Porque descarregamos em quem mais gostamos?

Quanto mais perto, mais tolerantes a desabafos e frustrações. Quanto mais próximo, mais compreensivo

A rolha salta, a tampa explode, o coração sai pela boca, a angústia dispara. É ventilação emocional. E quem está mais perto, é quem ouve. Por uma questão de confiança. Mas, atenção, este modo de despejar o que se sente, sem dó nem piedade, não tem apenas um lado. Não é caminho de sentido único.

Parece uma inevitabilidade, como se não pudesse ser de outra forma. Mais fácil, mais oportuno, mais conveniente. Despejar o que se sente em quem mais se ama, em quem mais se gosta, em quem está sempre ali ao lado. As emoções embrulhadas em palavras saltam pela boca, sem filtros e sem vírgulas, sem regras ou etiquetas, sem travões ou paredes. Quem nunca? Por que razões isso acontece e de que maneiras? Há limites ou não há restrições? Há momentos e circunstâncias para explodir? Ou, pelo contrário, não há ocasiões certas para derramar o que enraivece a alma e magoa o coração?

A cultura no início e no fim de tudo. Culturalmente, aprende-se a esconder emoções, sobretudo as mais vulneráveis. Como se fosse errado mostrar a tristeza, como se fosse embaraçoso espalhar o amor. “Quando há uma boa vinculação e comunicação com as pessoas de quem gostamos, é mais fácil expressar emoções e sentimentos, estamos mais à vontade para sermos nós mesmos, há menos risco de não validação do que sentimos e desaprovação”, constata Fernando Lima Magalhães, psicólogo clínico, autor do livro “Como posso ser feliz – Sim, é possível!”. “Sentimos que estamos num lugar ‘seguro’ para as nossas emoções, afinal é isto que gostamos num bom relacionamento, que as nossas emoções sejam compreendidas”, acrescenta.

Os alvos não mudam muito, quanto mais próximos, mais sujeitos a tudo o que possa acontecer. Nas alegrias e nas tristezas, faça chuva ou faça sol. Catarina Lucas, psicóloga, psicoterapeuta e terapeuta de casal, fala dos destinatários e por que razão são os escolhidos. “A nossa família e amigos são a nossa maior fonte de suporte, logo, os únicos com potencial para nos escutarem, suportarem e atenderem às nossas frustrações e dias menos bons”, refere. “O ser humano precisa fazer ventilação emocional, sendo esta uma estratégia de regulação emocional”, adianta.

Fernando Lima Magalhães segue essa visão. “É nas relações mais próximas, de amizade ou família, que tendemos a ser mais agressivos e com quem mais amamos.” As razões parecem óbvias, naturais. “Porque estamos mais à vontade, sentimos que há poucos limites para expressarmos o que sentimos e, por vezes, o excesso de confiança leva-nos a descarregar as emoções desagradáveis. Queremos a validação do que sentimos e a confirmação de pertença, que os outros compreendam as nossas dificuldades”, sustenta o psicólogo clínico.

Família, irmãos, filhos, pais, maridos e mulheres, amigos. Todos à mão de semear, é para o que der e vier. Aquele dia que correu muito mal e não se aguenta sem rebentar, aquela certa pessoa que não há maneira de engolir, as opiniões que andam atravessadas na garganta há algum tempo e precisam vir cá para fora. Aquela vontade incontrolável de descarregar e ninguém escapa. Ninguém é como quem diz. Há limites ou devia haver. “Não podemos fazer isto com qualquer pessoa, com desconhecidos ou colegas de trabalho. Apenas o conseguimos fazer com quem confiamos e com aqueles em quem sentimos segurança quanto ao não abandono ou rejeição”, sublinha Catarina Lucas. Descarregar toda a raiva num chefe não é boa ideia. O despedimento será a consequência mais imediata, mais previsível. Logo, não será o mais ajustado ou adequado.

Frustrações e desalentos atacam os mais próximos quase como se um saco de boxe se tratasse. É uma questão de confiança e de segurança. Quem ama escuta, quem ama aguenta, quem ama não vira as costas, quem ama aceita e tolera. “Expormo-nos nessa vulnerabilidade, mostrarmos os sentimentos, mesmo sendo esses sentimentos a raiva ou a frustração, faz de nós mais humanos e permite que nos liguemos ao outro”, diz Catarina Lucas. O que não mata, fortalece. “É também na imperfeição que somos amados. Ter um comportamento politicamente correto, mas que não gera relações profundas, também não é desejável. É preferível errar e falhar mas ter relações mais próximas, profundas e de amor, do que estarmos sempre bem, sorridentes, mas sempre em esforço e a esconder o que sentimos”, considera a psicóloga e psicoterapeuta.

Raiva, frustrações, reciprocidade

Quanto mais perto, mais tolerantes a desabafos e frustrações. Quanto mais próximo, mais compreensivo. É também uma questão de validação, de conforto, de diminuir a angústia, de esvaziar o sofrimento. De ficar mais leve. “Um ato de confiança, apesar de tudo”, define Catarina Lucas. Uma âncora sempre ali, para o que der e vier. “Até quando cometemos os maiores erros precisamos de amor e de alguém que nos oiça sem julgamento.” Caso contrário, perde-se o chão, o desalento instala-se.

