A música, a carreira, o processo criativo, o reconhecimento, o sucesso. A rotina, a variedade, a imprevisibilidade. As redes sociais, as viagens, o fascínio pela Jamaica (e o patoá jamaicano), as longas conversas com os amigos. O que o chateia e o que lhe traz felicidade. Os prémios que nunca ganhou. O próximo concerto. Richie Campbell, músico, cantor, fala de si e do que o rodeia a dias de subir ao palco da Altice Arena, em Lisboa. Será um espetáculo surpreendente, garante.
Em miúdo, queria ser veterinário, cresceu e escolheu estudar Antropologia, o curso ficou a meio, não acabou. A música, o reggae que a mãe ouvia em casa, as bandas da escola, o fascínio pela Jamaica. O nome artístico. Richie porque é assim que o tratam em casa, abreviando Ricardo. Campbell porque era um artista que ouvia, e gostava, e que adotou como apelido em vez de Costa.
Richie Campbell, cantor, músico, tem um novo disco “Heartbreak & other stories”, 18 faixas, algumas colaborações. Tem uma carreira e uma certeza. “Tenho a sorte de ter conseguido fazer da minha vida o que gostava de fazer, não sinto grande necessidade de fazer muito mais do que o meu trabalho e, para já, estou confortável com isso e acho que vou continuar assim durante um tempo”, confessa. O plano A resultou, a música, não precisou do B, o curso. Nota-se que está feliz.
Tem concerto dia 27, próxima quinta-feira, na Altice Arena, em Lisboa. O espetáculo começa às 20 horas. Como vai ser? “Tudo o que as pessoas possam imaginar, vai acontecer”, responde. Um momento irrepetível, para ser vivido pela primeira vez, uma única vez. “O que posso garantir é que este concerto é para mim muito mais especial do que todos os outros, e o espetáculo que vamos montar tem de estar ao nível desse entusiasmo que temos e que sei que as pessoas também têm.”
A ocasião é especial, apresentação do novo álbum com um título que remete para um coração partido. As músicas navegam pelo amor ou também saem para as margens para ver o que há por ali? O amor é matéria-prima recorrente no seu trabalho, muitas das canções que marcaram a sua vida, são músicas de amor, recorda, por uma ou por outra razão. Neste álbum, mais do que noutros, há mais canções de amor. É natural. É introspetivo na música, escreve muito sozinho, as canções tanto podem nascer do amor como de uma análise à sua vida ou à sociedade ao redor. “Gosto de tocar noutros assuntos, fazer reflexões sobre o ponto de vida em que me encontro em relação a lidar com tudo – com o sucesso, com o insucesso, com ansiedade, com fama, com amizades, fim de amizades, tudo e mais alguma coisa – e fazer músicas de crítica social, de análise da sociedade à volta.”
É um artista versátil e já disse ao mundo, para quem o quisesse ouvir, que não é músico de um único género, os seus trabalhos têm reggae, R&B, dancehall, R&B moderno, já saiu da gaveta onde tantos, e tantas vezes, o quiseram meter, do músico do reggae. Independentemente de tudo isso, criar é o que lhe dá maior gozo. O processo não obedece a uma lógica sempre igual, primeiro as letras e depois as músicas, ou vice-versa, ou a tempos previamente definidos ou ainda ao sabor do dia, das horas, das ocasiões. “Não gosto de premeditar o que vou escrever antes de estar no estúdio e de começarmos a trabalhar em música. Trabalho muito com instrumentais que já estão feitos e depois entro a meio do processo, digamos assim. Gosto de esperar para ver qual a emoção que o instrumental pede”, revela.
Não é assim tão linear, nem assim tão simples. “É um processo complicado porque, por um lado, para o meu bem-estar mental já percebi que sou o tipo de pessoa que funciona bem com uma rotina e então gosto de ter, o máximo possível, uma rotina saudável, organizada e previsível. Por outro lado, a pior coisa para o processo criativo é uma rotina previsível”, constata. Portanto, é necessário gerir, há alturas em que foge da rotina, há momentos em que a mantém para trabalhar todos os dias sem aquela pressão de ter de saltar qualquer coisa cá para fora. Respeito pela criatividade que não se escolhe quando aparece. “No processo criativo, é muito importante experimentar coisas novas e não repetir a mesma fórmula, não fazer as músicas todas no mesmo estúdio, não começar todas as músicas pela letra ou não começar todas pela progressão de acordes.” A variedade é o que permite, em seu entender, criar e continuar a produzir arte interessante.
Criar a partir do nada, do zero, é o que realmente o fascina. E é aí que se vê no futuro. “É a parte mais interessante de ter a sorte de ser artista, seja em música, seja em outra coisa qualquer. A capacidade que temos de criar alguma coisa a partir do nada e transmitir emoções, especificamente na música de uma forma que poucas outras coisas conseguem, é um privilégio.” Criar, criar sempre. “É essa a parte que mais gosto e a parte que me deixa mais agradecido de me ter calhado esta vida, uma em milhões das que me podiam ter calhado. É importante, como artista, relembrar-me do privilégio que é criar algo que vem do nada e que faz parte da vida das pessoas”, reforça.
