Quando deixar os filhos dormir fora do ninho

Na perspetiva dos pais, conhecer quem está do outro lado é crucial

Há uma idade mínima para pernoitar em casa de amigos? Que fatores os pais devem considerar? E há forma de preparar os garotos para a experiência? Especialistas apontam um caminho.

Cláudia Azevedo, 43 anos, tem duas filhas, uma com 13, outra com 17, prestes a fazer 18. A mais velha dorme fora já lá vão uns anos, a mais nova só aqui e ali com os avós, e mesmo assim algo contrariada. Por ela, pernoita sempre no ninho, ali pertinho dos pais, um lado hipercaseiro que, por vezes, chega a inquietar a mãe. “Com todas as preocupações que isso traz, também é um passo importante para a autonomia deles, não é?”, questiona, sem certezas. Com a mais velha, que joga andebol há uns quantos anos, foi algo natural, tanto para ela, como para os pais. Tudo aconteceu num “ambiente controlado”, condição fundamental para Cláudia dormir tranquila. “A primeira vez terá sido com 13 anos, num torneio desportivo. Ficou fora com a equipa e os pais podiam contactar por telefone. Depois disso, teve uma experiência na Universidade Júnior, em que a ideia era mesmo incentivar a que tivessem rotinas de forma autónoma. Estavam pouco com o telemóvel, mas tinham um tutor com eles em permanência. Isso transmite alguma segurança aos pais.” O resto acabou por suceder naturalmente. As pernoitas em casa de amigas conhecidas, as noites fora numa ou outra festa doméstica que o grupo de amigos vai organizando. Em termos de conversas prévias, houve apenas dois pontos que Cláudia fez questão de frisar (e que volta e meia opta por reforçar): por um lado, as possíveis influências nefastas, nomeadamente no que diz respeito à bebida; por outro, certos cuidados em relação ao sexo masculino, no sentido de “não se deixar iludir com facilidade” perante eventuais investidas. “Agora já é mais com base na confiança, porque ela nunca me deu motivos para desconfiar. A dada altura, também é importante estabelecer esse laço de confiança, até a relação fica mais fortalecida. Incutir o medo é pior, leva a esconder coisas, não é?”, e volta a questionar-se, como não, a parentalidade é esse interminável novelo de dúvidas e questões, que tantas vezes pairam eternamente.

No caso, faremos por responder o melhor possível às que se seguem. A partir de que idade podemos deixar os miúdos dormir fora de casa? Há uma forma de preparar este processo? Como? O que devemos garantir antes de lhes permitir dar este passo? Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e psicoterapeuta infantojuvenil, trata de fazer um esclarecimento prévio. “A verdade é que não existe, de forma exata, um momento ou idade ideal para uma primeira dormida fora de casa, na casa de amigos. Há crianças com cinco, seis anos que manifestam vontade de o fazer a até já o fazem com alguma regularidade. Há jovens de 13 anos que nunca o fizeram, nem mostram interesse em tal experiência”, adianta, com base nos casos que lhe vão passando pela frente em consulta. Até porque dormir fora, focando-nos aqui nas pernoitas em casa de amigos, “pode gerar em simultâneo entusiasmo e nervosismo”. Há, por isso, duas premissas que lhe parecem fundamentais. “Este passo implica que a criança se sinta confortável em permanecer longe de casa e das suas figuras de referência por algum tempo e que possua competências socioemocionais que facilitem a interação com outros adultos.”

Progressividade é a chave

Outro ponto importante, referem vários especialistas ouvidos pela “Notícias Magazine”, é… a predisposição dos próprios. “Um dos sinais de que a criança pode estar preparada para dormir fora é a expressão dessa vontade”, defende a psicóloga. “Se pede para dormir em casa de um amigo é porque, em princípio, se sente confiante e capaz para que isso aconteça. Em todo o caso, é essencial garantir que a criança compreende tudo o que isso envolve, nomeadamente toda uma rotina de sono longe dos pais e do seu lar e na companhia dos pais do amigo.” Inês aponta ainda que, por vezes, esta primeira dormida fora, acaba por se proporcionar em contexto de atividades de escuteiros ou de campos de férias, o que ajuda a tranquilizar os pais. “Atualmente, tenho observado também que esta primeira dormida acontece muitas vezes em contexto de uma ‘festa do pijama’ em idades como os cinco, seis anos ou mesmo em dormidas na escola, para celebrar, por exemplo, o Dia da Criança.”

