-Histórias”, sem eu saber, anunciava já qualquer coisa que teria de acontecer. E, depois, “À queima-roupa”, está tudo ali a acontecer e a rebentar depois do 25 de Abril. Mas, sim, refletem um bocado o ar do tempo, aliás, não é por acaso que o “À queima-roupa” e a seguir o “De pequenino se torce o destino” têm uma componente, enfim, chamemos-lhe política ou para-política mais presente. A política era um espelho do quotidiano, do que estava a acontecer.

Recebeu o Prémio Carreira Play – Prémios da Música Portuguesa e, no fim do discurso, disse “continuemos a lutar por ela”, pela música. É um aviso à navegação?
Foi simplesmente o que me saiu, não tinha nada escrito para dizer. Continuemos a lutar por ela no sentido de ela estar viva e de também termos condições de trabalho num país que é, muitas vezes, precário – onde inclusivamente a quota da música portuguesa, a certa altura, desceu. Temos de continuar a lutar por ela em todos esses aspetos, não só no aspeto legal, mas também de as pessoas se reconhecerem na nossa música. Este nossa é um plural muito plural porque há música de todo o género e é legítimo que se goste mais de um género. Eu gosto, de facto, da transversalidade dos meus públicos. Ainda agora estive na Fnac Live, ali ao pé da Torre de Belém, cantei das oito às nove, ainda era de dia, e via as pessoas. E, de facto, é um público extremamente transversal, o que é curioso, não há uma explicação simplória para isso, mas acho que há um apelo musical e acho que aquilo que falo toca pontos da sensibilidade das pessoas que são de todo o género.

Fala da vida precária. Os orçamentos do Estado têm sempre uma percentagem mínima dedicada à Cultura, muitas vezes não chega a 1%. Este tratamento faz sentido?
Não, não faz sentido. Até porque, muitas vezes, o retorno da Cultura na fruição e na educação das pessoas, na vontade de quererem criar ou serem estimuladas nas suas diversas atividades, e podem não ser atividades especialmente criativas, não se quantifica. Diz-se que subsidiar um grupo de teatro é deitar dinheiro ao lixo ou que levar um espetáculo a determinado sítio com um caché x é gastar dinheiro porque nessa terra podia-se estar a consertar ruas. A Cultura é efémera, muitas vezes. Um espetáculo é efémero, mas deixa marcas.

As histórias dos seus livros e das suas canções, de alguma forma, entrecruzam-se, fundem-se, encontram-se? Ou são territórios separados?
São territórios separados. Tenho dois romances e um terceiro a sair. No primeiro, “Coração mais que perfeito”, a presença da mulher é bastante fulcral. No “Estocolmo”, as duas personagens são igualmente importantes e a terceira, que só aparece a partir de meio, também. São universos próprios, nem sempre nas minhas canções conto histórias, muitas vezes são narrativas, é raro que haja uma história com princípio, meio e fim. Contar histórias é algo que me surge naturalmente, mesmo os livros infantojuvenis que fiz, nomeadamente “O pequeno livro dos medos”, não há uma história linear, uma história entronca-se na outra, um bocado como as cerejas, pega-se numa e vêm outras agarradas. Ainda hoje comi cerejas. Maravilhoso.

Na canção “O novo normal” diz que este novo normal é “terreno minado de acasos”. Ficamos mais fortes ou mais frágeis depois de um vírus que virou o Mundo do avesso?
Para muitos de nós, é só uma recordação de um período tão estranho que não sei se ficamos mais fortes. Acho que não ficamos mais fracos, aprende-se sempre. Foi algo de tão insólito. Tive necessidade de fazer esta canção porque durante o primeiro confinamento, em 2020, éramos de tal maneira bombardeados por aqueles novos conceitos todos os dias na televisão, na Net, novos conceitos que nem sequer, muitas vezes, conhecíamos as palavras. Tinha de exprimir um pouco esses termos e, sobretudo, dar uma espécie de vinhetas curtas, uma espécie de lampejos disso tudo que nos perturbou tanto.

Uma necessidade de expurgar?
Uma forma de falar disso e deitar para fora. É raro ter canções feitas no momento, geralmente preciso um bocado de recuo, mas aqui não havia recuo possível, estava a acontecer e fui falando disso, dizendo até que o medo não tenha naturais fundamentos, até que o medo não seja uma coisa real. Claro que tínhamos medo e era por isso que púnhamos uma máscara. Tínhamos medo de ser contaminados, que acontecesse alguma coisa mais grave.

As colaborações que tem feito ao longo do tempo com os seus camaradas da música dão-lhe prazer? São partilhas que o satisfazem?
Dão-me imenso prazer. Gosto de parcerias. No meu disco “Nação valente”, tenho mais parcerias do que o costume, músicas de outros e letras minhas, geralmente é isso que é mais frequente. No “Coincidências”, tenho várias parcerias, uma com Milton Nascimento “A barca dos amantes”, com o Ivan Lins, mas quando chegou a altura de convidar o Chico Buarque, que acabo de ver agora de novo com grande prazer, quis fazer o contrário, quis ter as palavras dele, então dei-lhe uma música e ele fez a letra, e resultou numa canção chamada “Um tempo que passou”. Sim, sim, dá-me prazer a interação. E, já agora, há uma coisa que me é perguntada porque, muitas vezes, vou procurar gente mais nova para trabalhar. O facto é que eles é que vêm ter comigo.

