Jô, Melanie e Ana soltaram as amarras que as prendiam ao lar, fizeram-se à estrada, recomeçaram. Diogo e Patrícia estão prestes a fazê-lo. Na equação, pesaram vários fatores. Mas um fala mais alto: a perspetiva de escaparem ao aumento galopante do custo de vida e de encontrarem no destino um desafogo financeiro distinto.
Maria Jorge Torres, 48 anos, passou quase uma vida inteira no Porto. Ali nasceu, ali cresceu, ali arranjou trabalho e uma casa só para ela, senhora do seu nariz desde que se lembra de ser gente. “Fui sempre muito independente. Comecei a trabalhar logo aos 18 anos, quando fui estudar Pintura para as Caldas da Rainha, e desde então trabalhei sempre.” Quando acabou os estudos, ainda voltou para casa dos pais, mas por pouco tempo. E desde então que se orgulha de ter dependido sempre dela mesma. “Pode-se dizer que consegui viver sempre tranquilamente. Sem ganhar rios de dinheiro, fui conseguindo pagar uma casa para mim e as minhas coisas, sem precisar da ajuda de ninguém.” Nos últimos anos, no entanto, com o aumento do preço das casas e do custo de vida no geral, sentia a corda a esticar. “Já estava no limite. Tinha consciência de que, se alguma coisa corresse menos bem, ia ser difícil aguentar.” Tanto é que já tinha encostado o carro. “Passei a andar de metro para não gastar tanto em gasolina.” Depois, no auge da pandemia, o tapete fugiu-lhe de vez. “A empresa onde trabalhava [ligada a ‘gifts’ para museus] ainda tentou aguentar-nos durante uns tempos, mas, em julho de 2020, avisaram-nos que íamos ter de sair.” E assim Maria Jorge – ou Jô, como prefere que lhe chamem – viu-se desempregada e com uma renda para pagar no auge de uma pandemia que não deixava grande margem para perspetivas risonhas. “Logo no início, tive plena consciência de que o futuro ia ser muito complicado. Que a covid iria provocar uma crise social gigante, que o recomeço ia ser muito atribulado. Acho que nunca chorei tanto.”
Mas aquele momento de extrema fragilidade foi também um toque de despertar. “Às vezes precisamos de ter a vida virada do avesso para mudarmos de rumo. E a pandemia trouxe isso. Eu sou formada em Pintura, mas nunca tinha trabalhado na minha área. Andei quase sempre pelo retalho. Curiosamente, já desde 2019 que andava num ateliê a aprender a fazer peças em barro. E naquela altura percebi: ‘É isto. Este é o meu futuro. Construir coisas com as minhas mãos’. De alguma forma, foi um momento de clarividência.” