Rock in Rio Febras. O fenómeno nunca antes visto

Numa aldeia em Guimarães, Briteiros S. Salvador, nasceu há um ano um pequeno festival de rock solidário, solidário mesmo, nas margens do rio Febras, criado pelas mãos de uma IPSS, com uma freguesia inteira a ajudar. O Rock in Rio Lisboa embirrou com o nome, levou resposta e o resto é uma avalanche difícil de travar. Caiu nas bocas do Mundo, gente de todo o lado a querer contribuir, bandas nacionais a oferecerem-se para atuar, milhares a anunciarem ir e um contrarrelógio para se prepararem para a enchente. Sejam bem-vindos ao (por enquanto) Festival de Rock Que Acontece Perto do Rio Febras.

A t-shirt branca com letras estampadas a preto salta à vista no meio de uma sala cheia do centro de dia da Casa do Povo de Briteiros. Diz “Rock in Rio Febras 2022” e é envergada com o orgulho de quem esteve num Woodstock ou no Live Aid, de quem fez parte de um marco histórico na sua devida escala. “É o tio Domingos, é utente aqui e foi no ano passado ao festival”, despacha-se a explicar Vasco Marques, presidente da direção da IPSS da freguesia de Briteiros S. Salvador, em Guimarães, que organiza o festival solidário – “solidário mesmo”, todas as receitas, “se as houver”, revertem para o centro de dia – que caiu nas bocas do Mundo. Do Mundo sim, até a BBC, no Reino Unido, lhe deu espaço mediático. A comparação já foi feita, mas encaixa que nem uma luva: numa luta Golias vs David, David venceu.

Era uma quinta-feira, 29 de junho, quando caiu um e-mail dos advogados da organização do Rock in Rio Lisboa (esse mesmo, o gigante que nasceu no Brasil e que acontece no Parque da Bela Vista em Lisboa), a dizer do conhecimento que teve do sucesso do festival de Briteiros e a alegar uso indevido da marca e concorrência desleal. O comunicado que se seguiu da parte do pequenino Rock in Rio Febras, a reagir ao insólito com sentido de humor, com fair-play, a assegurar ter consultado a sua “vasta equipa de qualificados especialistas” e a aceder à mudança de nome para evitar confusões do público, como se isso fosse possível – para já, e enquanto não se decide o definitivo por votação do público, é Festival de Rock Que Acontece Perto do Rio Febras -, foi a boleia perfeita para a explosão mediática. Para a fama, para o gigantesco apoio de um país inteiro. Mas comecemos esta história pelo princípio.

Estamos na Casa do Povo de Briteiros, que foi fundada em 1944 num minúsculo edifício que chegou a ser posto médico da aldeia. E que foi crescendo e crescendo. Agora, há lá um salão, o Multiusos de Briteiros como dizem as gentes, quase capaz de competir com o Multiusos de Guimarães, e onde acontecem eventos recreativos e culturais. E a IPSS, com uma creche até aos três anos frequentada por 40 crianças, uma cozinha que serve todas as valências e que também funciona como cantina social (25 refeições gratuitas para famílias carenciadas diariamente, já foram 85) e um centro de dia com 20 utentes inaugurado em dezembro de 2021, que tem um orçamento de 400 mil euros, que está a precisar de uma carrinha, e que é a razão de ser de tudo isto. “O festival Rock in Rio Febras foi criado para ajudar a financiar o Centro de Dia”, explica Vasco, jovem advogado que está à frente da Casa do Povo, como todos os 20 elementos dos órgãos sociais aliás, de forma voluntária. Tudo gente ali nascida e criada.

Os utentes do centro de dia da Casa do Povo de Briteiros

Numas férias, pôs-se a magicar, chegou cheio de ideias, a maior de todas: criar um festival de rock para a freguesia, com bandas locais, gratuito pois claro, para angariar verbas com os comes e bebes. Propôs-se o projeto ao programa ExcentriCidade da Câmara de Guimarães, que tem o objetivo de levar cultura a vários pontos do concelho, e o Município respondeu sim senhor. Conseguiram aí dois mil euros de financiamento (sim, foi mesmo esse o orçamento) e eis que se fez acontecer a primeira edição, no ano passado.

O nome estava longe de querer concorrer com uma marca global, não é mais do que uma brincadeira inevitável: é um festival de rock que acontece junto ao rio Febras, o Rock in Rio Febras. Mas já na altura de o decidirem, lembra Sónia Carvalho, diretora técnica da instituição, houve quem dissesse: “Se calhar aquela malta do Rock in Rio ainda nos vai chatear”. A meta era receber umas 300 pessoas, 400 a apontar para cima, mas aquela primeira edição parecia prenúncio de um sucesso inesperado, passaram por lá 1500 pessoas. A receita que angariaram têm pudor de divulgar – a julgar pelas gargalhadas, não é por ter sido astronómica, bem pelo contrário.