Um álbum seu não é uma história única, uma narrativa com princípio, meio e fim, não há um fio condutor entre canções. A prioridade está em criar o que é diferente e surpreender quem o ouve. “O meu foco está muito mais aí e isso não me permite que consiga montar um álbum do princípio ao fim porque eu próprio vou sendo surpreendido durante o processo, de repente esta música levou o álbum para um sítio completamente diferente”, conta. E quando olha para trás, para os álbuns feitos, percebe que tudo faz sentido. Cada álbum é representativo da fase da vida em que se encontrava em determinada altura.
As viagens acrescentam camadas ao seu trabalho, lugares que obrigam a viver tudo mais intensamente porque tudo é novo. Jamaica é um destino recorrente, o país onde melhor se sente, vai lá todos os anos, um amor que perdura. “Tudo o que se experiencia é combustível para o que se vai escrever.” E as colaborações nos seus discos acontecem de várias formas, de uma conversa, de um contacto à distância, feedback positivo, a mesma energia do lado de lá. Uma coisa é certa: só faz parcerias com quem admira muito.
A urgência e vontade de ajudar
Richie Campbell procura estabilidade e conclusões, saber como tudo vai funcionar daqui para a frente. Agora mais tranquilamente do que no passado. Só que o caminho não é sempre a direito – ele sabe. “Sou constantemente surpreendido com curvas e novas direções, tanto na minha vida pessoal, como na minha vida artística, e estou confortável nessa constante mutação (talvez há uns anos não estivesse).” A maturidade é isso também, a confiança de enfrentar tudo o que vem e há de vir. “Hoje consigo viver essa constante alteração e mudança de perspetivas de uma forma natural, sem ansiedade com o futuro, e estou muito confortável.” Confortável na imprevisibilidade. A fazer o que gosta, o que lhe dá prazer.
Trinta e seis anos de vida, tournées pela Europa, Jamaica e Barbados, milhões de visualizações no YouTube, discos de platina, referido como o primeiro fenómeno musical da Internet em Portugal a ter sucesso nacional e internacional, líder de uma nova geração de artistas nacionais. Os pés continuam bem assentes na terra. “Não há um livro que explique como lidar com uma mudança de vida e um exagero de atenção depois de ter sucesso”, reconhece. “Sinto que graças aos meus pais e à educação que tive, sempre tive presente o que é que interessa e, ao longo da minha carreira, descobri que o aspeto da fama é algo que não adoro, mas que não se pode ignorar.” Pensou muito no assunto, como enfrentar as coisas. Não aceita convites que beneficiam a fama e não o seu trabalho. “Quando o foco não é a música, rejeito sempre. Isto não é sobre mim, é sobre a música que eu gosto de fazer, é sobre a arte que gosto de fazer”, explica.
As redes sociais existem, não se podem ignorar, são necessárias. Confessa que passa tempo a mais a procrastinar, a ver coisas em várias redes, tenta ser disciplinado. “Tem coisas positivas e tem coisas negativas, é o que é, eu tenho de as usar porque é a minha forma de promoção.”
É uma vida intensa. Ou está a fazer música ou está a conversar sobre música, sobre o mercado, o que se pode fazer, novas ideias, novas músicas. Também joga FIFA, o prazer de ler é recente, os jantares com os amigos prolongam-se até às tantas, aprecia o debate de ideias noite dentro. Entretanto, descobriu um desporto. No início da pandemia, começou a praticar Muay Thai, variante tailandesa de kickboxing, e nunca mais parou. “Mudou a minha vida. Sou tipo um cão de trabalho, tenho de estar constantemente a cansar-me senão a minha cabeça não funciona bem.”
Tem ainda a gestão da editora e agência Bridgetown, que criou em 2014, da qual é sócio, Plutónio, Dengaz, Luís Franco-Bastos, Pedro Teixeira da Mota estão no portefólio da Bridgetown.
Partilha o que sabe e o lhe fez falta quando começou, sem ninguém que o guiasse no caminho, a aprender com os erros, ele e o seu manager, Ben. “Ao fim de alguns anos, chegámos à conclusão de que tínhamos criado uma visão específica, nossa, um método de trabalho.” Ou seja, como gerir uma carreira num país como Portugal. “Sinto que nós sabemos navegar o mercado português da melhor maneira.” Foi o que aconteceu com Plutónio, artista feito, já com dois álbuns, e a ideia de que a sua carreira poderia chegar ao próximo nível. “Num espaço de três ou quatro anos foi o artista mais ouvido no país.” “Dá-me um prazer enorme ver um artista chegar ao lugar que merece, ver como a música consegue mudar a vida dele e da família. Acho que temos um dever de replicar isso com o máximo de pessoas.” Não esconde o formato, partilha a informação que sabe com qualquer pessoa, só que trabalhar a fundo com um artista obriga a uma escala mais pequena. Faz o que gostava que tivessem feito por si. “Há um conjunto de regras, há um conjunto de coisas simples que se podem seguir e que são úteis para ter uma carreira mais longa e mais sustentável.”
