Quando a febre agita os sonhos

Os sonhos febris são, ao que tudo indica, ainda mais frequentes nas crianças

A temperatura sobe, o cérebro fica em stresse, o sono piora, os pesadelos atacam. Mas também há quem relate uma imagem que se repete ciclicamente. O que já se sabe e o muito que falta saber sobre os sonhos febris.

Eduarda, 33 anos, nunca foi de se lembrar dos sonhos que tem. Mas há um que a “persegue” desde que se lembra de ser gente. “Quando era pequenina tinha amigdalites com muita frequência e isso significava que passava muitos dias do ano doente, com febre. Nessas alturas, esse sonho estava sempre a acontecer.” Uma sala, sempre a mesma sala, com umas esferas metálicas grandes, incessantemente a rolar de cima para baixo e de baixo para cima. “Depois, à medida que fui crescendo, fui ficando menos vezes doente. Mas, ainda hoje, se tiver febre, tenho esse sonho. Ao ponto de, a dada altura, já saber que se estou a sonhar com a sala e as esferas é porque devo ter febre.” Eduarda volta e meia intrigava-se, à medida que foi crescendo ia até perguntando a pessoas próximas se lhes acontecia o mesmo. Mas a resposta era invariavelmente negativa. E ela continuava às escuras. “Até que li um artigo que falava de sonhos febris e pensei: ‘Ah, então é isto que me acontece’.”

Mas ainda hoje os chamados sonhos febris – no fundo, são sonhos estranhos que acontecem durante episódios de febre – inspiram mais dúvidas do que certezas. Aliás, o mesmo se passa com os sonhos em geral. E até com o sono. Anselmo Pinto, especialista em otorrinolaringologia que fez formação específica em medicina do sono nos EUA e em Espanha, resume a evolução do conhecimento nesta área de uma forma curiosa. “Nesta matéria, talvez tenhamos descoberto mais nos últimos cinco anos do que nos outros cinco mil. E é possível que daqui a uns anos tudo o que dizemos hoje já esteja completamente desatualizado.” O especialista, que é o responsável máximo pela Clínica do Sono, no Porto, dá exemplos concretos. “Comecemos pela pergunta mais básica: para que é que serve o sono? Não sabemos. Porque é que sonhamos? Não sabemos. Veja o ponto a que chega a nossa ignorância. Claro que sabemos algumas coisas, que o sono ajuda a ‘eliminar detritos’, a ‘fazer uma limpeza ao computador’. Mas há uma série de coisas que ainda ninguém provou. ”

Se nos debruçarmos sobre os sonhos febris, então, a incerteza é ainda maior. “Uns autores dizem que existem, outros que não”, adverte. De facto, apesar de o termo ser comum na literatura e na cultura popular, o número de estudos científicos sobre o assunto é diminuto. Mas os que existem apontam pistas importantes. A revista americana “Time”, que dedicou um artigo ao tema, aponta um de 2013, que incidiu sobre os sintomas associados à febre e em que várias pessoas reportaram sonhos “estranhos” como parte dos efeitos secundários relacionados com a subida da temperatura. Um dos indivíduos relatou até o regresso de um sonho “que habitualmente tinha na adolescência”. O que de alguma forma parece relacionar-se com o testemunho de Eduarda. Num outro estudo, de 2016, compararam-se os sonhos que várias pessoas tiveram durante episódios febris recentes com os que habitualmente tinham e concluiu-se que os sonhos febris eram “mais bizarros”, encerravam “uma carga mais negativa” e incluíam menos interações sociais”. Aliás, 94% dos inquiridos descreveram os sonhos febris como negativos. “Emocionalmente mais intensos também.”