Uma freguesia inteira a ajudar

Para quem está na Casa do Povo, basta atravessar a rua para dar de caras com um parque verde, duas margens estreitas ao longo do rio Febras, pontes de madeira a uni-las, árvores e arbustos que já andam a ser podadas e que se enchem de luzes coloridas na noite do festival. O lado mais bonito do Rock in Rio Febras talvez seja mesmo a veia comunitária de uma freguesia inteira unida para o fazer acontecer. E que é típico em todos os eventos da aldeia. Já o é no “Citânia Viva”, recriação histórica da Idade do Ferro, também organizada pela Casa do Povo, que tem lugar na Citânia de Briteiros, quatro muralhas, 24 hectares, que foi habitada há cerca de dois mil anos. Ou no Passeio dos Moinhos, há dezenas deles pelo Febras.

A primeira edição do Rock in Rio Febras aconteceu em 2022, toda feita à conta de trabalho voluntário, e recebeu 1500 pessoas

Há quem ceda terrenos para o recinto do festival e para estacionamentos, há eletricistas que não levam dinheiro, vizinhos que dão eletricidade para o pequeno palco. E tudo isto já acontecia antes do mediatismo. “Precisam de luz? Eu tenho um cabo. Precisam de água? Eu tenho um poço. Quando perguntamos quanto querem ainda nos respondem ‘era o que faltava’”, relata Vasco.

Isabel Esteves, a vizinha que já em 2022 lhes cedeu a luz, com um cabo comprido que ia desde a sua casa até ao palco, só espera “que este ano a luz aguente”. “E tenho um terreno, que também cedo. No ano passado, fui embora às cinco da manhã, já passava na verdade”, diz ela, para logo acrescentar: “Toda a gente está contente com esta fama”. Isabel ainda aparece de quando em vez com uns bolos para mimar quem se está a esfalfar para organizar tudo. José Manuel Silva, ou melhor, Zé Manel, o homem da logística como lhe chamam, que é recatado, ouve Isabel e segue-lhe a conversa. Faz o que for preciso. Tem uma empresa de terraplanagens, ajuda com a maquinaria, com os seus quatro funcionários, põe tudo ao dispor. Nunca se cobra do trabalho. “Se não gostarmos do que é nosso quem é que vai gostar?”, pergunta ele.

Isabel Esteves, que cede a luz para o palco, Sónia Carvalho, diretora técnica da instituição, e Diogo Costa, presidente da Junta de Freguesia

E depois, no dia, ainda há gente de volta dos fogões, usam a cozinha da Casa do Povo. Tudo voluntário. Carlos Araújo é o chef, foi cozinheiro na Suíça há uns anos, é ele quem orienta as tropas. Este ano vão ser precisas pelo menos umas 15 pessoas para cozinhar o caldo verde, o pão com chouriço, as bifanas, e as febras, muitas febras, isso não vai faltar à venda. Ao todo, vão precisar de uns 70 a 80 voluntários, não é um problema. Diogo Costa, o presidente da Junta, que tem 25 anos, foi eleito autarca com 23, está farto de receber contactos de quem quer ter ali rulotes de pizas, de pipocas. “Não aceitamos, porque é à alimentação e às bebidas que a Casa do Povo vai buscar as receitas.” E atesta o espírito de entreajuda que se vive, “sempre houve, os jovens são muito ativos aqui, envolvem-se muito”.

A aldeia minhota não tem um único restaurante, mas tem cafés e cresce em torno do rio Febras. Tem farmácia, igreja, uma EB2,3, Unidade de Saúde Familiar, florista, dentista, um Museu da Cultura Castreja. Pertence a uma União de Freguesias, de Briteiros S. Salvador e Briteiros Santa Leocádia, são 1700 os habitantes no total. E daqui a dias vai encher-se de rock, e de gente. O pequeno palco, que assenta na margem esquerda do rio, é cedido pela Câmara, a decoração é à conta da organização. “No ano passado, andei a cortar as letras a esferovite”, conta Sónia Carvalho.

Bandas locais, o espírito a resistir às massas

No princípio de tudo, a filosofia era clara: só bandas e djs de Guimarães. Que aliás quiseram manter neste ano, apesar do sucesso repentino e mesmo depois de terem sido contactados por bandas nacionais de renome, solidárias com o festival que vai acontecer a 22 de julho, dispostas a lá ir com cachês reduzidos. Não cederam à tentação das massas, rejeitaram esse caminho, não perderam o norte. O cartaz (não, não tem Ivete Sangalo e já estava fechado antes de tudo isto) é obra de Pedro Conde, que é diretor de produção numa empresa de vidro, mas que também é músico, está ligado a eventos e festivais, e que dá uma mão aos amigos desde que o Rock in Rio Febras ainda era só uma ideia. Até porque, verdade seja dita, nenhum deles sabia organizar um festival.

