Quando a estrada rouba parte da vida (e do corpo)

São vítimas de acidentes de viação, jovens, muito jovens, que viram o mundo fugir-lhes dos pés num instante de alcatrão que não tem volta atrás - e numa idade em que os sonhos ainda pareciam todos possíveis. Amputados, paraplégicos, tetraplégicos. Têm histórias esmagadoras e encontraram força sobrenatural para resistirem ao pesadelo. A sinistralidade rodoviária continua alta, demasiado alta, no nosso país.

Passou-se o Natal, passou-se o Ano Novo e Micael Paiva nem deu por isso. Acordou, ouviu uma médica explicar-lhe que era 12 de janeiro de 2023, estava no hospital, em Coimbra, enfiado numa cama atordoado. Não podia ser, pensou, ainda ontem era dia 19 de dezembro. E a memória daqueles segundos que haveriam de lhe mudar a vida ainda a carrega inteira, nítida, crua. Tinha saído de casa, em Romariz, Santa Maria da Feira, a caminho da Universidade de Aveiro. Estava a conduzir o carro do pai na autoestrada. “Um senhor ultrapassou-me, meteu-se à minha frente e fez uma travagem brusca.” A tentar desviar-se, despistou-se, enfaixou-se no separador central e aguentou-se acordado até ser socorrido. Sabia o que lhe tinha acontecido. “Mas depois estive em coma induzido quase um mês, para mim era dia 20 de dezembro quando acordei, mas não era.”

Aos 19 anos, Micael Paiva sofreu um acidente de carro numa autoestrada que lhe abalou a vida. Tem a perna direita amputada e a esquerda feita numa manta de retalhos. Esteve internado no Centro de Reabilitação do Norte, em Valadares. Teve alta na semana passada, há de voltar lá quando tiver a prótese
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Não era mesmo. E a angústia ainda estava para vir. Ver o corpo desfeito aos 19 anos – entretanto fez 20 -, como se estivesse numa realidade paralela, como se fosse uma mentira, como se a vida não pudesse ser tão cruel, foi cair num poço sem fundo. “Só um dia depois de acordar do coma, quando me levaram para tomar banho, é que reparei, ninguém me disse diretamente. A verdade é que sentia a perna toda, tinha sensações fantasma.” Viu ali, pela primeira vez, a perna direita amputada abaixo do joelho, a esquerda feita numa manta de retalhos, coberta de cicatrizes gordas, entrou em choque. O apoio psicológico ajudou no trauma e já lá vão seis meses desde esse dia, perdeu 16 quilos, chegou aos 45, pele e osso, já recuperou alguns, continua magrinho, a reerguer-se aos poucos. De Coimbra para o hospital da Feira, da Feira para o Centro de Reabilitação do Norte (CRN), em Valadares, foi um vaivém de internamentos. Está no ginásio do CRN – há quatro centros especializados de reabilitação no país, Norte, Centro, Sul e Alcoitão -, ajeita os óculos azuis antes de se agarrar às canadianas. Ainda não tem a prótese (há de ter em breve), mas já caminha e até sobe escadas.

O fisiatra Ismael Carneiro
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

“Trabalhámos toda a fase inicial da reabilitação e a preparação para o regresso a casa, para as atividades da vida diária, desde ganhar força muscular, conseguir manter-se em pé a ensaiar marcha” explica Ismael Carneiro, médico fisiatra. Micael chegou ali destruído emocionalmente, feito num caco, só andava de cadeira de rodas. “Agora já consigo fazer quase tudo”, diz ele com uma ponta de orgulho. Reaprendeu a tomar banho, a vestir-se, a caminhar. A perna esquerda, que serve agora de apoio e que os médicos salvaram numa luta aguerrida, carrega história, lesões, não mexe os dedos dos pés, usa um auxiliar nas sapatilhas, o que não facilita a recuperação. Mas não desiste.

