“Pôr do Sol”. A série que criou uma banda e terminará em filme

Jesus Quisto, o grupo musical, fez uma música e um videoclipe de apoio à seleção nacional de futebol em 2022, abriu a final do último Festival da Canção há coisa de duas semanas, agora tem concertos nos coliseus (é mais um espetáculo, a bem dizer). Sai da ficção e entra na realidade. “Pôr do Sol: o mistério do colar de São Cajó” (sim, esse mesmo, que está na família Bourbon de Linhaça há mais de 3500 anos) estreia em agosto. A metanovela acabará assim, em formato cinematográfico (e ponto final). O trio criativo fala desta aventura, do processo e do sucesso (inesperado, como normalmente acontece).

À primeira temporada vai parar à Netflix. No streaming da RTP, faz 1,2 milhões de espectadores, mais do que muitas telenovelas (uma viragem na forma de encarar audiências e perceber o público). É a primeira série pirateada por gente que quer ver os últimos cinco episódios da segunda temporada e resolve atacar os servidores da RTP Play. O jornal britânico “The Guardian” escreve sobre Jesus Quisto, a banda, a propósito da canção de apoio à seleção nacional de futebol “Portugals (Let’s win the victories)”, com videoclipe à altura, composta para o Mundial de 2022, apresentada pelas ruas de Lisboa num autocarro descapotável antes de a bola rolar no Catar. Com esta música, que junta Ronaldo, Amália, Eusébio, saudade, bacalhau e “many empaites” na mesma letra, como é que Portugal não ganhou o Mundial?, questionou, com graça, o jornal. São os emojis, as compilações de piadas no YouTube, entrevistas e convites para aqui e para ali. “Pôr do Sol”. Esta série ganhou vida própria.

Toda a história escancarada na TV. A herdade Pôr do Sol da família Bourbon de Linhaça, as gémeas separadas à nascença (e que, afinal, são trigémeas e uma é ceguinha), o amor proibido entre o criado e a patroa, os bons e os maus, os ricos e os pobres, os tiques dos privilegiados, as amarguras dos remediados, um vilão, amores não correspondidos, a inveja, o ciúme, o mistério, a traição, e um casamento, claro. Todos os clichés de uma novela com diálogos carregados de humor. E ainda um cavalo mundial de corrida que corre para trás, cerejas com sabor a gambas, a igreja de nosso senhor do coisinho, um músico vegan, uma tentativa de homicídio com vinho e melancia, o pai que proíbe o filho de comer batatas fritas de pacote (filho ansioso por ter 35 anos para ser autónomo, fumar no quarto, ir à Madeira), o cocó azul-piscina, a dark web. E Toy, o cantor que dá voz à canção do genérico, letra de apenas três palavras: pôr do sol. Dezasseis episódios na primeira temporada exibida em agosto de 2021 e mais 20 na segunda em agosto de 2022. A série explodiu, um fenómeno, um sucesso inesperado, que ninguém contava, nem mesmo o trio criativo. Manuel Pureza, o realizador e produtor. Humberto Cardoso Dias, o argumentista. Rui Melo, o ator e diretor musical.

(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

“Tínhamos a noção de que estávamos a fazer uma coisa diferente, diferente para melhor, esperávamos nós. Raramente se tem certezas do sucesso de alguma coisa, raramente”, diz Henrique Cardoso Dias. A génese é honesta e o pressuposto básico, trabalhar em equipa, divertir quem faz, descreve Manuel Pureza. “Primeiro que tudo, gostamos muito uns dos outros – e não é nada uma onda de prateleira de autoajuda, não é nada disso. Acho que há uma honestidade entre nós os quatro (há aqui uma quarta pessoa que manda um bocadinho na parte financeira das nossas ideias), que se traduziu num confluir de todos os ingredientes ideais para que as pessoas gostassem – podiam não ter gostado”, conta o realizador. Andreia Esteves, produtora da Coyote Vadio, é o quarto elemento.

