Joel Neto

Quanto tempo o tempo tem


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

No dia em que trouxe o Melville cá para casa, a Tatiana falou-me de um vizinho que fazia casotas para cães com recurso a tábuas de paletes. Encomendei uma, o rapaz veio cá entregá-la e a casota durou o que pôde. Ao fim de sete ou oito anos, precisei de outra. Liguei à Tatiana. “Vizinho?!”, estranhou. “Não me lembro de nada disso… Ah, sim, um que usava madeira de paletes?”

Para ela, aquilo tinha sido noutro século. Para mim, na semana anterior.

Eu esquecera-me do nome do rapaz, de facto. Mas lembrava-me de tudo o resto. A casota tinha custado 30 euros. Ele abrira-lhe uma porta pequena de mais e, embora me prometesse voltar cá com a serra tico-tico, nunca mais aparecera. Mesmo assim, fora muito útil, a casota. Eu fizera-lhe um telhado em plástico e mais tarde outro em contraplacado marítimo. O Melville usara-a sozinho, depois com a Jasmim, depois com a Jasmim e o Gauguin e finalmente só com o Gauguin. Nos primeiros dias, entrava e saía erecto; ao fim de algum tempo, tinha de dobrar-se, levando na boca o seu pauzinho de estimação.

Tudo isso acontecera meia dúzia de dias antes – até os cheiros eu continuava capaz de descrever. Como podia a Tatiana não se lembrar sequer do carpinteiro?

Só então comecei a determinar o padrão. Em conversas com os meus primos, com os quais partilhei o melhor da infância, fui-me apercebendo de que memórias que guardava como tesouros, protegidas em caixas de vidro blindado, não lhes diziam nada. E há umas semanas, falando com o A., mencionei um colega que tínhamos tido no liceu, ao que ele se deteve: “O Q.? Isso é aquele baixinho que jogava bem à bola?”. Sim, era. O seu melhor amigo. O capitão de equipa do Lusitânia e o melhor aluno da turma – o rapaz que toda a gente queria ser.

Nem todos guardamos as memórias da mesma maneira, a verdade é essa, e o facto de eu o ter percebido aqui, e não em Lisboa, sugere-me uma explicação diferente da da idade. “Numa ilha as coisas esquecem-se mais depressa”, ensaiei numa novela. “É a única maneira de fazer o tempo andar para a frente.” Mas, de repente, nem sequer me parece que acabe aí. E se uma parte dos equívocos (até das desavenças) que vamos gerando entre nós viesse desse mesmo lugar – das diferentes percepções que nutrimos sobre a passagem do tempo e o significado de cada parcela dele?

Anoto-o para ponderar melhor. Em todo o caso, sempre que me falam dos três grandes filtros sobre a ideia de sucesso pessoal, ou das três coisas de que mais precisamos para lograr a felicidade, murmuro: “Quatro. Saúde, amor, dinheiro e tempo”.

Tempo para desfrutar, tempo para permanecer, tempo para adquirir, tempo para guardar, tempo para recordar.

Por exemplo: neste momento, o Artur já nos parece crescer demasiado depressa. Avisaram-nos, e é verdade: a toda a hora mudam coisas e, por muito que mudem para melhor, cada dia que passa é um dia que não volta. Apetece cristalizá-lo deste tamanho, com este sorriso, as faces rosadas nesta proporção. Como poderia eu enfrentar esse vórtice, a não ser guardando estes dias como um tesouro, em caixas de vidro blindado, com alarmes de infravermelhos e polícias armados à porta?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)