Pessoas trans. A revolução ainda está por chegar

Discriminação no mercado de trabalho e no acesso à habitação, dificuldades nas escolas e nos cuidados de saúde, uma representatividade que ainda é miragem. As dores, os desafios e as lutas de uma comunidade que continua a ser “altamente ostracizada e incompreendida”.

Maria João Vaz passou mais de 50 anos às voltas com as contradições da sua própria existência. “Vivi sempre sem saber quem era. Sentia que havia uma incongruência, mas não sabia o que se passava comigo.” Hoje, a atriz que ganhou um protagonismo-relâmpago graças à participação de última hora na peça “Tudo sobre a minha mãe” (lá iremos), não tem dúvidas de que foi sempre uma mulher. Tanto que, com cinco anos, já gostava de trocar de sapatos com as meninas. A paixão não esmoreceu, fez-se apenas mais só. Na adolescência, continuava a vestir tudo o que fosse roupa feminina, mas passou a fazê-lo às escondidas de todos. E assim se foi movendo numa existência solitária, com poucos ou nenhuns amigos, uma namoradinha aqui e ali. Mas a vida seguiu. Casou, teve três filhas, dedicou-se à representação e às dobragens, teve papéis em várias novelas, protagonizou até um icónico anúncio de uma empresa de telecomunicações que muitos ainda hoje recordarão. “‘Tô xim?’ Um momento. É para mim”, dizia então João Vaz, na pele de pastor. “Mas, às escondidas, vivia como mulher.” E então, algures em 2018, teve a sua epifania, como lhe chama. Dois anos depois, em plena pandemia, fez, por fim, o “coming out”, através de uma entrevista a um jornal regional. Esteve também num programa televisivo, para relatar o caminho que a levou até à assunção pública da sua identidade de género. Para “dar visibilidade” às pessoas trans.

Mas se, a título pessoal, o momento representou uma libertação, um alargar de horizontes, a nível profissional os caminhos têm-se estreitado. O currículo recente resume-se em poucas linhas. Umas dobragens para a Disney, uma participação em vídeo para o Teatro Nacional D. Maria II, uma pequena participação numa série televisiva, outra numa curta-metragem, um papel na novela “Festa é festa”, da TVI, outro no espetáculo “Sagração da primavera”, do Teatro Praga. Oportunidades tão escassas que não lhe deixaram alternativa a procurar trabalho fora da área. Foi estafeta numa empresa de takeaway (mas teve um acidente de mota e rompeu os ligamentos), vigilante em museus, trabalhou por duas vezes no Burger King. Pelo meio, viveu um episódio que a marcou particularmente: foi convidada por uma produtora para representar, numa novela, o papel de uma personagem trans. “Seria um projeto de longa duração em que iam escrever um papel para mim, com que me identificava, em que havia um ‘coming out’, em que havia filhas.” Maria João exultou. “Fiquei muito contente. Até porque precisava mesmo de trabalhar. Disseram-me que faltava apenas a aprovação da estação [em que iria passar a novela].” Mas esta nunca chegou. “Contactaram-me da produtora a dizer que a direção do canal tinha recusado. Não sei porquê. Sei que havia uma possibilidade de tornar visível a causa e foi recusada.” E assim continuou à míngua de trabalho.

A atriz não esconde o inconformismo. Mesmo que tenha dificuldade em fazer uma leitura simplista. “Não sei se é por ser trans, se é por uma questão geracional, porque a maior parte dos anúncios são para jovens. Mas sei que há pessoas que estão sempre a trabalhar e eu estou no deserto. Acho que em parte é por não me conseguirem interpretar, por não conhecerem a realidade trans. Não há interesse, não há solidariedade. Recebo muitas mensagens solidárias, até de dirigentes de grupos de teatro. Mas não basta agitar a bandeirinha LGBTI+ para ficar bem. Não precisamos de palmadinhas nas costas, precisamos de convites.” Há pouco mais de duas semanas, recebeu um inesperado. Era uma sexta-feira de manhã e Maria João tomava tranquilamente o pequeno-almoço quando lhe ligaram da produção da peça “Tudo sobre a minha mãe” (uma adaptação do filme homónimo Pedro Almodóvar, com encenação de Daniel Gorjão, a partir de um texto de Samuel Adamson) a convidá-la para representar o papel de Lola, personagem transexual. Curiosamente, a atriz acabara de ver nas redes sociais o que se passara no Teatro São Luiz, em Lisboa.