Há dois cenários opostos que mexem com sentimentos e relações. “Quando se mantém com alguém uma relação pautada pela insegurança e pelo medo da perda e do abandono, tende a evitar-se qualquer tipo de confronto, procurando agradar e preservar a relação”, descreve Rute Agulhas, psicóloga clínica, psicoterapeuta, terapeuta familiar. Este é um, há outro. “Quando a pessoa se sente segura numa relação, antecipando uma aceitação por parte do outro, é mais provável que ‘descarregue’, no sentido de partilhar de modo mais genuíno aquilo que pensa, sente e quer.” Se há confiança e proximidade, espera-se, à partida, um feedback mais honesto e genuíno – é o mais expectável na maior parte dessas situações.

Quem escuta também tem sentimentos. “Podemos sentir-nos tão seguros na relação que podemos passar dos limites e involuntariamente magoar a outra pessoa”, aponta Fernando Lima Magalhães. Vai tudo à frente. “Nas relações íntimas pode acontecer agressividade pela necessidade excessiva de controlo ou ciúmes, medo de rejeição e desconexão, vergonha, ou devido aos estilos de vinculação.” O psicólogo exemplifica. “Um estilo de apego inseguro/evitante assusta-se quando a relação é muito próxima, levando a reações negativas ou a descarregar as emoções mais negativas porque é a pessoa mais próxima e com quem temos mais à vontade.”

Há vários lados da mesma questão. Segundo Fernando Lima Magalhães, “numa relação mais profunda, os nossos medos mais antigos podem ser ativados, como o receio de perder essa pessoa, ou medo de rejeição e desaprovação.” E, por outro lado, há coisas que acontecem. “Podemos reagir com agressividade e ‘protestar’ contra a pessoa, ao mesmo tempo que a não queremos perder; ou ter uma vozinha crítica que tende a sabotar a relação de quem gosta de nós”, explica o psicólogo clínico.

Amor e confiança? Ou fel e raiva? Pode ser isso tudo e por vários motivos, segundo Fernando Lima Magalhães. “Numa relação franca e aberta, sentimos mais liberdade e menos inibição, o que pode levar a ferir o(a) parceiro(a). Podemos ter medos ou mágoas antigas, que podem ser ativadas numa relação”, comenta. O medo de deixar de ser amado pode gerar sentimentos agressivos. O receio de desaprovação pode desarrumar as emoções. Tudo isso, realça, “impele a mostrar raiva ou emoções desagradáveis”. “A crença profunda de acreditar que não é digno de ser amado torna a intimidade desconfortável, levando a reações de despejar o fel; ou podemos ter altas expectativas sobre como a outra pessoa se deve comportar e ‘protestamos’ quando estas exigências não são cumpridas”, analisa.

Um dia de um lado, noutro dia do outro. O amor não tem apenas um sentido. Catarina Lucas destaca que esses “balões de oxigénio” são importantes, para não abafar sem ar, todavia, não pode ser sempre para o mesmo lado, na mesma direção. “Se hoje as pessoas estão lá para nos suportar, amanhã deverá ocorrer o oposto e sermos nós a estar lá para suportar o outro.” Essa ventilação não pode ser constante, repetitiva, agressiva, crítica ao limite máximo da razoabilidade. Evitar a vitimização também é essencial, sob pena de afastar quem está próximo. “Para tudo existe um equilíbrio e se precisamos destes espaços para ventilar e nos sentirmos acolhidos, por outro lado, é preciso reciprocidade para que as relações se mantenham e cumpram a sua função.”

O que fazer de um lado e do outro? “Equilibrar as ‘queixas’ com atos positivos, mas também é importante pedirmos feedback sobre como está a ‘temperatura’ da relação. Podemos não perceber que ultrapassamos os limites com outra pessoa, perguntar algo como ‘estou-te a chatear muito com isto?…”, aconselha Fernando Lima Magalhães. O ideal, segundo o psicólogo clínico, é aceitar a vulnerabilidade para não entrar numa luta contra os sentimentos. Treinar o otimismo e ter hábitos construtivos para as relações também ajuda. “Assim prevenimos o ciclo de negatividade.”

Há formas e formas de descarregar. A maneira como se descarrega importa, segundo Rute Agulhas. “A outra pessoa, por mais próxima que seja, merece ser tratada com respeito.” Da mesma forma, “é importante que as relações sejam pautadas pela reciprocidade, o que equivale a dizer que é importante que ambas possam sentir abertura para desabafar e partilhar”, completa.

Há, apesar de tudo, com toda a raiva e toda a zanga que remexem as entranhas, pontos de ordem, fronteiras, limites. Catarina Lucas deixa um alerta que convém não esquecer. “Lembremo-nos também que é nos contextos próximos que sentimos maiores mágoas, exatamente porque é naqueles que depositamos as maiores expectativas. Quanto mais significativas as relações forem, maior a mágoa em caso de conflito”, salienta. E ponto final.