Roberto Martínez: o passado e o futuro do novo selecionador de futebol

O homem para fazer esquecer Fernando Santos manteve o casamento graças a duas televisões, prefere pensar à noite, acredita no poder da escuta e no diálogo. Está habituado a calar a desconfiança por ser estrangeiro.

É quase certo que nos últimos e nos próximos dias Roberto Martínez passou e passará horas a estudar e a analisar o futebol português, a decorar os nomes mais sonantes e os feitos mais significativos. Também é provável que tenha ouvido muito e falado pouco, seguindo, assim, uma espécie de ritual, que, na verdade, é só parte de um plano que tem para ser bem-sucedido. Fez isso quando chegou ao Everton, repetiu-o quando assumiu o cargo de selecionador da Bélgica, em 2016. “Tens de perceber e absorver a cultura do lugar em que trabalhas. É essencial abrires-te e adaptares-te. E, acima de tudo, escutar”, justificou-se numa entrevista ao “El País”. Por isso, não foi estranho nem surpreendente que logo na primeira intervenção pública como sucessor de Fernando Santos tenha destacado o facto de Portugal ter “54 jogadores nas melhores ligas com menos de 28 anos”. Chama-se trabalho de casa.

“Devemos trabalhar num clube como se ficássemos lá 100 anos. Detesto chegar a um sítio onde é preciso começar tudo de raiz”, garante Roberto Martínez
(Foto: Federação Portuguesa de Futebol)

Nos dias que correm, é lugar-comum dizer-se que um treinador é muito detalhista, que vai ao pormenor e que não deixa nada ao acaso. Parece que todos são assim e Roberto Martínez não foge à regra. Não é isso, portanto, que o distingue, embora essa faceta perfecionista tenha sido uma parte importante da sua carreira e de como ela evoluiu, sempre em crescendo. Desde o terceiro escalão do futebol inglês até à elite do futebol internacional. Estreou-se no Swansea, com 33 anos, recusou mudar-se para o Celtic, fez história no Wigan e com 39 anos já era um dos treinadores mais cobiçados do futebol inglês. Esteve perto do Liverpool, mas acabou do outro lado de Merseyside, no Everton. “Dava para perceber que o futuro dele ia passar por ser treinador”, conta Jorge Leitão, companheiro de Roberto Martínez enquanto jogador nos ingleses do Walsall em 2002/03. “Ele gostava muito do jogo e da parte tática do jogo, apontava exercícios de que gostava. Eu vinha e ia com ele para os treinos e falávamos muito sobre questões de treino”, acrescenta o ex-avançado português, recordando que foi nessa que a transição para o banco pareceu inevitável. “Quando não jogava, o próprio treinador (Colin Lee) pedia-lhe para ele analisar o jogo da bancada e no intervalo descia ao balneário para passar informação à equipa técnica e aos jogadores.”

Habituado à desconfiança

Vinte anos depois dessa boa relação que um assalto na baixa do Porto deixou em suspenso até à data – “roubaram-me o telemóvel inglês e perdi o contacto dele, não falo com ele desde aí”, lamenta Jorge Leitão -, Roberto Martínez Montoliú, nascido em Lérida, Espanha, há 49 anos, será o terceiro treinador estrangeiro à frente da seleção portuguesa, depois dos brasileiros Otto Glória e Luiz Felipe Scolari, curiosamente os únicos que levaram Portugal às meias-finais de Campeonatos do Mundo, em 1966 e 2006, e o primeiro a não ter o português como língua-mãe. A “Notícias Magazine” sabe que o processo que culminou na contratação do novo selecionador “foi rápido”, com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) a antecipar-se a outros pretendentes, nomeadamente o Everton, que pensava num regresso de Martínez para suceder ao muito contestado Frank Lampard. Ora, no país que se gaba e se põe em bicos de pés por ter “os melhores treinadores do Mundo”, a opção da FPF por um estrangeiro não foi acatada de ânimo leve. A Associação Nacional de Treinadores de Futebol, através do presidente, José Pereira, disse “respeitar” a escolha, realçando, ainda assim, “preferir treinadores portugueses na seleção”. Muitos outros fizeram eco deste discurso, enquanto alguns foram muito mais drásticos e condenaram a opção de Fernando Gomes, Humberto Coelho, João Vieira Pinto e José Couceiro.