A música dá-lhe outras vidas, a intervenção social, ajudar a recuperar um parque infantil, ir a prisões falar de música. É um pouco de tudo. A educação que recebeu, os valores que respeita, o que lhe faz sentido, o que descobre com o tempo e com a carreira, as pessoas com quem se cruza na música e quem, provavelmente, nunca conheceria em outras áreas da vida, como aconteceu com Plutónio, que lhe deu uma perspetiva diferente do Mundo. Daí surgiu uma urgência e uma vontade de querer ajudar e tentar fazer a mudança. “A música obrigou-me a conhecer pessoas e faz-me olhar para todas as pessoas de uma forma única e especial e talvez seja daí que vem a minha vontade de ajudar.”
O elitismo e as histórias de vida
Quando olha à volta, tem orgulho da música portuguesa, seja de que género for, sobretudo quando recua ao passado, ao tempo em que começou. “Há uma evolução que não é mérito de ninguém, que não da Internet, há uma democratização da música. Hoje qualquer pessoa pode fazer uma música e colocá-la na Internet e, se o público se relacionar com a música, de repente essa pessoa tem uma carreira. Acho isso ótimo, é uma coisa que não acontecia quando comecei, aliás começou quando eu comecei, fui um desses artistas que beneficiaram da Internet. Ou seja, a partir do momento que temos Internet, a distância entre o público e o artista deixou de existir e já não existem gatekeeppers no meio a dizer o que é que pode passar e o que não pode passar – mesmo que exista nalgumas partes da nossa indústria.” A música chega a todo o lado. Antigamente lançavam-se menos trabalhos, havia menos concorrência, vivia-se mais tempo à sombra do estatuto alcançado. Agora, não é bem assim. “Hoje vejo artistas novos que passam todos os dias da semana em estúdios diferentes, coisa que, por mais estranho que pareça, não existia quando comecei.” E está contente com isso.
É um dos artistas mais bem-sucedidos da década de 2010, inconfundível no seu patoá jamaicano, milhões e milhões de visualizações, mais de 13 milhões no hit “Do you no wrong”, nomeado para “música do ano” dos Globos de Ouro em 2016. Nomeado para vários prémios, nunca ganhou nenhum. “Mesmo assim, continuo aqui, continuo aqui porque há pessoas que ouvem a música, que vão aos concertos, e isso é o mais importante.” “Os prémios são importantes porque se deve recompensar quem merece, mas no fundo, no fundo, desde que as pessoas recompensem a minha música, ouvindo e indo aos concertos, isso é o mais importante.” No entanto, não esconde o descontentamento com a forma como os prémios, em geral, funcionam em Portugal. “A arrogância das pessoas que têm capacidade de tomar decisões, de definir o que é boa música, o que é má música, o que é português e o que não é, o que deve ser recompensado, o que não deve ser recompensado.” Um sistema que não entende. “Se há muita gente que gosta de uma música, quem sou eu para dizer que essa música não é música, não é arte, e não merece, de certa forma, ser recompensada, e que a voz do público não deve ser ampliada e ouvida?”, questiona.
Não suporta o elitismo, irrita-o, chateia-o. Na música e em todas as áreas da vida. Mais especificamente o elitismo de pessoas que não acham que fazem parte da elite. Pessoas maioritariamente das grandes cidades, educação de nível superior, informados, pais cultos, que pensam que sabem como todas as pessoas são, que conhecem o Mundo, e têm aquela arrogância de tirar conclusões em relação a como os outros pensam. “Há muita gente que se acha do povo e que compreende todo o povo, compreende todo o tipo de gente e, na verdade, não compreende e tem uma arrogância de sei como é que vocês se deviam comportar, como é que isto devia ser, como o país devia ser gerido, como é que o mercado da música devia ser gerido, que músicas é que deviam ser recompensadas, o que é boa música, o que é má música.” Principalmente, acrescenta, “numa área como a arte que é inerentemente subjetiva”.
Os exemplos de vida, histórias de vida, trazem-lhe felicidade, alegram-no, amolecem-lhe o coração. “Pessoas que conheço que conseguem dar a volta e criar percursos de vida incríveis e inverter o destino do apelido com que nasceram ou o sítio onde nasceram.” Conhece várias e todas elas têm uma energia da qual gosta de se rodear. Que lhe faz bem. “Gosto de me rodear de pessoas que, contra tudo e contra todos, conseguiram e se esforçam, que não sentem pena delas próprias, acima de tudo.” Richie Campbell, Ricardo Costa de batismo, está de volta à estrada com mais um álbum.