No dia em que conversámos com ele, estava prestes a voltar a casa, tinha acabado de o saber. A família, aflita, fez uma angariação de fundos para adaptar a casa de banho e passar-lhe o quarto do primeiro andar para o rés-do-chão. O clube de futebol onde jogava ajudou, a paróquia também. Foi a mãe, empregada doméstica, quem segurou as pontas. “Quando tive o acidente, o meu pai tinha acabado de ser internado numa unidade de desabituação, tem problemas de alcoolismo. Foi tudo ao mesmo tempo e recebemos muito apoio.” Micael não consegue disfarçar a alegria genuína de quem ouvira o anúncio da alta pela voz do médico. “Sinto-me como se fosse um bebé a viver tudo pela primeira vez.” Já fez testes para um carro adaptado, quer voltar a conduzir, mas uma coisa de cada vez. O foco? É ter a prótese, caminhar sem canadianas. “E voltar à universidade, quero ir já em setembro, estou a tirar o curso de Gestão e Planeamento em Turismo”, conta despachado, para logo confessar o desgosto. “Via os meus amigos nas redes sociais, as festas académicas, e eu aqui. A vida deles continuou, a minha teve uma pausa.”

A fisioterapeuta Virginie Pereira acompanhou de perto a reabilitação de Micael, o reforço muscular, o treino de autonomia, o voltar a caminhar com a ajuda das canadianas (para já)
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

E o verão a espreitar lá fora, a cabeça a mil à hora a voar além daquelas paredes. “Penso muitas vezes que quando for à praia vou chamar a atenção. Não é só a perna amputada, tenho muitas cicatrizes na outra, preciso de um elástico para puxar o pé para cima e conseguir caminhar. Mas muitas pessoas me dizem, e é verdade, que estar aqui já é uma vitória.”

Jovens, a fatia mais significativa das vítimas

Os dados mais recentes da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) mostram que só em 2022 houve mais de 34 mil acidentes em todo o país, 473 vítimas mortais, 2436 feridos graves. Alain Areal, diretor-geral da associação Prevenção Rodoviária Portuguesa, explica que “tivemos uma grande evolução durante algumas décadas, em que até fomos dos países que mais reduziu a sinistralidade, mas a partir de 2014 houve uma estagnação e até uma tendência crescente”. É urgente, diz, a aprovação da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária 2030, a Visão Zero – lá iremos. Sendo certo que a última estratégia “teve um nível de execução baixo, o que não pode acontecer, não é só ter estratégias incríveis no papel e depois não haver recursos para aplicar”.

Se olharmos para os últimos anos, os jovens, sobretudo entre os 20 e os 24 anos, são a fatia mais significativa no total das vítimas de acidentes. “Mas isto é transversal em todo o Mundo.” Porquê? “Tem a ver com uma série de características, a inexperiência, a procura de emoções, a sobrestimação das suas capacidades e a subestimação do risco, colocam-se em situação de risco com mais frequência. Há a questão da velocidade, da utilização do telemóvel, do álcool, da condução à noite, da influência dos pares que é um fator relevante, porque andam mais em grupo e desafiam-se entre eles. Isto está mais do que estudado.”

E há novos desafios atualmente, com o “aumento da sinistralidade associada aos motociclos”. Há muito que a Prevenção Rodoviária se bate por uma “mudança radical do ensino”. “Não é um problema das escolas de condução, é um problema da exigência do exame, as escolas preparam os alunos para passarem nos exames. E eles começam a conduzir mal preparados, não aprendem a curvar, a travar, a conduzir com passageiro. O exame devia ter uma exigência muito maior, um acidente de duas rodas traz consequências muito mais graves, pela vulnerabilidade do condutor.”