O espetáculo foi interrompido por Keyla Brasil, “atriz e prostituta”, nas suas próprias palavras. Envergando apenas uma tanga, a ativista subiu ao palco em protesto, defendendo que o ator André Patrício não deveria interpretar Lola (personagem trans), por ser cisgénero (alguém que se identifica com o seu género de nascença, por oposição a transgénero). “Transfake [termo referente à interpretação de personagens transgénero por atores e atrizes cis]! Desce do palco! Tenha respeito por este lugar”, gritou, com vários ativistas na plateia a juntarem-se ao protesto. A produção prontamente baixou a cortina, o espetáculo já não foi retomado naquele dia, mas a narrativa esteve longe de terminar ali. Nos dias que se seguiram, foi aceso o debate sobre as nuances e a razoabilidade de um protesto com tais contornos. Entre argumentos antagónicos e inflamados (lá chegaremos, mais para o final), a discussão teve o condão de convocar uma reflexão sobre as dificuldades diárias com que se deparam as pessoas trans – o estigma, a violência, a gritante falta de representatividade em quase todas as esferas da sociedade, as dificuldades prementes no acesso ao mercado laboral, à habitação, à formação, aos próprios cuidados de saúde.

O “Estudo nacional sobre necessidades das pessoas LGBTI e sobre a discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais”, apresentado em abril do ano passado, é particularmente elucidativo a este propósito. “Dentro da sigla LGBTI+, as pessoas trans – e sobretudo as mulheres trans – foram identificadas como as mais discriminadas, por força da conjugação do sexismo com o cisgenderismo”, pode ler-se no capítulo dedicado às conclusões. O relatório “Trans Discrimination in Europe”, publicado em 2019 pela TGEU, organização de defesa dos direitos das pessoas trans da União Europeia, esmiúça a questão. Assente em dados de um inquérito da Fundamental Rights Agency, difundido por associações ativistas, o documento relata que, na Europa, mais de um terço das pessoas trans sente discriminação em serviços de saúde, mais de metade no sistema educativo, um terço já foi vítima de assédio (incluindo ofensas e ameaças). O relatório conclui ainda que, quanto mais abertamente as pessoas trans assumem a sua identidade, maior é a probabilidade de serem vítimas de discriminação e assédio. Pelo que apenas um terço dos inquiridos a assume. Não espanta, por isso, que os indicadores de saúde mental sejam particularmente preocupantes nesta população, com taxas de comportamentos suicidários acima da média.

Em Portugal, faltam estudos mais aprofundados – “nem sequer sabemos quantas pessoas trans existem em Portugal”, lamentam as associações -, mas há uma dissonância notória, que deve inspirar reflexão. Sandra Saleiro, investigadora do ISCTE que coordenou o tal trabalho apresentado no ano passado sobre as condições das pessoas LGBTI+ em Portugal, aprofunda a questão. “Todos os estudos têm identificado o hiato que existe entre os direitos que foram conquistados, a propósito da questão da identidade de género, e a vida real dessas pessoas. Isto é, apesar de Portugal comparar muito bem com outros países em termos de direitos consagrados na lei [neste parâmetro, é particularmente relevante a segunda Lei da Identidade de Género, aprovada em 2018], quando vamos ver as práticas e os indicadores das condições das pessoas trans, já não há paralelo com esse lugar cimeiro que o país ocupa ao nível dos direitos. Não há uma repercussão direta e proporcional na vida das pessoas.”

Maria João Vaz, a atriz que foi chamada a substituir o ator cis André Patrício na peça “Tudo sobre a minha mãe”, fez o “coming out” já depois dos 50 anos. Desde então, sente-se mais leve, mas arranjar trabalho tem sido difícil. Aproveitou para escrever a sua autobiografia, mas ainda continua à procura de uma editora que a queira publicar
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Jorge Gato, investigador da Faculdade Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto que trabalha amiúde questões relacionadas com a comunidade LGBTI+, reforça este ponto. “Em termos de discriminação, as pessoas trans e intersexo [pessoas que nascem com características sexuais que não se enquadram nas noções binárias tradicionais de corpo masculino ou feminino] estão sistematicamente pior. Seguramente porque, no caso das pessoas LGB, a consciencialização para os seus direitos começou mais cedo.”