Rui Melo fala em critério. “É muito difícil sermos criteriosos sem beliscar, às vezes, os egos individuais, mas nós conseguimos ultrapassar isso. Quando alguém surge com uma ideia, para aplicar seja em que circunstância for, nós os quatro não temos pudor em dizer ‘isso não é muito fixe’, e nenhum de nós fica melindrado. E isso é uma enorme vantagem porque passa a ser critério multiplicado por quatro.” Exigentes consigo, exigentes uns com os outros.

(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

O sucesso, que ninguém contava, acabou por ser uma rampa de lançamento. O salto aconteceu, sem planos, sem rede. E se, de repente, a banda Jesus Quisto fizesse uns concertos? “Era uma cena fixe, a gente ia-se divertir com isso. Produzir, realizar, pôr em prática, se tudo isso diverte, siga”, diz Manuel Pureza. “As coisas surgem não por necessidade, mas porque acontecem assim”, completa. O salto para vários universos acaba por ser natural. “Nós temos ideias que dão para várias plataformas, para várias coisas, para música, para séries, para filmes. Portanto, é normal que nós, juntos, tenhamos ideias que vão para lá do que seja uma série”, explica Henrique Cardoso Dias.

Orgulho e cagufa (#chupaanitta)

Duas temporadas com um elenco habituado a novelas. Gabriela Barros faz três papéis, as trigémeas: Matilde, filha da família Bourbon de Linhaça, Filipa Martins que trabalha uma revista de moda (a “Blaze”) e quer vingança, e Salomé, a última das gémeas a aparecer, é a ceguinha. Marco Delgado é Eduardo, o senhor engenheiro Bourbon de Linhaça, Sofia Sá da Bandeira a esposa, Madalena. Diogo Amaral é Lourenço Paulino e vocalista dos Jesus Quisto, Manuel Cavaco é António Paulino, pai de Lourenço. Carla Andrino é Ivone e Manuel Melo é Tó Mané, casal que vive na Madragoa – “Santas tardes, classe operária” é a saudação habitual de Tó Mané. Noémia Costa, Lourenço Ortigão, José Carlos Pereira, Dalila Carmo, Sofia Aparício, Sandra Faleiro, entre muitos outros, também lá estão. Uma série, uma banda, um filme a caminho. “Pôr do Sol” sai da tela da televisão.

Cena na revista “Blaze”
(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

Jesus Quisto abriram a mais recente final do Festival da Canção, entraram com um sketch, depois subiram ao palco com a canção “For win the festivals”, letra em inglês com algumas palavras em português cantadas em inglês (micose a rimar com litrose não será para todos), acompanhados pelo Coro de Santo Amaro de Oeiras. No último episódio da série, o agente Acácio (Joaquim Nicolau) anuncia à banda que recebeu um convite do Festival da Canção. Euforia completa. E a ficção dá lugar à realidade (muito por teimosia de Manuel Pureza). Jesus Quisto foram mesmo ao Festival da Canção, não como concorrentes, naturalmente.

E agora os coliseus com “Best of Playbacks Live Tour” da banda que tem Instagram com mais de 3500 seguidores e se apresenta como autora dos êxitos “Beavers in love”, “Chupitup”, “Children”, “Portugals”. Há dias, o Instagram apareceu com um vídeo de apoio à banda com depoimentos (divertidos para não destoar) de António Zambujo, Ana Malhoa, Maro, Nelson e Sérgio Rosado, David Carreira, Tiago Bettencourt – com cada um a explicar de 1 a 10 quanto é que os Jesus Quisto mudaram a sua vida. Toy também lá está.