Da tetraplegia renasceu das cinzas

Levi Joel Lavoura (para os amigos Levi, em casa Joel) tem as consequências cravadas no corpo para sempre. Anda pelo meio da empresa de construção civil dos pais, onde cresceu, a ver homens soldar, a dar indicações, é esse o fio que o tem agarrado à vida. Traz o telemóvel entre as pernas, pousado na cadeira de rodas, e disfarça as dores com o sentido de humor apurado. Ficou tetraplégico aos 21 anos, tem 25. Volta àquele dia 7 de julho de 2019 com a leveza de quem não quer rótulo de vítima. Um passeio de mota solidário que o pai organiza todos os anos em Albergaria-a-Velha, “eram umas 600 motas”. O pai deu pela falta de uma motociclista, Levi voltou atrás para ver se a encontrava e, no regresso, “havia uma fila de carros orientada pela polícia”, ele estava a ultrapassá-la e eis que um dos carros sai da fila para fugir ao trânsito por um atalho. “Bati-lhe na lateral, fui projetado 47 metros, caí numa terra agrícola com a cabeça no chão.” Sentiu o corpo desligar-se, sempre consciente, pernas, tronco, braços, a vida a escapar-lhe com ele a assistir, “só mexia os olhos e o pescoço”. Uma cirurgia de nove horas e meia, complicações respiratórias, hospitais atrás de hospitais, Aveiro, Vila Nova de Gaia, Coimbra.

Levi Lavoura ficou tetraplégico num acidente de mota em 2019, tinha 21 anos
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Levi sabia, mas a ficha só caiu quando entrou no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais, quando uma enfermeira lhe disse friamente que não voltaria a caminhar, que “se recuperasse algum movimento nos braços e mãos já seria muito bom”. Recuperou, não tem grande sensibilidade nas mãos, mas mexe os braços, do peito para baixo o corpo é um vazio de vida. “Tinha duas hipóteses, ou andava a chorar pelos cantos – e chorei muito, sempre sozinho – ou me agarrava ao que tinha.” O luto levou tempo, pensou suicidar-se (e a mãe ouve-o de lágrimas nos olhos). Cinco meses no Rovisco Pais, “é duro, muito duro”. Voltar a casa e à empresa dos pais foi o que o salvou da escuridão. Era manobrador de máquinas e soldador antes de o acidente o forçar a renascer, já em catraio se fascinava, nunca pediu uma Playstation, o sonho foi sempre a maquinaria. Não conseguiu voltar a trabalhar. “Mas só estar aqui no meio a vê-los, ir até às obras e ficar um dia inteiro a olhar, é o que me mantém vivo. Adoro isto.”

Os pais de Levi Lavoura, Rosa e Albino, ajudam-no a levantar-se da cama, a tomar banho, a vestir-se
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens )

Toma uns 20 comprimidos por dia, precisa de ajuda para se levantar da cama, para tomar banho, para se vestir, calçar, nos dias maus para comer – a mãe dá-lhe à boca. Os pais e os amigos (que nunca o largaram, iam buscá-lo para sair à noite no início, carregavam-no nos braços) foram a força motriz de um rebelde a quem a estrada roubou quase tudo, que era doido por motas, por motocross, por carros. Separou-se da namorada da época, que hoje trabalha ali mesmo, na empresa dos pais, e que passa a vida a provocar. “Somos muito amigos. Ela seguiu a vida dela e eu a minha. Sou muito bom de lábia, entretanto conheci outra pessoa, que lidou de forma muito natural com isto.” A vida sexual é que o assustava mais. “Mas descobri novas formas, como não tenho sensibilidade, preocupo-me com outras coisas, com o perfume, o toque, o beijo e até sinto mais prazer hoje. Com o tempo percebi que ganhei coisas, não perdi.” Ganhou o beijo do pai, que não se lembrava de existir antes do acidente, e a presença da irmã mais velha, que vivia em África e regressou por ele, “numa prova de amor”.

Levi já conduz, mostra-se no jipe enorme, um Dodge Ram adaptado, de sorriso rasgado. E Rosa Lavoura olha-o emocionada. Para uma mãe (que manteve a empresa de pé só por ele), a dor de ver um filho dependente, de o ouvir dizer que quis morrer, talvez seja maior ainda. “Não é pelo trabalho de ele depender de nós, nunca me queixarei de cuidar de um filho. É a tristeza de ver a limitação da liberdade dele.” E de lhe ver os dias “não” de cada mês, que coincidem invariavelmente com a data do acidente, “em que pede para não acender a luz, para o deixar na cama e fica lá o dia todo”.