“Olha, olha, um travesti”

Mesmo mergulhando no universo trans, as experiências vão divergir em função de múltiplos fatores. Com a carga negativa a acentuar-se no caso de pessoas que não conseguem esconder que são trans. Hélder Bértolo, presidente da Opus Diversidades, deixa o alerta. “Há na sociedade uma ideia de que as pessoas trans, e sobretudo as mulheres trans, têm de parecer cis. Esta expressão de género tem de ser desmistificada. Até porque assemelharem-se mais a pessoas cis implica serem submetidas a mais cirurgias.” Só que o inverso traduz-se, quase sempre, em dificuldades acrescidas, nomeadamente ao nível da inserção no mercado laboral, com a maioria das pessoas trans que são reconhecidas como tal a verem vedado o acesso a trabalhos que impliquem contacto direto com o público. “São quase sempre remetidas para trabalhos em call centers ou armazéns. Ou, em muitos casos, para o trabalho sexual”, realça o dirigente associativo, que insiste: “Chegou a altura de dar voz às próprias pessoas”.

Renata, 41 anos, encaixa neste perfil. Renata não é mesmo o nome dela, mas prefere que lhe chamemos assim para se resguardar. Nasceu no Brasil, veio para Portugal em 2011, fez a transição (como é designado o processo da mudança de género) já tarde – não sabe ao certo a data, mas sabe que foi já em Portugal -, é facilmente percecionada como pessoa trans, é trabalhadora do sexo. No Brasil não, no Brasil fazia espetáculos de transformismo. Depois, veio para o nosso país à procura de outras oportunidades. Acabou a fazer trabalho sexual, no norte do país, e não se lamenta por isso. Até porque foi o dinheiro que fez com esse trabalho que lhe permitiu fazer a transição tão desejada. E porque são raros os episódios de discriminação que recorda. “Costumo falar que sou uma pessoa de sorte. Porque é muito difícil sofrer preconceito nos lugares onde vou. Claro que já aconteceu. Já aconteceu entrar num sítio e uma família negra dizer: ‘Olha olha, um travesti.’ Mas aí eu fui e respondi: ‘Como é possível, pessoas que são vítimas de preconceito a serem preconceituosas’. E a mulher ficou com o garfo parado na boca a olhar para mim. Mas agradeço todos os dias por não sentir essa discriminação. Quando entro nos sítios as pessoas olham, sou uma mulher muito alta, mas rapidamente faço amizade. E aí as pessoas me veem com os outros olhos.” Sabe, no entanto, que não é sempre assim. “Vejo casos em que proíbem mulheres trans de entrar no banheiro feminino, ou em que lhes pedem para sair de certos sítios. Mas felizmente comigo não tem acontecido.”

No entanto, os estudos apontam uma realidade menos risonha. O que foi conduzido por Sandra Saleiro, e apresentado no ano passado, é muito claro a este propósito, referindo que pessoas LGBTI+ sujeitas a discriminação múltipla e interseccional, nomeadamente mulheres trans, trabalhadoras sexuais, racializadas e imigrantes, “encontram-se em situação de acentuada vulnerabilidade”. Se forem toxicodependentes ou seropositivas, ou se se encontrarem em situação administrativa irregular, ainda mais.

É também por ter conhecimento desta realidade que Andreo Gustavo, 34 anos, uma dezena deles vividos já assumidamente como homem, admite encontrar-se numa certa “posição de privilégio” em relação a outras pessoas trans. “Eu sou um homem trans, mas passo bem por homem cis, porque, quando ando na rua, não há nada que diga que sou trans.” Lembra, por isso, que não representa toda a comunidade, diversa e heterogénea nas suas características e especificidades. E mesmo que o percurso escolar e profissional pareça, à primeira vista, imaculado – licenciou-se em Ciências Forenses e Criminais, fez mestrado em Ação Humanitária, chegou a ser consultor de comunicação na UNICEF Nova Iorque para as questões LGBTI+ -, não se livrou, em dados períodos da sua vida, das dores do estigma. “Em 2009, 2010, estava a estudar Direito em Lisboa e na altura, naquela faculdade, ainda era tudo muito ‘quadrado’, havia muitos estereótipos de género e eu comecei a sentir-me muito preso para ser eu próprio. Acabei por mudar para outra faculdade muito mais aberta, onde me sentia bem. Mas esta questão condicionou as minhas escolhas académicas, porque se não fosse isso tinha acabado o curso de Direito.”

