Queixar, acusar e comparar. Como se dão as gerações?

Um dos dados que tem sido amplificado para argumentar que estamos mais "queixinhas" é a questão da saúde mental

Os baby boomers destruíram o planeta? Os millennials são preguiçosos? E a geração Z queixa-se de tudo? Os nossos avós reivindicavam liberdade ou comida, agora fala-se de ecologia ou identidade de género. Será que diferentes propósitos levam mesmo a um conflito geracional?

Podemos recuar tanto quanto a humanidade organizada em sociedade para encontrar testemunhos de conflito geracional. Já o filósofo Sócrates, por volta de 400 a.C., acusava as novas gerações de não terem maneiras e de serem mal-educadas. Soa semelhante aos dias de hoje? Provavelmente, já um ou outro avô ou avó terá dito o mesmo sobre a geração dos netos. Ou até mesmo um professor ao falar sobre a nova turma que recebeu.

E, ao longo dos anos, Sócrates, na Grécia Antiga, ou tantos avós e professores, entre outros, não foram os únicos a olhar para os jovens com desconfiança. Sibila Marques, professora de psicologia social do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, afirma que, “em termos de análise de documentos de filósofos e escritores, se encontram algumas bases” de conflito geracional. Na opinião da investigadora, uma caricatura “quase anedótica de novas gerações que não estão a conseguir acompanhar o que gerações anteriores faziam”.

“A explicação pode vir de alguns estudos que mostram que as pessoas mais velhas têm mais dificuldade em aceitar novas reformas, por terem já crescido dentro de determinados pressupostos.” Mas, ressalva, essa dificuldade não é sinónimo de conflito, pelo contrário. Deixemos de lado os escritos e os filósofos e mergulhemos na população.

Sibila Marques sublinha que, “quando analisamos inquéritos representativos da população, a evidência vai em sentido contrário do que é posto pela literatura como um eterno conflito geracional”. Surpreendentemente, “muitas vezes até há uma preferência dos mais velhos pelos mais novos, que são classificados como mais criativos, inovadores e saudáveis”. Em suma, os estudos representativos mostram que as gerações mais novas são vistas de forma positiva pelos mais velhos. E que há mais consensos do que conflitos entre as gerações (mas já lá vamos).

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, corrobora esta ideia de exacerbação do conflito. Nota que a atitude de rivais pode até estar presente, em certa medida, “quando estamos a falar dos novos desafios”. “Os mais velhos têm tendência de os comparar com desafios antigos, pelos quais passaram, o que é normal, porque são a sua referência.” Mas a verdade é que cada geração tem as suas dificuldades, diferentes, e, por isso, não comparáveis. Para a diretora da clínica Academia Transformar, “olhar para as diferentes gerações deve ser um exercício de observação e não de comparação”.

Mais do que uma diferença de dificuldades ou queixas, Filipa Jardim da Silva acredita que, atualmente, a diferença geracional se trata de uma diferença na liberdade de expressão. “As gerações mais antigas foram ensinadas a reprimir a sua voz e a expressão das suas necessidades.” Os millennials ou a geração Z podem parecer “mais queixinhas”, mas na verdade são apenas detentores do poder de falar, que era tão desejado por anteriores gerações. Ou seja, não estamos mais queixinhas, apenas temos mais formas de sê-lo.

A psicóloga lembra que esta diferença na educação das que são, atualmente, as duas extremidades geracionais, pode levar a algum conflito. “Os mais velhos, como foram educados a não se queixar e a não poder verbalizar os problemas, podem levar a confundir essa repressão com resiliência”, apelidando os mais jovens de fracos. Mas, como vimos há pouco com o estudo referido por Sibila Marques, a realidade tende até a ser oposta a esta e os jovens são vistos de forma positiva.

Hierarquia de necessidades

Lado a lado com a ideia de que “não estamos mais queixinhas”, apenas temos agora liberdade de expressão, Inês Espiga de Macedo, médica do Hospital Lusíadas, do Porto, acrescenta um outro fator: a hierarquia de necessidades. A hierarquia de necessidades de Maslow, teoria da psicologia desenvolvida por Abraham Maslow, mostra-nos que, “quando não temos necessidades básicas satisfeitas, como a fome, a sede ou as condições de habitação, não conseguimos preocupar-nos com patamares superiores de necessidades, como a segurança ou, ainda mais acima, a realização pessoal”, explica.

A especialista em medicina geral e familiar reforça esta ideia para mostrar que é compreensível que diferentes gerações tenham diferentes preocupações e que, a partir do momento em que as necessidades básicas estão asseguradas na sociedade, “o ser humano passa a um nível seguinte de procura” – ou seja, de queixa.

Aliás, “queixar-se é normal”. Filipa Jardim da Silva garante que, segundo algumas investigações, uma pessoa queixa-se entre 15 a 20 vezes por dia. “É um comportamento natural, adaptativo e necessário para o cérebro humano.” E, por isso, ficará enraizado no comportamento humano para as próximas gerações, mesmo que os problemas “atuais” sejam, a longo prazo, resolvidos. Logo aparecerão outros para nos queixarmos.

Um dos dados que tem sido amplificado para argumentar que estamos mais “queixinhas” é a questão da saúde mental. Há maiores índices de doença psicológica, “mas isso significa que só as novas gerações sofrem de problemas psicológicos?”, questiona Filipa Jardim da Silva, para, logo de seguida, avançar com a resposta: “A saúde mental era um marcador não recolhido nas anteriores gerações. Era um tema nulo. Não é que as novas gerações estejam mais doentes psicologicamente, estão é na posição de poder pedir ajuda”.