Cinco atores dão corpo à banda que voltou à RTP para abrir o Festival da Canção. Em abril, têm dois concertos a sério
(Foto: Pedro Pina – RTP)

Jimmy (André Pardal), Diogo (Cristóvão Campos), Vera (Madalena Almeida), Lourenço (Diogo Amaral) e Beta (Mafalda Marafusta) vão subir ao palco mais duas vezes, pelo menos. “Bilhetes não sujeitos a receita médica”, garante a banda. O anúncio dos concertos foi feito à maneira nas redes sociais da Coyote Vadio, produtora da série. “É com orgulho e alguma cagufa que os Jesus Quisto anunciam um concerto no Coliseu dos Recreios, dia 1 de abril, e outro no Coliseu do Porto, no dia 20 de abril. Os concertos serão os maiores espetáculos alguma vez vistos por pessoas que saem pouco e terão luzes, fumos e música bastante alta. Para os que acham uma afronta uma banda a fingir atuar nos coliseus, os Jesus Quisto respondem com: ‘DAMA, 20 de dezembro de 2018”. Feito e um remate para Anitta, a cantora brasileira. “Sim, os Jesus Quisto também têm um tour em playback #chupaanitta.”

O trio criativo revela que não será um concerto puro e duro, muito menos cinco atores em cima do palco a reproduzirem músicas e a fazerem playback. Haverá vídeos, haverá conversa. “Os Jesus Quisto têm mensagens que querem passar ao Mundo, vão falar das coisas que os preocupam, a Greta, os microplásticos, consciência social”, anuncia Henrique Cardoso Dias. Uma espécie de Jesus Quisto Talks, comparam. Rui Melo admite uma sova musical, no bom sentido, obviamente, músicas para dançar e cantar com muita energia e diversão à mistura. “Mais do que um concerto, vai ser um espetáculo”, promete o ator. Qual o limite da banda? “O intervalo da Super Bowl”, responde Manuel Pureza.

A tripla criativa durante as filmagens. Manuel Pureza, Henrique Dias e Rui Melo
(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

Cristóvão Campos é Diogo, o guitarrista, o agarrado da banda, metido nas drogas, viciado nas raspadinhas (fora da série, chegou a ser abordado num café por alguém que lhe pediu para raspar uma para ver se dava sorte). O convite para participar na série entusiasmou-o, o guião cativou-o. Não foi só isso. “É uma boa forma de gozar comigo próprio, o que é bom”, afirma. O que ali estava, já lhe tinha acontecido em outras novelas. O contexto era outro, satirizar, não parodiar, não retirar valor, reconhecer. Rir das coisas. “O tom e a linguagem do ‘Pôr do Sol’ foram uma coisa tão única, a uma única voz e tão coesa, o que é muito raro.” O ator não esperava o impacto. “Pensava que interessaria a um nicho, que não seria transversal.” Não foi bem assim para contentamento de todos.

Os ensaios para os coliseus começaram. Cristóvão que é Diogo vai-se preparando e os concertos serão uma festa. “Uma comemoração do ‘Pôr do Sol’ e dos Jesus Quisto e das músicas dentro da série.” “Não saímos da mesma linha, o que é interessante”, conclui.

Clichés, códigos, critérios

Terceira temporada? Não. Não vai acontecer. Mesmo depois do feedback, do êxito, do sucesso na TV (e fora dela), dos pedidos dos fãs. Manuel Pureza vai direto ao assunto. “Quisemos mesmo que as pessoas tivessem saudades.” “Uma das marcas de identidade deste projeto foi fugir sempre à ideia de esgotar a piada. No dia em que alguém dissesse ‘isto já não tem piada’ seríamos nós os primeiros a sofrer com isso e o projeto em si”, repara. “Pôr do Sol” acaba com o filme “Pôr do Sol: o mistério do Colar de São Cajó”. “Foi um namoro lento nosso, de nós os quatro, para tentar largar em apoteose”, assume o realizador.

A série chega a ter mais audiência do que as novelas. O filme fecha em apoteose esta aventura
(Foto: Pedro Pina – RTP)

Por enquanto, tudo em segredo, nada se revela, nem elenco, se será exatamente o mesmo da série, muito menos a história, e se finalmente se deslindará o mistério do famoso colar de São Cajó (na família Bourbon de Linhaça há mais de 3500 anos). Será mais ou menos um “Pôr do Sol”, em ácidos, revelação do argumentista. Rui Melo confessa que o guião é inacreditável, que se fartou de chorar a rir. Só mais uma revelação. “Não há Pôr do Sol sem Toy”, realça Manuel Pureza, o realizador que quer que todas as sinergias – entre imagem, som, música, realização, atores, texto, mood, tom – funcionem, exigências de que a tripla criativa não abre mão. “Não é um episódio para cinema, é um filme”, avisa o realizador. “Tem de ser a mais filigrana que se consegue”, acrescenta.