Condicionou-lhe também os primeiros passos do percurso laboral. “Quando se começa a transição, passa-se ali por uma fase meia estranha, em que parece que não se é nem carne nem peixe. Nessa fase, eu até tentava não arranjar trabalho para não me expor. Mas a verdade é que já tinha acabado o curso e precisava de trabalhar.” Conseguiu então emprego numa loja de artesanato do aeroporto. “Na altura, já estava a fazer terapia hormonal, mas optei por não contar. Passado uns meses, quando me abordaram para ser chefe de equipa, achei que devia abrir o jogo. Felizmente correu tudo bem. Mas cheguei a ter alguns episódios desagradáveis no aeroporto, por causa das revistas que tínhamos que fazer. Porque os homens revistam os homens e as mulheres as mulheres. E eu andava sempre com uma carta que comprovava a minha identidade de género. Mas houve uma pessoa que simplesmente se recusou a fazê-lo mesmo assim.” O episódio não o impediu de completar a transição. Nem de se sentir confortável na nova pele. Hoje, está plenamente dedicado ao ativismo LGBTI+, através da “Transparente”, “a primeira plataforma digital portuguesa para as questões da inclusão, da diversidade sexual e de género”. “Vai ser lançada em fevereiro e inclui quizes, glossários, um portal de informação, outro de serviços e ainda serviços de consultoria.”

“É uma rapariga ou um rapaz?”

Mas, para muitas pessoas trans – que conseguem “passar” por pessoas cis, entenda-se -, a política do “don’t ask, don’t tell” continua a ser a postura mais segura. É o caso de Alexandre, de 23 anos, licenciado em Antropologia e com uma pós-graduação em Reinserção Social e Criminologia. Começou a ter acompanhamento psicológico aos 16 anos, iniciou a terapia hormonal aos 18, já fez “quase todas as operações”. “Falta a faloplastia, mas para já ainda não é muito segura, vou esperar mais uns tempos, que a ciência está sempre a evoluir”, detalha. Quando, com 14 ou 15 anos, iniciou a vida sexual, chegou a ter “dificuldade” em perceber o que se passava com ele, mas acha que teve “alguma sorte”, porque os amigos e a família “sempre compreenderam e aceitaram”. A nível laboral, também não se queixa. “Sempre tive trabalho. Mesmo durante a faculdade, trabalhei em vários sítios. Mas escolhia sempre não contar a ninguém.” Quando começou com as hormonas, quis até despedir-se do McDonald’s, onde trabalhava naquela altura. “Porque não sabia qual ia ser a reação. Mas quando o meu chefe percebeu porque é que eu queria ir embora disse logo que não havia problema nenhum. Até mudaram logo o nome que tinha no crachá.” Volta e meia faziam-lhe perguntas curiosas, mas sempre se sentiu acolhido entre colegas. “Os clientes é que volta e meia me perguntavam: ‘Desculpe, é uma rapariga ou um rapaz?’ E só me apetecia responder: ‘Mas isso interessa?’.”

Entretanto, completou a transição e tudo se tornou mais “simples”. “Já trabalhei em vários sítios e nunca conto [também por isso, optou por não dar a cara neste artigo]. Se me perguntarem diretamente digo, não minto.” Mas por iniciativa dele não. Por medo, no fundo. “Nunca sei qual vai ser a reação. Volta e meia oiço histórias de pessoas despedidas por causa disso.” De resto, no dia-a-dia, garante que não se sente discriminado. Já quando entramos no campo amoroso, a conversa é outra. “Há pessoas que fetichizam e se envolvem comigo só para ter uma experiência, por ser trans. E há outras com as quais está tudo a correr muito bem e quando percebem que sou trans fecham a porta.”

