Redes sociais pressionam jovens a desejar beleza perfeita

Até que ponto o scrool diário que fazemos nos ecrãs, a passar em revista as redes sociais, molda quem queremos ser ou parecer?

Imagens de perfeição nas redes sociais levam jovens a procurarem tratamentos para melhorarem rostos e corpos, numa preocupação constante que pode afetar a saúde mental. Fenómeno em Portugal ainda não tem a dimensão do Brasil, mas especialistas alertam para a importância de se reforçar a autoestima e de se procurar ajuda de profissionais habilitados para evitar procedimentos desnecessários e danos irreversíveis.

Joana Santos, 22 anos, navega com frequência pelo TikTok e Instagram, onde vê muita “perfeição”. “Sabemos que não é real, sabemos que [aquelas pessoas] têm plásticas ou intervenções. Mas são coisas que vemos e nos fazem olhar para nós de maneira diferente”. Foi no Instagram que encontrou o primeiro local onde fez um dos primeiros procedimentos estéticos: uma clínica dentária que publicitava os resultados da aplicação do ácido hialurónico. Como gostou do que mostravam e era “relativamente barato comparado com outras clínicas de estética”, decidiu experimentar, para tentar corrigir o facto de ter uma parte do lábio maior do que a outra.

Seguiu-se um pesadelo. “Fiz alergias e durante duas semanas foi horrível.” Os lábios ficaram com “o dobro do tamanho” e valeu-lhe poder tapar a cara com máscara, por ter sido durante o pico da pandemia. Só sossegou quando encontrou outra especialista que a ajudou e, no fim, até conseguiu o resultado que pretendia. “Agora praticamente todas as pessoas fazem esses procedimentos. Vemos nas redes sociais que fica bem e confiamos…”

Até que ponto o scrool diário que fazemos nos ecrãs, a passar em revista as redes sociais, molda quem queremos ser ou parecer? “Começamos a ver nas redes sociais as pessoas lindíssimas, arrumadíssimas, em situações de luxo, algo que piorou com a utilização de filtros. O que os jovens veem na Internet são pessoas que, aos olhos deles, são praticamente perfeitas e é o que eles querem ser”, diz Simone Ayres, médica com 24 anos de experiência a atuar na área da medicina estética, ozonoterapia e medicina funcional.

Chegou do Brasil há 15 anos e instalou-se no Porto. Ao seu consultório chegam, de vez em quando, “jovens com as mães ou até sozinhas”. “Muitas vezes são meninas, bonitas, com feições normais, que encontram defeitos que não têm, por causa das redes sociais. Geralmente têm dois ou três ídolos e querem ficar como elas, com a boca delas, com outras características, em vez de se aceitarem como são. Trazem fotos dessas pessoas das redes sociais”, descreve.

Há pouco tempo atendeu, de forma excecional, “uma menina de 14 anos que praticamente não tinha lábios” mas, por questões de ética, já disse “não” a muitos pedidos. “Tem de ser com indicação e respeito pelo organismo e não porque a pessoa quer, porque viu na Internet, porque se acha feia.”

Mas nem todos os “profissionais”, diz, têm esse critério. Há pessoas a fazerem tratamentos que “não estão habilitadas” e espaços que já se “direcionam para jovens, porque perceberam que é uma mina de ouro”.

A moda dos lábios grandes

Os lábios, neste momento, “é o que as pessoas mais querem, é uma moda que nem segue as proporções de harmonização facial. Estão a fazer lábios muito grandes, que não são compatíveis com a idade e o rosto das jovens, que ainda vai mudar”, revela Simone Ayres. Também há adolescentes que querem “fazer tratamentos de corpo para emagrecer, mas têm uma alimentação completamente errada”, e jovens que aparecem com “manchas no rosto” cuja origem importa descobrir antes de se iniciarem correções.

Na maior parte destes casos, defende a médica, mais importante do que fazer tratamentos estéticos é “aumentar a autoestima. É normal adolescentes terem ídolos, mas é preciso mostrar que elas também têm feições bonitas, que o rosto vai mudar, é importante gostarem de quem veem no espelho, sem filtros. No geral não são necessários tratamentos estéticos”.