Roberto Martínez chegou à Premier League com 39 anos e foi o primeiro treinador nascido fora do Reino Unido a comandar o Everton
(Foto: Jon Candy)

Nada de novo para Roberto Martínez, que já passou pela mesma situação, pelas mesmas críticas e pela mesma desconfiança. Ou não tivesse sido ele apenas o segundo treinador não britânico na história do Swansea, o primeiro não britânico a comandar o Wigan e o primeiro treinador nascido fora do Reino Unido a orientar o Everton. Em Inglaterra, onde chegou em 1995, com apenas 22 anos, foi muitas vezes o único europeu com infância deste lado do Canal da Mancha em vários plantéis. Esse passado e essas experiências, apurou a NM, foram valorizados pela FPF durante as conversas mantidas com Roberto Martínez, entendendo os dirigentes que, deste modo, o novo selecionador está mais do que habituado e, por isso mesmo, mais do que preparado para lidar com um contexto pouco simpático nesse sentido. A escolha de um treinador estrangeiro muitas vezes inspira cuidados pela questão linguística, mas esse aspeto quase não foi assunto no seio da FPF, convencida de que o inglês impecável, aperfeiçoado durante mais de 20 anos no Reino Unido, o espanhol e a vontade do novo selecionador em aprender português rapidamente são mais do que suficientes para minimizar essa barreira, principalmente com os jogadores.

A batata quente de Fernando Santos

Serão eles, os jogadores, o ponto de partida da era Roberto Martínez na seleção portuguesa, prevista para não terminar antes de 2026. O treinador espanhol passou o dia da apresentação oficial na Cidade do Futebol, onde pernoitou de segunda para terça-feira, e o seguinte dividiu-o entre os aposentos oficiais da FPF e outras instalações, antes de seguir viagem para a Arábia Saudita, onde trocou as primeiras palavras com Cristiano Ronaldo e alguns futebolistas lusos que estão em Riade a disputar a Supertaça espanhola. Reuniu informação, estudou e analisou os últimos jogos da equipa das quinas e preparou-se para as conversas que quer ter com todos os internacionais que participaram no Mundial 2022. A composição da equipa técnica é outra prioridade a resolver rapidamente. A mudança de ciclo não implica uma alteração de rumo completa e rápida, mas Martínez tem noção de que não estaria onde está se o rendimento da seleção com o antecessor estivesse a correr bem. Fernando Santos deixa um legado de respeito e difícil de bater, mas também pontas soltas e desafios que o sucessor terá que resolver. Pela positiva, dois troféus; pela negativa, uma qualidade de jogo sofrível, dificuldades em chegar longe nas grandes competições (só no Euro 2016, que venceu, levou Portugal além dos quartos de final que disputou em dois Mundiais e no outro Europeu) e problemas com a maior estrela.

Colocar os pontos nos is com Cristiano Ronaldo é uma das tarefas mais urgentes de Roberto Martínez, estando previstas mais conversas entre os dois, depois do primeiro encontro ocorrido em Riade. O novo selecionador conta com CR7, mas há que esclarecer em que circunstâncias e se o capitão está disponível para aceitar um eventual papel secundário, se houver essa necessidade, algo que a amostra do Catar deixou em dúvida. Prestes a fazer 38 anos e agora longe da competitividade do futebol europeu e de topo, Ronaldo quer continuar a ser útil à seleção, faltando saber como e em que contornos. Em 2018, Martínez teve um problema parecido, cuja resolução acabou com o afastamento definitivo de Radja Nainggolan, um dos mais emblemáticos jogadores da Bélgica, mas, claro, Cristiano tem um peso incomparável. Já com Eden Hazard, o craque geracional belga que nos últimos anos tem passado despercebido no Real Madrid e longe do fulgor de outros tempos, manteve-se irredutível na opção de não o deixar cair e continuar a convocá-lo, apesar da evidente má forma e de recorrentes más exibições, algo que, de acordo com o portal “The Athletic”, lhe custou até algumas críticas por parte de outros jogadores. Outro jogador que poderá merecer atenção especial é alguém que não esteve no Mundial: Rafa renunciou à seleção pouco antes do anúncio da convocatória para o Catar, mas a saída de Fernando Santos, com quem o relacionamento esteve longe de ser o melhor, pode proporcionar a oportunidade de um regresso.