A organização está a adaptar-se em tempo recorde para tentar receber, pelo menos, quatro mil pessoas no dia 22 de julho

“São quatro bandas, quatro djs. Os cabeças de cartaz são os Smartini, uma banda com 30 anos, que já tocou em Paredes de Coura e em Vilar de Mouros”, refere. Também há Ledher Blue, GASPEA, Segundo Minuto. “Além disso, para abrir o festival, temos um espetáculo que não foi pensado para o que se está a passar, mas parece, porque é um concerto sobre liberdade, uma banda feita de pessoas que viveram o 25 de Abril, o meu pai toca lá por acaso”, comenta Conde. São os Quarta às Nove. E djs, “tudo pessoal de Guimarães, as Crocky Girls que já vieram no ano passado, o Juanito Caminante, o Gordilho, o Berto”. “E eu, logo às cinco da tarde, porque ninguém queria abrir o festival, tive de me sacrificar”, diz ele a rir.

Excursões, seguranças, merchandising

O comunicado que os catapultou para a fama (e elogiado online por figuras proeminentes) foi escrito por Vasco com bitaites de todos. Mais por Vasco, embora não queira os louros. “Primeiro, o pânico. Depois, decidimos responder com a consciência tranquila. Obviamente queríamos chegar o mais longe possível, mas alguma vez pensámos que isto ia chegar à BBC? Ou que ia ser difundido pela Lusa na América do Sul? Temos gente até da Escócia a contactar-nos. Uma pessoa que é daqui e que está em Cabo Verde ligou a dizer que também lá se está a falar disto.”

O Rock in Rio Lisboa entretanto reagiu e desejou “o melhor aos amigos do festival que acontece perto do Rio Febras”. A verdade é que chegou a estar em terceiro lugar nas trends do Twitter. E se escrevermos hoje “rock” no Google a primeira sugestão que aparece é “Rock in Rio Febras”. O fenómeno agigantou-se de tal forma que quando começaram a receber centenas de e-mails, a ser contactados ora por excursões de Lisboa, ora por gente na Suíça que já tinha marcado férias para vir, tornou-se assustador. Houve até uma empresa de Coimbra a oferecer-se para lhes criar um site, já está online. “Corríamos o risco de ter aí umas vinte mil pessoas e já nem é a questão do espaço, não temos infraestrutura para isso.”

A diretora de Marketing, como dizem a brincar, Diana Marques, irmã de Vasco que trabalha em Cambridge em investigação científica, chegou no último fim de semana. Gere as redes sociais, o e-mail, a comunicação, pro bono como tudo aqui, foi ela quem foi atropelada por uma chuva de contactos. Está agarrada ao computador. “Recebemos mensagens muito emotivas. E tivemos referências nas redes de personalidades públicas como Poiares Maduro, Rui Reininho, Joana Lobo Antunes. Claro que há muito orgulho, nasci aqui, e criar aqui um festival de rock era um sonho.”

Diana Marques, que gere as redes sociais, Vasco Marques, presidente da direção da IPSS e mentor do festival, José Manuel, que ajuda na logística, e Pedro Conde, que trata do cartaz e apoia na organização

A logística adensou-se. Reuniões de emergência, com a Proteção Civil, GNR, bombeiros, PSP, exigências nunca antes imaginadas. Ainda está tudo a ser afinado, em contrarrelógio. A Câmara de Guimarães aumentou o financiamento deste ano para o dobro – quatro mil euros, que ainda é parco para a dimensão que ganhou. A organização podia ter embarcado na loucura, mas quis ser consciente. Vai haver limite de lotação (em princípio vão caber quatro mil pessoas, estendeu-se o recinto com o apoio da vizinhança) e um sistema de reserva de bilhetes online (continuam gratuitos) que no local se troca por uma pulseira, financiadas por uma marca internacional que os contactou. Seguranças, uns dez pontos de venda de comida, pelo menos 21 casas de banho (em 2022 tinham três, veja-se), estacionamentos, seis num raio de um quilómetro, um deles numa escola pública, mais dois na vila vizinha das Taipas, estão a negociar um serviço de autocarros que há de chegar também à cidade de Guimarães. E a desenhar merchandising, t-shirts, sweats, tudo.

Para quem não conseguir ir, querem fazer transmissão online, estão a pensar chamar-lhe Live Aid (sim, é uma piada) e ainda estão a ceder um contacto MbWay para as muitas pessoas que querem contribuir mesmo não indo ao festival. Uma esquizofrenia absoluta. “Acho que isto se vai tornar num caso de estudo. Não tenho conhecimento de um festival que tenha ganho uma projeção tão imediata. As pessoas nem querem saber se há cartaz, só querem vir”, comenta Pedro Conde.

No parque junto ao rio Febras, onde há uma piscina fluvial, já decorrem trabalhos de limpeza e de poda das árvores, contratados pela Junta de Freguesia

O futuro nem eles sabem. Mudar a localização para um espaço maior? Ter bandas nacionais no cartaz? Permitir a exploração de barraquinhas? Talvez. Está lançada a semente, só não querem nunca perder a raiz solidária. No meio de um fenómeno sem paralelo, há uma certeza, é que o Rock in Rio Febras – é óbvio, o festival nunca vai deixar de o ser, mesmo ganhando outro nome – começa às 16 horas de sábado e só acaba quando a GNR chegar. E não, garantem, não é uma dica para quem tem esperança de lá ver atuar Rui Reininho e amigos. Resta esperar para ver.