Ainda “não estaremos num burnout, mas há uma preocupação constante” com a imagem, a beleza, a procura da perfeição, realça Simone Ayres. No adolescente, “esse quase desespero por alterar a imagem, de não se aceitar no espelho, está ligado à autoestima. Acham que se alterarem o aspeto, se ficarem mais parecidos com alguém que viram na Internet, vão ser mais felizes, mais bem aceites no grupo, mas o caminho não é alterar a fisionomia”. A médica recorda o caso de uma jovem que “não se olha ao espelho, só se olha ao telemóvel com filtro e só tira fotografias com filtro”. “É grave, essa jovem nem se conhece, não sabe quem é. Vê-se num espelho interativo, com um filtro, onde se vê como ela acha que deveria ser”.

Simone Ayres frisa que o fenómeno da busca pela perfeição ainda não tem em Portugal a dimensão que assume no Brasil. A procura continua “alta” mas, a divulgação de intervenções que causaram alguns danos estéticos, deixando pacientes com lábios ou bochechas desproporcionais e complicações de tratamentos mal realizados, tem colocado algum “travão” na procura destes procedimentos.

Zoom reforça olhar

Maria, nome fictício, tem receio de se expor. Tem 29 anos e já recorreu a enzimas, ácido hialurónico e fez tratamento a estrias. A primeira vez foi há um par de anos, quando viu o resultado de um tratamento para as estrias através das redes sociais de uma pessoa que conhece.

Nem é grande utilizadora das redes, admite. Mas as reuniões Zoom durante a pandemia tornaram inevitável que continuasse a ignorar a falta de simetria nos seus lábios, levando-a a procurar aplicar ácido hialurónico para melhorar a situação. Foi nas redes sociais que descobriu a especialista que fez o procedimento. Agradou-lhe a “preocupação e respeito que demonstrava pelo corpo e harmonia, em não fazer procedimentos desnecessários”, algo que valorizou, numa altura em que nas redes vê muitos “exageros”.

Nos últimos anos, diz David Rasteiro, especialista em cirurgia plástica, há mais pessoas a procurarem tratamentos ou intervenções. “Acho que o fenómeno das câmaras frontais dos telemóveis e as selfies fazem, inevitavelmente, as pessoas verem-se mais. Depois foi este fenómeno do Zoom e do Teams devido à pandemia, porque estavam sempre à frente da câmara e se viam constantemente no ecrã, durante as reuniões online. Começaram a reparar mais em si, no ar cansado ou envelhecido. Claro que procuraram melhorar.”

David Rasteiro acredita que em Portugal não existe ainda “um fenómeno super marcado das belezas extremas, uma busca da perfeição que leva a uma coisa patológica. Regra geral as pessoas procuram um pormenor, um detalhe ou então uma avaliação mais global”. Aqui “as pessoas têm um equilíbrio” e há também muita preocupação com a “alimentação, o exercício físico, o sono, o humor”. Não é apenas uma questão superficial, são pessoas que se “cuidam no global”, considera.

Através das redes sociais, salienta o médico, os internautas descobrem tratamentos e informações sobre como podem melhorar determinados aspetos, algo que antes era mais restrito e caro, mas que se tem vindo a tornar mais comum.

David Rasteiro vinca que não podemos “colocar no mesmo saco tratamentos de estética, de medicina estética e cirurgias, que são coisas muito diversas”. Uma coisa é “um corte de cabelo, outra é uma cirurgia de seis horas para alterar o corpo”. E alerta ainda para a importância de se procurarem profissionais. “Há pessoas que não são médicos e se põem a fazer coisas que não devem e depois dá asneira.”

Pressão é maior nas mulheres

A Mia Relógio, figura pública que para muitos é uma referência no Instagram, o que a incomodava era uma “ruguinha na testa”. Também tem algumas manchas na pele e viu o corpo transformar-se pela maternidade. Ainda assim, aos 42 anos, gosta do que vê ao espelho na esmagadora maioria das vezes. Mas há pressão, reconhece. Muita. Já tinha passado a barreira dos 30 anos quando fez o primeiro procedimento estético, mas admite que, “provavelmente”, se não tivesse a exposição pública que tem, “não teria começado tão cedo”. Atualmente aplica botox e ácido hialurónico, e de vez em quando injeções de vitaminas para dar luminosidade à pele. Há alturas em que se sente “mais confortável” na própria pele do que outras, confessa. Há dias, fez uma campanha “quase sem maquilhagem” e foi “difícil” ter a “pele tão exposta”.