(Foto: Carlos Costa/AFP)

Noutro sentido, é ainda expectável que Roberto Martínez promova algumas mudanças no funcionamento da seleção portuguesa e até na estrutura de todo o futebol da FPF, abarcando os escalões mais baixos, apesar desta estar bem oleada, devido às melhorias que têm sido feitas de há uns anos a esta parte. “Na Bélgica, conciliava o trabalho de selecionador com o de diretor técnico da federação e a verdade é que fez muito pelo futebol belga. Trouxe profissionalismo, impôs um estilo de jogo comum a todas as equipas, tornou os estágios menos restritivos”, frisa um jornalista belga que preferiu manter o anonimato. Dentro do campo, também são esperadas mudanças, com previsões de um Portugal “menos aborrecido do que era com Fernando Santos”.

Admirador de Johan Cruyff, Roberto Martínez destacou-se cedo em Inglaterra por apostar num estilo de jogo contracultural, de posse de bola, ataque continuado e passes curtos, e conseguir impô-lo em equipas de menor expressão. “Ele dizia sempre que tínhamos que ter mais bola e que jogávamos demasiado rápido”, nota Jorge Leitão. Para quem se queixava da (pouca) qualidade de jogo da seleção portuguesa, isso são boas notícias, até porque é ele, “Bob” para os convivas mais próximos, quem diz que “é preciso adaptar o sistema e o estilo aos jogadores disponíveis” e o Portugal de hoje está repleto de jogadores com qualidade técnica e outras características essenciais para praticar esse tipo de futebol. No entanto, também há reparos a fazer por quem o acompanhou de muito perto nos últimos seis anos. “Percebo que digam que é conservador. Jogou sempre da mesma maneira, nunca experimentou outro sistema de jogo, nem nos jogos particulares, que não fosse jogar com três centrais. Quando saiu, já muitos defendiam que não era o homem certo para a nossa seleção”, sustenta o mesmo jornalista belga.

O trabalho para lá do relvado

O Portugal pós-Fernando Santos não é, assim, muito claro e será preciso esperar até 23 de março, dia da estreia, para se começar a tirar as teimas, embora o adversário (Liechtenstein) esteja longe de ser o indicado para tirar grandes conclusões. Até lá, e ao mesmo tempo que tratará da logística que acarreta uma mudança para um país diferente e de encontrar a casa onde viverá com a família (a esposa escocesa, Beth Thompson, e as herdeiras, Luella Martínez e Safiana Martínez), que, tal como sucedeu na experiência belga, também o acompanhará agora, a maioria do trabalho de Roberto Martínez será conhecer os cantos à casa, estabelecer contactos com pessoas das mais diversas áreas, visitar clubes e ver jogos, a começar, provavelmente, pelo dérbi de hoje, entre Benfica-Sporting, já que a sua presença no Estádio da Luz era uma hipótese em aberto. Se mantiver o hábito que alimentou na Bélgica, é uma certeza que ocupará muito do tempo disponível a ver jogos ao vivo. “Ia muito aos estádios e ver jogos, sim”, confirma o jornalista belga.

(Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)

Um encontro com Fernando Santos “é possível” e não está posto de parte, mas praticamente certas são reuniões, encontros e conversas mais ou menos formais com treinadores de equipas portuguesas, nomeadamente Benfica, Braga, F. C. Porto e Sporting, os clubes que mais potenciais convocados colocam à disposição do selecionador. “Ele vai falar com muita gente, isso é certo. Até porque é alguém muito aberto ao diálogo e que quer conhecer bem o meio em que está”, explicam à NM. Essa abertura e a disponibilidade total para falar, ouvir, perceber, aprender e adaptar-se aos contextos em que está inserido é um dos traços que mais se destacam na sua personalidade. E não podia ser de outra forma, diga-se, se pensarmos que Roberto Martínez saiu de casa dos pais aos 18 anos, mudou de país aos 22, viveu na Bélgica, em Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. “Cheguei sem saber inglês e fiquei duas décadas”, resumiu ao jornal “Marca”. Tudo em nome de um sonho, de uma paixão ilimitada, “de uma forma de viver”.