Levi Lavoura passa os dias na empresa de construção civil da família, a eterna paixão, é o que o mantém vivo
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O condutor do carro nunca o visitou, nunca ligou para saber dele, é o que lhe dói mais. “Não guardo rancor, ele saiu da fila sem ligar o pisca, sem olhar pelo espelho, mas todos nós já passámos STOP, já conduzimos ao telemóvel, já fizemos inversão de marcha onde não podíamos. Não o culpo por isso, culpo-o por nunca me ter dado uma palavra”, confessa Levi. O processo no tribunal ainda está a correr, o julgamento está para breve. Entretanto, vai recebendo 218 euros por mês da Segurança Social, não fossem os pais e “morria à fome”.

Acidentes custam 3% do PIB

Segundo Carlos Lopes, diretor da unidade de Prevenção e Segurança Rodoviária da ANSR, “as lesões permanentes são uma preocupação muito grande, não só pelo impacto que têm na vida das pessoas, que é muito significativo, mas também a nível económico, porque estas vítimas representam encargos na Segurança Social, no SNS – e até devia existir uma estrutura mais organizada para apoiar vítimas e familiares”. Só em 2019, os acidentes rodoviários em Portugal atingiram um custo económico e social estimado em 6423 milhões de euros, “é 3,03% do PIB desse ano, é brutal”. “O que mostra que a segurança rodoviária não é uma despesa, é um investimento. Cada euro gasto na prevenção pode ter um retorno gigante.” E quando as vítimas são jovens, o impacto é ainda mais relevante. “De uma maneira muito fria, não é igual morrer na estrada uma pessoa com 80 anos ou uma pessoa com 18, o número de anos perdidos expectáveis é muito diferente.”

A ANSR ainda está a trabalhar na estratégia Visão Zero 2030, que faz uma abordagem mais ampla à segurança rodoviária. No passado, havia um grande enfoque no comportamento dos condutores. “E esta nova estratégia aborda todo o sistema, o condutor, as infraestruturas, os veículos, os peões, o socorro às vítimas, o objetivo é que todo o sistema esteja construído para ser mais seguro, para reduzir os riscos de mortes e feridos graves.” Carlos Lopes exemplifica com estradas que “convoquem a praticar a velocidade adequada, as pessoas não tendem a adotar velocidades em que se sintam inseguras, mas a leitura que fazem da realidade nem sempre é a correta e isso é intuído pela forma como a estrada está desenhada”. Ou seja, se “dentro de uma localidade, onde acontecem mais mortes, há uma via que tem um perfil de autoestrada, mesmo que o limite seja 50, as pessoas não vão a essa velocidade”. E a velocidade, diz, é a mãe de todos os problemas de segurança rodoviária, além do álcool.

“Tudo isto não retira a necessidade de os condutores adotarem comportamentos seguros, da educação e da fiscalização como método dissuasor, com equipamentos de radar fixos, que tenham um efeito duradouro no tempo”, avisa. Mas há uma certeza, admite, “não tem havido uma evolução positiva na sinistralidade” e ainda há muito caminho a fazer.

O desporto, reencontrar a vida

Pedro Valente abre a porta de casa, um pequeno T2 em Pedrouços, onde mora com a namorada (que conheceu já depois do acidente), de sorriso tímido. É ágil e a prova está à vista no palmarés desportivo que mora na prateleira junto à televisão, espécie de montra de tudo o que foi capaz de fazer com tão pouco. As tatuagens cobrem-lhe os braços e, jura, também o tronco. Tem 24 anos, agarrou-se ao desporto com unhas e dentes quando se viu paraplégico. A resposta é instantânea: foi há dois anos, a 11 de junho, que passou a viver sentado numa cadeira de rodas. Tinha saído do trabalho – era mecânico -, e a irmã pediu-lhe para levar uma amiga a andar de mota. “Ela nunca tinha andado. Ia na Circunvalação e estava muito trânsito. Não queria passar pelo meio para não a assustar, então virei à direita e, num cruzamento, uma senhora não parou no STOP e abalroou-me.” Foi projetado oito metros, caiu inconsciente. A amiga da irmã só sofreu arranhões.