Cérebro sob stresse

O que nos leva à questão-chave: porquê? Michael Schredl, psiquiatra especialista na área do sono e autor deste estudo, explica que as elevadas temperaturas que tomam conta do cérebro durante um episódio de febre “podem provocar uma disrupção nos normais processos cognitivos”, o que de alguma forma parece produzir sonhos “com características menos usuais e mais desagradáveis”. Apesar de todas as dúvidas que pairam sobre o tema, Anselmo Pinto aponta no mesmo sentido. “Se estivermos com febre, o nosso cérebro está sob stresse. Muitas vezes aparecem certas imagens em que o indivíduo nem sabe se está a sonhar se está acordado. É algo que ainda está muito pouco estudado.” Depois, há uma questão mais específica, que se prende com as várias fases do sono. É que uma das (poucas) conclusões a que os cientistas já chegaram a propósito dos sonhos é que estes ocorrem sobretudo na fase REM do sono. REM, de Rapid Eye Movement. Ou, em português, movimento rápido dos olhos. Que no fundo é uma fase que ocorre após o sono em profundo, uma espécie de “estágio” para o despertar. Ora, outro dado que já temos é que a febre suprime o sono REM. E faz todo o sentido que, perante esta disrupção, a própria natureza dos nossos sonhos possa mudar.

Miguel Guimarães, pneumologista que se dedica também a tudo o que tenha a ver com patologias do sono, aborda ainda outras nuances relevantes. “A temperatura é um fenómeno importante para o controlo do sono. Não é à toa que há uma maior tendência para a insónia no verão do que no inverno. Tipicamente precisamos de baixar a nossa temperatura para ter sono. Ora, se estou com febre vou necessariamente dormir pior, porque vai ser desregulado o ritmo endógeno relacionado com a temperatura. Os próprios fármacos que tomamos nessas circunstâncias podem contribuir para isso.”O coordenador da unidade de pneumologia do Hospital Lusíadas Porto acrescenta ainda outro dado. “A própria privação de sono é um dos principais desencadeadores dos distúrbios de sono. Ora, um indivíduo que está com febre vai dormir pior e isso, por si só, aumenta a probabilidade de ocorrerem sonhos destes.”

O caso das crianças

Estes episódios são, ao que tudo indica, ainda mais frequentes nas crianças. A explicação é simples. “Têm um sono mais fragmentado”, realça Catarina Timóteo, pediatra e responsável pela consulta do sono para crianças nas unidades CUF Descobertas e CUF Torres Vedras. Ressalvando que não olha para os chamados sonhos febris como “uma entidade distinta”, reconhece que os pais “referem muitas vezes que os filhos, quando estão com febre, acordam assustados e confusos, ‘a delirar’”. A lógica é a mesma que se aplica aos adultos. “Quando estamos num contexto febril, há uma série de alterações em todos os sistemas: um mal-estar geral, dor de cabeça, dores no corpo, entre outras. E, tal como a febre disrompe os outros mais sistemas mais orgânicos, também vai interferir com o processo das emoções e o desempenho cognitivo.” A especialista dá exemplos práticos. “Sabemos que, estando com febre, ficamos com o humor afetado, com menor capacidade de memória, com uma lentificação psicomotora. Como o sono e todos os fenómenos relacionados com ele estão totalmente dependentes da capacidade cognitiva, também vão refletir essa disrupção do normal funcionamento cerebral.” Depois, é juntar a isso o facto de as crianças terem ciclos de sono mais curtos, de despertarem mais vezes, pelo que “vão lembrar-se mais frequentemente dos sonhos que têm”. “Porque nós lembramo-nos dos sonhos quando acordamos no momento em que eles estão a ocorrer.” E ainda há o facto de os mais novos terem os chamados “despertares confusionais”, em que “acordam confusos e com um discurso incoerente”. Uma espécie de “tempestade perfeita”. Por tudo isto, é normal que, durante episódios febris, os sonhos sejam “mais intensos, associados a sensações mais negativas, a fenómenos de distorção especial, a elementos ameaçadores ou a sensações de desconforto corporal”. Mas há ainda um mundo por descobrir.