Voltemos à série, ao início de tudo. Reuniões por Zoom, escrever uma novela sobre uma família do campo que tem um cavalo que corre para trás, o sumo estava aqui. Avança-se para a estrutura, o arco narrativo, polvilha-se com clichés a narrativa construída. “Foi uma coisa muito burilada, a RTP deu tempo, o que ajudou bastante”, recorda Henrique Dias Cardoso. O argumentista chama-lhe uma metanovela, não é bem uma paródia às novelas, não é propriamente gozar com este género televisivo. “Levamos a sério a novela, uma paródia podia fazer com que a linha narrativa, por exemplo, não fosse coerente. Nós somos coerentes em tudo, há absurdos lá dentro, mas somos coerentes.”

(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

Os códigos da novela, a mesma lógica, as marcações, a própria realização. “Os atores com experiência em novela entendem os códigos da novela”, lembra Rui Melo que vestiu o papel do vilão Simão, um Bourbon de Linhaça, irmão do senhor engenheiro, sempre de copo de uísque na mão que parte em todas as cenas. O elenco estava sedento por uma coisa assim. “Satirizar-me a mim próprio, mas fazendo muito a sério. E esse, para mim, foi o grande mérito do ‘Pôr do Sol’, é que a forma como foi executado, do ponto de vista da realização, da captação de áudio, e da forma como foi representado, foi feito com critério. Sim senhor, o texto é absurdo, mas vamos dizer que um cavalo corre para trás da mesma forma e com a mesma carga dramática que dizemos o teu pai morreu – é a mesma coisa.” “Um cavalo a correr para trás para aquela família, naquele contexto, um cavalo que custou sete mil milhões de euros, é um drama, nunca pode ser uma piada. E isso torna a coisa interessante, no mínimo”, comenta o ator. O detalhe foi, na verdade, até à palavra. “A coisa foi criteriosa a esse nível, às vezes era uma palavra, em vez de dizer isto, se não podia dizer antes aquilo”, salienta Rui Melo. A partilha foi constante, a atenção também. “Estarmos todos atentos a todos pormenores foi fundamental”, observa Henriques Dias Cardoso.

Manuel Pureza confessa que nunca sentiu um elenco tão nervoso para acertar num ponto bastante preciso e que faria toda a diferença. “Acertar naquela linha muito ténue que não está acima e, portanto, não é uma bonecada, e não está abaixo onde não se passa nada – aquele novo realismo/naturalismo que é de ausência de expressão, ausência de intenção, ausência de motivação, uma espécie de bolha. O que fizemos aqui foi uma zona muito específica, muito difícil que parte de uma exigência em acertar, lá está, nesse diapasão certeiro de não fazer graça. O que existe e a proposta da realização já são suficientes para que o ator ou a atriz brilhem.” “Já que estamos a navegar num mar de clichés, mais vale que estas pessoas sejam credíveis”, sublinha o realizador. Rita Tristão, diretora de atores, sempre dois ou três metros atrás de cada cena, foi essencial. Não houve berros, ataques de riso que impossibilitassem gravações. Houve muitos bons momentos e diversão ao redor, antes e depois de as máquinas se desligarem.

(Foto: Pedro Sadio – Coyote Vadio)

A equipa criativa é prática a colocar tudo a funcionar, a acrescentar camadas, a descascar a cebola da narrativa. E tem uma premissa bem assente na terra. “Não vamos chuchar desta teta o máximo que conseguirmos. O nosso critério é: se não resulta é para cortar.” E mais nada. Talvez aqui também esteja o sucesso da série.