Mas a aparente facilidade com que Alexandre se tem movido no mercado de trabalho é mais exceção do que regra. Os dados da Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA), que datam de 2020, são a prova disso. Referem que cerca de 40% das pessoas trans e intersexo em Portugal experienciaram episódios de discriminação ao procurar emprego (o dobro da comunidade LGB). Daniela Bento, pessoa trans e membro da direção da ILGA, assinala isso mesmo. “Muitas vezes, no momento em que, numa entrevista de emprego, as pessoas são percecionadas como tal, surge logo à cabeça essa dificuldade para conseguirem uma oportunidade de trabalho. E mesmo depois, se houver problemas de transfobia ou assédio, a verdade é que não existem mecanismos para defender as pessoas. Há uma lei referente a isso no Código de Trabalho, mas na prática traduz-se em muito pouco.”

Daniela Bento é coordenadora do GRIT – Grupo de Reflexão e Intervenção Trans da ILGA
(Foto: DR)

Aliás, o problema começa a desenhar-se bem antes, muitas vezes ainda dentro de casa. Manuela Ferreira, presidente da AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, põe o dedo na ferida. “Há uma discriminação muito, muito grande dentro da própria família. Os estudos mostram que o principal agressor é, muitas vezes [em cerca de 50% dos casos, mais precisamente], um familiar próximo.”

As próprias escolas estão ainda longe de ser um meio isento de problemas. “Há uma lei [38/2018] que foi aprovada, que existe, que diz que as pessoas abaixo dos 16 anos têm direito a fazer a sua transição social. Já na altura em que foi aprovada motivou grande polémica, tanto que ficou conhecida como a ‘lei das casas de banho’. Mas as escolas começaram a perceber que isto era uma questão que existia e que tinha que ser tratada com a devida atenção. Depois saiu o despacho com as medidas administrativas, que foi considerado inconstitucional, e se havia escolas que demonstravam resistência, esta tornou-se muito maior. Quando o que o acórdão do TC diz é que as garantias e liberdades estão asseguradas. A questão aqui é que não pode ser o Governo a fazê-lo, terá de ser a Assembleia da República.”

“A diferença entre a vida e a morte”

Só que, na prática, a decisão veio criar um clima de caos, “em que se estão a tentar legitimar as posições da extrema-direita”. E o efeito nos mais jovens, garante Manuela, é brutal. “Isto empurra para a depressão, para a ansiedade. E às vezes acaba da pior maneira de todas. Quem está de fora pode não perceber, mas chamar o jovem pelo nome por que quer ser chamado pode ser a diferença entre a vida e a morte. É uma questão fulcral.” E ainda aponta o dedo à falta de formação específica dos professores para estas matérias. Já para não falar no bullying. Um emaranhado de obstáculos que, não raras vezes, traz o desânimo, a falta de aproveitamento, até o abandono escolar precoce. E que, por consequência, vai impactar de sobremaneira no percurso profissional.

Os obstáculos estendem-se a outras áreas. Desde logo à Saúde. “Há problemas enormes para ter acesso. Consultas muito demoradas, filas de espera gigantes, muitas queixas, profissionais de saúde que não estão minimamente preparados para receber pessoas trans,”, aponta Daniela Bento, da ILGA. Às vezes, até a alteração de nome pode ser um problema. “Há conservatórias que dizem que não têm informação de que a lei mudou, que não fazem esse tipo de trâmites, que não têm pessoal indicado para o fazer. Quando, em teoria, todas as conservatórias o deviam fazer.” O acesso à habitação é outro bico de obra. “As pessoas trans sentem uma dificuldade acrescida. Só o facto de irem ver uma casa inspira receio. Porque temem ser percecionadas como tal e discriminadas. E depois vemos muitas vezes anúncios que são claros a dizer que determinados quartos são só para rapazes ou só para raparigas”, alerta Tiago Castro, do Centro Gis – cujo nome homenageia Gisberta, assassinada na cidade do Porto em 2006 -, a primeira unidade no norte do país dedicada a dar resposta às necessidades específicas da população LGBTi+.

O psicólogo e técnico de apoio à vítima desta unidade, que está integrada na associação Plano i, chama ainda a atenção para outra questão, que nas últimas semanas tem vindo a ganhar relevância: a da representatividade das pessoas trans nas várias áreas da sociedade – que é hoje praticamente inexistente – e da importância que ela teria. “Sobretudo no combate à invisibilidade. Sabemos que a questão da identidade de género fica definida desde muito cedo, por volta dos três anos. Se cresço com modelos positivos, se vejo pessoas que sentem o mesmo que eu, isso valida o que estou a sentir. É empoderador e motivador, para que as pessoas trans tenham o mesmo potencial de realização das outras.”