É curioso e é bonito.
É bonito. Aconteceu no caso dos Clã, em que houve um disco inteiro que foi feito a partir de um espetáculo em que cantavam coisas minhas e eu deles. Mais tarde, fizemos várias canções juntos, das quais talvez a mais emblemática seja “O sopro do coração”, uma belíssima canção e bastante premiada. É-me natural, mesmo com os meus músicos, que agora estão nos 50 anos, também já estou nos 70, e que são mais novos do que eu. Há uma linguagem comum. Quando falo de linguagem, falo de linguagens musicais que não são necessariamente comuns, mas em que absorvo muito do que eles têm para me dar e eles também absorvem muito do que eu tenho para lhes dar. Mas também a nível do quotidiano, do humor, da maneira como nos relacionamos, na grande cumplicidade. Não tenho a noção da geração, não tenho mesmo, não sei o que é isso. Quando me dizem “você é mesmo da minha geração” não sei bem o que isso quer dizer porque há pessoas da minha idade e com as quais não tenho relação nenhuma, há outras que sim, e há outras que são de idades diferentes com que tenho amizades naturais.

E quando olha à volta, na música, para o que está a surgir, há talento, há qualidade?
Acho que sim. Não sou muito de citar nomes. A Márcia é das pessoas que escreve melhor – no “Nação valente”, a única canção que não é minha, “Delicado”, é da Márcia. A Garota Não, com quem interagi há pouco tempo, é de uma grande qualidade, o Samuel Úria, a Capicua, os Capitão Fausto, vários outros. Conheci há pouco tempo uma outra cantora-compositora chamada Ana Lua Caiano, achei um caminho muito pessoal extremamente interessante. Há uma perpetuação da novidade que acho natural. Não subscrevo nada a ideia de que dantes é que se faziam boas canções e que agora não há nada.

Há pouco falava da liberdade, da paz, do pão, habitação, saúde, educação. Vivemos uma crise, podemos falar noutros conceitos, inflação, corrupção. A democracia está em perigo?
A democracia está sempre em perigo, mas depende do quanto se quer da democracia. Não acho que vá haver, em breve, uma ditadura em Portugal, não é isso. Mas está empobrecida porque vemos a facilidade com que a corrupção, por exemplo, galgou várias esferas, e não só da política. Ainda agora se fala muito dos juros miseráveis que os bancos dão pelos depósitos, mesmo comparados à bitola europeia. A democracia está frágil porque também as pessoas deixaram de se importar com isso. E isso é grave. Origina a adesão a partidos populistas, que singram aqui e noutros sítios. As pessoas estão-se um bocado marimbando. A qualidade democrática deixou de ser uma preocupação.

Há um descrédito na classe política?
Há um descrédito e isso é muito triste. A classe política também fez por isso.

A espécie humana está a evoluir bem ou já teve melhores dias?
Já estivemos melhor. Há coisas preocupantes e que ainda estamos para perceber como, por exemplo, este novo invento da inteligência artificial que está a ir de uma maneira tão rápida e assustar gente bastante informada e bastante inteligente (não artificial). Não a compreendo ainda bem, mas há qualquer coisa de preocupante. Há uma espécie de bicho à solta que não se consegue apanhar agora.

Sérgio Godinho assegura: “Sou teimoso até encontrar aquele grau de apuro em que digo «não consigo que isto vá mais longe»”
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Escreve neste livro [o que temos nas mãos]: “Todos dizem – ‘Porque é que não se fala do essencial?’. Todos querem fazer parte do que é essencial. Ninguém pergunta o que é essencial”. O que é essencial?
Sou mais de perguntas do que de respostas. O que é essencial é que todos saibam responder à sua maneira e com a sua verdade e não com a verdade dos outros, que pode ser, muitas vezes, um veneno. Há venenos de todo o género. Há venenos nas redes sociais. Há venenos na pequena traição que fazemos a nós próprios. Há venenos quando tu, sem saber, passaste para o outro lado e não são coisas em que tu acreditas e já não consegues voltar. Há canções para tudo. “Faz parte”, que compus para o espetáculo “Três cantos”, diz: “Em que dia e porque foi que viraste às avessas, agarrado a um vão labor, juntar de novo as peças”. E já não consegues juntar de novo as peças. É muito importante não nos trairmos a nós mesmos, seja lá o que isso for.

Que força é essa, Sérgio, que o faz continuar na estrada?
Eu sou um bocado saltimbanco. Essa força vem desse meu estado permanente de saltimbanco. Na estrada, como músico, a canção realmente toma o seu sentido pleno nos palcos, seja ao ar livre, seja em auditórios. A canção realmente existe na sua função e na sua fruição máxima no palco com o público, nessa prova de fogo que é estar num palco. O espetáculo começa aqui e agora tem de ir até ali. E a gente tem de se aguentar.