Senhor de Matosinhos
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Por toda a parte se faz festa. O calor é tempo de arraial e até as lendas dos aflitos se contam com baile e cor, comida e barulho. Lembro sempre do tempo que passei na ilha da Madeira onde a cada semana se faz arraial numa freguesia diferente. Andam de romaria em romaria as pessoas todas, a ilha cheia de gambiarras como se lhe pusessem colares e brincos e tudo fosse de passear e namorar.
As festas populares são para dizerem respeito a toda a gente, sem grandes peneiras e sem outra mania senão a da alegria. Com a idade, vamos usando cada festa de modo distinto, como se pudéssemos garantir nosso maior ou menor conforto diante do corpo envelhecendo e a paciência ficando mais complexa.
Hoje, ainda que goste sempre do S. João e do S. Pedro, o Senhor de Matosinhos é o meu arraial. Os churros do Mário, os cachorros-quentes, as figuras da cascata que Barcelos traz para vender, os queijos por toda a parte, o bolo de caco, as rifas de caridade, a casa do terror, as pulseiras pretas para homem, gosto de reencontrar tudo como quem cumpre mais um ano, mais uma volta no carrossel do Inverno que agora acabou mesmo.
Vou sempre com a minha mãe. Esgueiramo-nos pela multidão de braço dado para cuidar do perigo dos empurrões, e vemos todas as barracas e comentamos o que se vende como se nos desse uma saudade. Comemos sorvetes e vamos invariavelmente refilar acerca das assadeiras de barro preto que queremos comprar porque se partiram as que tínhamos. Depois, fica para mais tarde. Como as facas de cabo de madeira. As de que mais gostamos. Temos tantas que nos dão um ar rústico à cozinha. E queremos mais, para serem afiadas e robustas como as outras não conseguem ser.
Vamos ver se a igreja está aberta. Bonita e mais quieta, comove as pessoas. Julgo que a festa traz também uma esperança maior. Que o santo se venere em festa produz uma fé sincera, a fé de quem quer ver aquela alegria por toda a parte, por todo o ano. O que se venera em tristeza parece ter apenas tristeza para garantir aos crentes. Na igreja, quando conseguimos entrar, reparo em como as pessoas interrompem o ruído mas sorriem por ali dentro igual a ainda serem perto de alguma felicidade. São cada vez mais raras as vezes em que reparo na felicidade no interior das igrejas.
Nunca vou apenas por um dia ao Senhor de Matosinhos. Primeiro, vou para vigiar como tudo está reposto, meio a desconfiar de um dia alguém me estragar aquilo. E vou para ver o cartaz, que em alguns anos os cartazes são lindos, muito lindos. Depois, vou para comprar os cacos que fazem falta e alguma figura da cascata. Depois, começo a ir só por causa das comidas. Mais tarde, quero ir como quem vai dizer até breve e sabe que pelo meio teremos muita espera, outro Inverno, festas pequenas.
Matosinhos tem qualquer coisa de genuína festa. Não sei bem explicar. O modo como se fez uma cidade de onde o povo não foi expulso, de onde o ofício do mar não produziu timidez mas resultou em brio nos melhores restaurantes, não é comum. A harmonia do que é popular com a cidade mais sofisticada sente-se em toda a parte. Gosto disso. Gosto muito, muito disso.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)