E isso leva-nos a uma questão-chave: o que pode ser feito para reverter a frágil situação em que se encontram as pessoas trans em Portugal? Contactada pela “Notícias Magazine”, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) lembrou que tem vindo a trabalhar as questões da diversidade LGBTI+ nos locais de trabalho “com algumas empresas públicas e privadas e parceiros sociais”, que está a ser desenvolvido um programa de formação para órgãos de polícia criminal, “para um melhor atendimento, apoio e proteção” destas pessoas, que está em curso “a preparação de novos conteúdos pedagógicos” para as escolas. Lembrou ainda as campanhas de sensibilização que têm sido promovidas e o mecanismo de queixa eletrónica que tem disponível no seu site.

Na esfera política, Isabel Moreira, do PS, reconhece que ainda há um “enorme véu de ignorância em relação ao que é a comunidade trans”. Ignorância essa que “alimenta o preconceito” e faz com que falemos de “uma comunidade altamente ostracizada e incompreendida em vários pontos do Globo”. Por isso, reconhece que as especificidades desta comunidade devem “estar presentes nas políticas públicas, em termos de acesso à saúde, à educação, ao emprego, à habitação”. Mas prefere, para já, deixar a discussão das quotas de lado. Diz apenas que “medidas de outro tipo têm de ser pensadas de um ponto de vista mais global”. Já Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, frisa que o partido “esteve sempre disponível para discutir quotas”. “É um debate que o Bloco está preparado para fazer. Há uma sub-representatividade clara das pessoas trans na vida social e isso preocupa-nos porque ela decorre de um preconceito, de uma discriminação muito presente e violenta. Sendo que finalmente isto é algo que estamos a discutir.”

Júlia Mendes Pereira, que em 2014 se tornou a primeira mulher trans dirigente de um partido político em Portugal, ao ser eleita para a Mesa Nacional do Bloco de Esquerda (embora hoje já não integre aquele órgão), não tem dúvidas de que o caminho passa por aí. “É preciso abrir espaços e postos para as pessoas da comunidade trans poderem entrar nas mais variadas esferas”, entende a ativista. E, por falar em ativismo, de volta ao episódio no São Luiz e à discussão acesa que se seguiu. De um lado, os que entendem que, perante a falta de respostas a outros protestos e a crónica opressão a que a comunidade trans está sujeita, só um grito de revolta assim pode ser ouvido. Do outro, os que entendem que foi cruzado o limite da razoabilidade, com um ataque injustificado ao ator cis em causa e, no limite, à classe artista no seu todo. Júlia é clara. “Eu entendo que todas as formas de protesto que sejam pacíficas fazem sentido. Ali não se fugiu do pacifismo, não houve intenção de magoar, mas sim de fazer ouvir uma mensagem que ainda não tinha sido ouvida.” Aponta ainda o dedo à conotação pejorativa do termo “transativismo”, que tem vindo a ser repetido pela extrema-direita como algo subversivo.

Em 2014, Júlia Mendes Pereira tornou-se a primeira mulher trans dirigente de um partido político em Portugal, ao ser eleita para a Mesa Nacional do Bloco de Esquerda
(Foto: Gustavo Bom/Global Imagens)

Dani Bento, da ILGA, está no mesmo comprimento de onda. “Enquanto pessoas privilegiadas, tendemos a achar que outras formas de ativismo são menores do que as nossas. Falta-nos entender que estas vozes vêm muitas vezes de sítios marginalizados e violentados, de uma necessidade mais premente de fazer uma mudança estrutural.” Maria João Vaz, a atriz trans que foi chamada para fazer de Lola na peça encenada por Daniel Gorjão, é mais comedida. “Eu subscrevo a causa. Eu e a Keyla somos irmãs de luta. Mas, a título pessoal, não me identifico com este tipo de atos. Não vou cortar o trânsito nem vou atirar tomates. Embora entenda que as revoluções, muitas vezes, são feitas com sangue.” E, a avaliar por todos os relatos que constam destas linhas, esta revolução ainda está por chegar.