Uma certa progressividade que, advoga Tânia Gaspar, também psicóloga clínica, deve nortear todo o processo. “É importante que seja feito um trabalho desde cedo. Ao nível da responsabilidade, da gestão dos riscos, da assertividade. A questão da comunicação entre pais e filhos é fundamental, mesmo o facto de conhecerem bem os amigos desde cedo, isso depois vai ajudar neste processo. Outra questão relevante é a negociação e o compromisso, para que progressivamente os vamos pondo a par tanto da noção de responsabilidade como das consequências. Não é deixar fazer tudo sem qualquer contrapartida.” A docente universitária chama ainda a atenção para a questão da socialização. “Para determinadas famílias isto acontece de forma mais simples. Porque há primos, porque os pais têm um grupo de amigos com filhos em idades próximas. A questão é que temos núcleos cada vez mais fechados, em que as relações com a família alargada estão cada vez menos desenvolvidas, e acabamos por ter muitas crianças com oito, nove anos, que nunca dormiram fora de casa em situação nenhuma.” O ideal, defende, seria o oposto: que as coisas fossem feitas de forma progressiva, até para benefício da própria criança. “Primeiro com os avós, depois com primos ou outras pessoas da família, num contexto mais seguro. Isso ajuda a transmitir confiança.” Nesta lógica de um processo gradual, sugere ainda que se possa começar por “passar uma tarde em casa do amigo em causa, por exemplo”, para se perceber como a criança se sente, “se gostou, se esteve bem”. “Para depois não acontecer termos de os ir buscar às três ou quatro da manhã porque não conseguem dormir.”

Na perspetiva dos pais, conhecer quem está do outro lado também é crucial. Caldas Afonso, pediatra e diretor do Centro Materno Infantil do Norte (CMIN), salienta isso mesmo. “O que de mais importante temos são os nossos filhos. Portanto, claro que antes de os deixarmos dormir onde quer que seja, é importante perceber para onde vão, conhecer bem as pessoas que os vão acolher, os hábitos que têm, a cultura familiar, a maneira de estar, a supervisão existente”, alerta. Para que se evitem situações desagradáveis. Há ainda que ter em conta potenciais engodos. Inês Marques especifica. “Já me cruzei com um ou outro caso, não muitos, em que, na adolescência, algumas dormidas em casa de amigos foram envoltas em mentiras para contornar regras. Exemplo. Os pais da Rita de 15 anos não a deixam sair à noite. Diz que vai passar a noite em casa da amiga Joana (que até acaba por ir), como forma de poder sair à noite sem a conivência dos pais. Habitualmente, estas situações surgem em contextos familiares onde a parentalidade é exercida de forma mais autoritária, onde há menos espaço para o diálogo e a negociação.”

Enurese e autonomização do sono

Isto numa perspetiva comportamental. Mas se falarmos de crianças mais pequenas, podem colocar-se até questões de âmbito mais fisiológico, refere Caldas Afonso. “O aspeto mais importante que tem de estar acautelado é a questão da enurese primária e do controlo do esfíncter. Há vários pais que vêm à consulta porque é suposto os filhos passarem a primeira noite fora com os escuteiros, por exemplo, e ainda não controlam as urinas noturnas.” O que de alguma forma pode ser traumatizante num cenário destes. O especialista lembra, no entanto, que a enurese noturna é considerada “uma situação fisiológica” até aos cinco, seis anos.

Hugo Tavares, pediatra no Hospital Lusíadas Porto, acrescenta outro ponto à discussão. “Há que ter em conta que, muitas vezes, esta é uma situação que exige mais preparação por parte dos pais do que por parte da criança.” Mas, na perspetiva dos pequenos, destaca mais uma nuance relevante: a autonomização do sono. “Se já dorme de forma autónoma, vai fazê-lo muito mais facilmente fora de casa. Se ainda depende da presença da mãe ou do pai, por exemplo, é natural que só durma com quem tenha muito à-vontade. Isso é relativamente frequente.” Reforçando que se deve sempre esperar que a criança demonstre vontade de ir dormir fora – “uma coisa é haver uma necessidade absoluta dos pais de deixar a criança com alguém, outra é quando falamos do dormir fora como uma experiência nova e aí convém sempre esperar que demonstrem essa vontade, não deve ser algo imposto”, ressalva -, deixa ainda pistas para uma potencial conversa preparatória. “Devemos explicar o que vai acontecer, porque é que a criança vai dormir fora, em que circunstâncias, acima de tudo tentar tranquilizá-la.” Até porque, como resume Tânia Gaspar, dormir fora é suposto ser “ótimo, saudável, superdivertido”.