O efeito da tecnologia

A diferença geracional é notada, diz a psicóloga, em consultório. “Temos tido pacientes mais velhos a chegar à primeira consulta aos 40 e muitos anos, por norma, devido a um momento de grande dificuldade.” Ou seja, nos mais velhos, há, geralmente, “um fator desencadeador” que os leva a procurar ajuda profissional. Quanto às novas gerações, “estamos a receber mais adolescentes que querem a consulta de psicologia para se conhecerem melhor, para gerirem melhor as emoções e para se sentirem mais seguros”.

Estas diferenças de atitude são também desencadeadas por diferentes contextos. Filipa Jardim da Silva realça o uso de tecnologia e, principalmente, de redes sociais. “São ferramentas com um lado positivo, mas têm também consequências negativas.” O impacto psicológico da pressão consequente das redes sociais tem um efeito particular nos mais novos, com o qual as gerações mais velhas não tiveram, nem têm, de lidar.

Além disso, o uso de telemóveis e de acesso facilitado a informação tem também um impacto no tipo de utente que chega a uma consulta. Ana Cristina Vitor, médica de medicina geral e familiar da Clínica da Baía, no Seixal, sente a diferença entre os mais novos e os mais velhos. “São as pessoas com mais idade que nos trazem mais sintomatologia, tendo em conta a prevalência de um maior número de patologias na população idosa. No entanto, a população mais jovem chega à consulta com queixas múltiplas e inespecíficas, tentando enquadrá-las em diagnósticos preconcebidos e muitas vezes incorretos, derivados de leituras na Internet.”

Empatia e união

Questionada sobre o ambiente que sente entre as famílias que acompanha na especialidade de medicina geral e familiar, Ana Cristina Vitor tende a considerar a mesma ideia da investigadora do ISCTE-IUL Sibila Marques: há mais consenso do que discórdia, referindo até uma forte empatia entre gerações opostas. É o neto que leva a avó à consulta, por exemplo. “Os mais jovens não conseguem ter noção do que as gerações mais antigas vivenciaram, mas isso acaba por ser natural e até ultrapassado facilmente através da chave para todo o conflito: a comunicação.”

Sibila Marques acrescenta que, quando se fala de uma questão geracional, acaba por se falar de um tema complexo de relações, “porque nós vivemos em família, portanto, a questão geracional não é olhar para um outro grupo que não conhecemos e que nos é estranho”. “É alguém que nos é próximo.” E, por isso, diversos estudos apontam, com base em inquéritos populacionais, que a maioria das pessoas acredita que a união e a cooperação entre gerações, com partilha de experiências e de saberes, é positiva. Neste âmbito, a professora de psicologia social destaca o trabalho do grupo europeu “Generations United”, que trabalha a ideia de cooperação entre gerações, ao invés de conflito.

A psicóloga Filipa Jardim da Silva prefere até suplantar a ideia de discórdia entre gerações com a afirmação de que “não mudamos assim tanto” ao longo dos anos. “De forma transversal continuamos com uma dificuldade em obter bons níveis de inteligência emocional, independentemente da geração.” Filipa Jardim da Silva adianta que “há muitos erros que continuam a ser repetidos de geração em geração”, tais como a metodologia clássica de parentalidade, de educação ou os currículos das escolas.

Voltemos à tal ideia de Sibila Marques, a investigadora do ISCTE-IUL, sobre a preferência dos mais velhos pelas gerações mais jovens. E estes? O que pensam de si mesmos? A professora de psicologia social indica que, num estudo que realizou em Portugal há uns anos, “o estereótipo dos jovens era genericamente positivo e, no caso dos traços negativos, como a irresponsabilidade, esta imagem não era perpetuada apenas pelos mais velhos, sendo partilhada por todas as faixas etárias”.

Os discriminados

Jovens e velhos são, segundo Sibila Marques, as gerações mais discriminadas. A professora do ISCTE-IUL aponta para o mais recente relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre envelhecimento. O documento, datado de 2015, refere a “prevalência do idadismo entre os mais velhos e os mais novos – os dois grupos mais descriminados”. Em suma, “não se consegue concluir se as pessoas mais velhas são mais negativas quanto aos mais novos ou não”. “É um mito que exista conflito geracional”, sentencia Sibila Marques.

Um dos exemplos de que jovens e velhos sofrem igualmente com os efeitos do idadismo é a pandemia. A especialista argumenta que, durante o pico de covid-19, “os idosos foram focados como grupo de risco de forma negativa, passando a ideia de serem fracos e inúteis; já os mais jovens foram fortemente caracterizados como irresponsáveis e inconsequentes”. Ambas, considera Sibila Marques, generalizações incorretas. E até perigosas.

A investigadora vê com preocupação “a colocação da tónica nas diferenças geracionais”. “É muito fácil criar um conflito geracional, porque é um comportamento inato do ser humano. Mas o importante é criar uma ligação para ultrapassar problemas, antigos e novos.” Sibila Marques avança com mais um exemplo, desta vez de um especialista britânico que segue, Bobby Duffy.

O profissional, num artigo publicado no “The Guardian”, refere que, num inquérito sobre se o gasto com Netflix e festas seria a causa para os mais jovens não conseguirem comprar casa, todas as gerações, de forma geral, concordaram. Até mesmos os mais jovens. Sibila Marques conclui: “Este é o tipo de mensagem que passamos à população quando nos focamos nas diferenças entre gerações, que reforçam estereótipos errados.” Apenas com união geracional é que será possível resolver as questões que têm assolado a sociedade, como o preço da habitação. E, tal como Bobby Duffy frisa no seu artigo, “colocar os boomers contra os millennials é uma distração da iniquidade que nos afeta a todos por igual”.