A influencer é a primeira a colocar pressão nela própria. “Todos os dias acontecem coisas no digital, todos os dias vemos pessoas a fazerem campanhas e é inevitável não nos tentarmos comparar. Se não conseguimos um trabalho, pensamos: será que o problema é meu? Será porque já tenho esta idade ou o meu corpo não é tão bom como o de A ou B?”. Teve de começar a desligar o telefone a partir de determinada hora do dia, porque se “sentia mal” e isso afetou-lhe a autoestima. “Precisei de me proteger.”

“No digital, nas televisões, nas revistas, cada vez mais há uma perfeição que não conseguimos alcançar e isto cria uma certa frustração”, sobretudo nas mulheres. “Ninguém vê os cabelos brancos nas mulheres como charme, pensam que se desleixou, não está arranjada. Ou o peso, o corpo perfeito, o corpo ideal. A sociedade coloca mais pressão nas mulheres”, acrescenta.

Mia Relógio já gravou stories em calças de pijama e fez desabafos sobre inseguranças que sente em relação ao seu corpo através das suas redes sociais. “Acho que hoje em dia é exagerado, a imagem é importante, mas não pode ser tudo. A imagem não pode ser tudo em nós e o resto ficar perdido. Esta pressão começa cada vez mais cedo, infelizmente.”

Obsessão afeta saúde mental

As redes sociais têm um “impacto muito grande na vida dos jovens e a construção do seu ego cria-se em função do ego virtual, que é a procura de uma adoração. O like passou a ser o amém digital. O valor da pessoa não está naquilo que lê, no que sabe, mas sim no número de reações que obtém. Para publicar uma fotografia, um jovem ensaia, no mínimo, oito disparos. Esta obsessão pelo corpo, pela imagem, tem depois impacto na autoestima”. Uma imagem pode provocar um turbilhão de reações negativas, o que se reflete na “saúde mental, a nível de ansiedade, depressão, esgotamento”. A análise é de Joaquim Fialho, analista de redes sociais, investigador do Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social e docente do Instituto Superior de Gestão. Recentemente lançou o livro “Redes sociais – Ilusão, obsessão e manipulação”.

Antes, as grandes influências estavam nas academias, nos livros, nas artes, agora estão no digital. “Observamos cada vez mais figuras públicas que são instrumentalizadas pelas marcas para chegarem ao exército dos jovens que procuram o corpo perfeito e muitos influenciadores são os pivôs desta sociedade do hiperconsumo, da hiperconectividade e da hiperligação”.

Dentro do capitalismo digital, continua Joaquim Fialho, temos o “culto do corpo, o culto da imagem, como um negócio agressivo”, pese embora não ainda com a dimensão do Brasil. Duas investigadoras do Rio de Janeiro contaram-lhe que “há adolescentes a fazer implantes mamários ou a alterarem glúteos”, sinal de como estas intervenções se “banalizaram”. “A partir dos 12, 13, 14 anos há uma preocupação estética e são as redes sociais que fomentam essa necessidade de correção estética do corpo.”

Os jovens portugueses, avisa o analista, “seguem muitos influenciadores brasileiros, no YouTube, TikTok, etc., e há um risco muito grande desse fenómeno se alastrar em Portugal” com maior intensidade. “Não vai tardar muito a essa preocupação estética e de alteração do corpo via cirurgia estética chegar”, pelo que é necessário procurar equilíbrio.

Os trabalhos de investigação na área mostram que “cada vez mais o ego virtual está a condicionar o ego real e isto tem um impacto negativo na construção do processo de socialização dos jovens”. “Estamos a construir um processo de socialização muito assente no digital e os agentes de socialização clássicos, que eram a família e a escola, estão a ocupar um lugar secundário”, sublinha.