Pedro Valente ficou paraplégico há dois anos num acidente de mota. Não pôde voltar ao antigo emprego de mecânico e agarrou-se ao desporto com unhas e dentes
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Uma jornada de internamentos, do hospital de São João para Valongo. A primeira vez em que se sentou numa cadeira de rodas, depois de semanas deitado, confinado a uma cama, chorou. “E quando tomei um banho, senti a água a correr, foi uma emoção, aí é que se dá o valor.” Levou um mês a cair na realidade, a mãe (Pedro é adotado) é ortopedista e pintou-lhe o cenário.

Passou noites sem dormir, a querer mexer uma perna e o corpo a não reagir, “tinha ataques de pânico”. Esteve sete meses no CRN de Valadares, com fisioterapia de manhã à noite, “até fazia mais se pudesse”. Fátima Gandarez, médica fisiatra que o acompanhou, explica que se trata de “uma lesão na coluna lombar, uma paraplegia, que evoluiu para capacidade de marcha para curtas distâncias”. Sim, Pedro já se põe de pé e dá alguns passos de muletas. A cada evolução, corre a ligar à mãe. A força de vontade sobrenatural ajudou na recuperação, já é autónomo.

Aos 24 anos, Pedro Valente sonha ser atleta profissional e chegar aos Jogos Paralímpicos de 2028, em Los Angeles, no ciclismo
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O emprego de mecânico ficou memória de outros tempos. “Até porque também tive uma lesão no ombro, o braço direito é funcional, mas o esquerdo pouco faz.” Virou-se para o desporto. Faz andebol e rugby adaptados (campeão nacional mais do que uma vez nas duas modalidades), paraciclismo (tem duas medalhas) e voltou a uma paixão antiga, o karting. Foi piloto antes do acidente, chegou a competir, voltou agora às corridas num kart adaptado. Ainda dá palestras de superação, vai a escolas de bairros.

A história de vida é um ziguezague duro, de um bebé abandonado pela mãe prostituta e adotado aos três anos, de um adolescente perdido que frequentava os bairros do Cerco e da Pasteleira, de um jovem que tem um filho de três anos, Miguel, de uma anterior relação e com o qual não tem contacto, “a mãe não aceitou a separação”, um desgosto. E de um acidente que o podia ter atirado ao chão, mas não. Faz fisioterapia em casa, faz ginásio. Vive do dinheiro do seguro (que também lhe financiou as duas cadeiras de rodas e a bicicleta adaptada), a condutora do carro foi considerada culpada, nunca lhe ligou. Mas foca-se no objetivo maior: ir aos Jogos Paralímpicos de 2028, em Los Angeles, no ciclismo.

Pedro Valente também pratica andebol e rugby adaptados, além do karting
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A sorte de Pedro, a de ser indemnizado pela seguradora, não é a de todos. E Mário Alves, presidente da Estrada Viva, uma rede de associações, lembra isso mesmo, “muitas vezes, ficam lesões para a vida inteira, que arruinam economicamente uma família, e este é um assunto esquecido”. Filomena Araújo, da associação GARE, põe o dedo na ferida, “há atenção à recuperação física, mas o apoio psicossocial falha muito nestas situações e é premente, porque a sinistralidade rodoviária acontece todos os dias e vai continuar a acontecer, e se a pessoa fica com sequelas, é frequente perder o emprego, ficar dependente de outros”. Mesmo na questão dos seguros, “quando há crime rodoviário, muitas vezes esperam-se anos pelas decisões dos tribunais”. E o apoio não falha só para quem fica com lesões para a vida, falha também “em situações em que há um acidente onde um familiar é vítima mortal e não se consegue uma consulta no SNS para apoio psicológico continuado em tempo útil”.

Há 35 anos numa cadeira de rodas

A realidade em 1988 era ainda mais precária, Etelvina Vieira nunca sequer passou por um Centro de Reabilitação – e só existia o de Alcoitão à época. Bina, como toda a gente a trata, não parece guardar mágoas, tem 52 anos, está resolvida. Chega de carro ao Clube Naval Infante Dom Henrique, em Gondomar, onde pratica remo, à beira do Douro. Pede só que a ajudemos com a cadeira de rodas, que está na bagageira. As mãos estão carregadas de bolhas dos treinos para o Campeonato Nacional de Velocidade, em Montemor-o-Velho, neste domingo. Já está habituada.