O pensador notívago

A obsessão com o futebol veio-lhe do pai e só cresceu ao longo do tempo, ao ponto de o obrigar a tomar medidas inovadoras para o conciliar com a vida pessoal e familiar. Ao “Daily Mail” contou como teve que organizar a sala de forma a que ele e a esposa pudessem estar no mesmo espaço, a ver o que queriam, graças a um sofá específico e a duas televisões colocadas em paredes opostas, cada uma a dar o que cada um deles preferia ver. “O importante era estarmos juntos, no mesmo espaço. Isso salvou o meu casamento”, disse Roberto Martínez, sem aparente ponta de remorso. O futebol esteve na génese de outras decisões, mais importantes e não tão drásticas, que tomou ao longo da vida, como a licenciatura em Fisioterapia, tirada enquanto ainda jogava em Espanha e que lhe serviu para “perceber o corpo humano e como era possível prevenir lesões e recuperar mais rapidamente de outras”, ou o curso em Gestão e Marketing, que frequentou já em Inglaterra para “entender o lado do negócio relacionado com o futebol” e “melhorar o inglês”.

epa10342000 Belgium’s O sucessor de Fernando Santos levou a seleção belga às meias-finais do Mundial 2018, após o qual pensou e lançou uma iniciativa para os internacionais começarem a estudar para completarem o curso de treinadores
(Foto: Rungroj Yongrit/EPA)

Nutrição, educação física, psicologia e o sono são outras áreas que Roberto Martínez tem vindo a estudar, não só para ter mais informação capaz de tirar o máximo proveito dos jogadores, que, defende, “hoje em dia são atletas que jogam futebol”, mas também para lhe permitir estar nas condições ideais para fazer o seu trabalho. Normalmente não dorme menos de sete horas por noite (no Everton, multava os jogadores se conseguisse provar que não tinham tido oito horas de sono) e em 2014 ficou famosa uma conversa com um jornalista na qual defendia a importância de ingerir carboidratos à noite. A justificação? “Eles são necessários se queremos pensar à noite e eu prefiro pensar à noite. Quando temos que estar mentalmente ativos, precisamos de carboidratos”. Durante o dia, o combustível é o café, disponível e indispensável em todos os gabinetes (ou nas imediações) onde trabalhou ao longo da carreira. Já se sabe, portanto, o que não faltará na Cidade do Futebol.

Que legado em perspetiva?

Nunca se saberá o peso – se algum – que tudo isto teve na evolução da carreira de Roberto Martínez, a verdade, contudo, é que ela dificilmente podia ser mais sustentada, consistente e equilibrada. Subiu a pulso, nunca esteve menos de duas temporadas seguidas no mesmo sítio e só no Everton é que a saída veio em forma de despedimento. Os bons resultados ajudaram, claro, embora eles nunca tenham sido o único aspeto a motivar o novo selecionador português, resultadista sim, como todos, mas só até certo ponto. “Acredito que como treinadores devemos estar e trabalhar num clube como se ficássemos lá durante 100 anos. Têm que se criar bases para quem se seguir a nós. Detesto chegar a um sítio onde é preciso começar tudo de raiz, isso não devia acontecer”, confessou, numa entrevista ao “Daily Mail”.

Por isso é que em simultâneo com os feitos no terreno de jogo – levar a Bélgica ao topo do ranking mundial e às meias-finais do Mundial – também idealizou iniciativas que se tornaram realidade, pensadas para que o futuro do futebol belga seja tão, ou mais, risonho do que o dos últimos anos. Uma das mais emblemáticas foi levada a cabo em 2018 e convenceu vários jogadores internacionais, entre eles Thibaut Courtois, guarda-redes do Real Madrid, Kevin De Bruyne, médio do Manchester City, Vertonghen e Axel Witsel, ex-jogadores do Benfica, a estudarem e a tirarem o curso de treinadores, mesmo estando na melhor fase da carreira de futebolistas. A iniciativa abrangeu, inclusivamente, a seleção feminina, composta atualmente por jogadoras já habilitadas para exercerem funções de treinadoras.

Em Portugal, o que lhe pedem é “chegar às meias-finais em qualquer prova”, o que, saliente-se, tem sido uma raridade, mas, a não ser que tenha mudado muito, é expectável que o novo selecionador não queira ficar por aí. Roberto Martínez, o homem que apenas no dia do casamento se permitiu quebrar a promessa feita ao pai de nunca tocar em bebidas alcoólicas, ainda hoje é lembrado no Swansea e no Wigan e, segundo o próprio, é dono de “uma história que dá para ser filmada em Hollywood”. Quem sabe se o capítulo mais feliz ainda está para chegar. Com as quinas ao peito.