É conhecida por Bina e já lá vão 35 anos desde que ficou paraplégica, aos 17, num acidente de mota onde seguia à pendura
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

É paraplégica – com uma lesão cervical, quase tetraplegia – desde os 17. Foi aí que o mundo de uma adolescente se desmoronou, se desfez em pedaços que levou anos a reconstruir. “Foi em Vila Nova de Gaia, na Estrada Nacional 222. Era 19 de junho, ia de mota à pendura com o meu namorado, estávamos a voltar da praia ao final da tarde, não sei bem o que aconteceu, disseram-me que batemos numa carrinha num cruzamento, quando acordei no chão já tudo tinha acontecido.” Nunca tinha visto o pai chorar, viu nesse dia no hospital. Fez-lhe uma promessa. “Vou ficar boa. Não consegui cumprir”, lamenta. Aos 17 anos, quando ouvia que tinha partido a coluna, que não voltaria a andar, nunca pensou ser para o resto da vida. Nove meses internada. “O tempo vai passando e não ficas boa. No hospital és igual aos outros, o choque é quando chegas a casa e a casa não está preparada, a família não está, eu não estou. De repente, perdi tudo. Passou-me muita coisa má pela cabeça.”

Etelvina Vieira é autónoma hoje, vive sozinha, conduz, trabalha
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O namorado da altura (sofreu um traumatismo craniano, recuperou) afastou-se. E Bina passou a depender dos pais, dos irmãos – tem quatro, todos mais velhos. Chorava e chorava. Teve de aprender a andar sentada, na altura do acidente já trabalhava numa fábrica de calçado (deixara a escola aos 14), queria muito voltar, mas não tinha como. “Costumo dizer que só tenho dois palmos de corpo para sustentar tudo o resto, um de peito e outro de cabeça”, desanuvia. Quatro anos de luto enfiada em casa, a arrumar fantasmas, a curar feridas, a reaprender a viver, até decidir voltar a estudar. Uma formação de assistente de escritório no Centro de Reabilitação Profissional de Gaia, orientado para pessoas com deficiência, um estágio no mesmo centro e ainda hoje lá trabalha. “Fui contratada em 1995, sou técnica administrativa. Entretanto, fiz o secundário pelas Novas Oportunidades, tirei a carta de condução.” Contra a vontade do pai, “olha agora uma pessoa em cadeira de rodas vai trabalhar e conduzir, à época era impensável”. No trabalho, ainda conheceu o ex-marido, casou, dez anos de vida a dois até à separação. Vive sozinha desde 2004, numa casa totalmente adaptada, “autonomia total”.

Bina pratica remo, rugby, andebol (está há sete anos na seleção)
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O desporto, isso, foi uma brincadeira que virou séria. Conheceu a Associação Portuguesa de Deficientes do Porto, aventurou-se. Começou pelo basquetebol e pelo atletismo. Também fez danças de salão. Depois veio o andebol – está há sete anos na Seleção Portuguesa de Andebol em Cadeira de Rodas -, já foi campeã do Mundo e da Europa. Não foi coisa que alguma vez imaginasse, representar o país, ouvir o hino e emocionar-se. Juntou-se o remo, o rugby, já se fez campeã nacional pelas duas modalidades. Os dias todos preenchidos, “às vezes gostava que o dia tivesse 48 horas”. Passa uma jovem de bicicleta, que grita “ó Bina, tu és uma estrela”. Ela sorri. Talvez seja mesmo. E cita a romancista brasileira Tati Bernardi. “Não vou dizer que é fácil, e que nunca me deu vontade de desistir, mas vale muito mais a pena continuar.”

6423 milhões de euros, é o custo económico e social estimado que os acidentes rodoviários em Portugal atingiram, em 2019. Este valor corresponde a 3% do PIB do mesmo ano

2436 é o número de feridos graves registados em 2022, segundo o mais recente relatório da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária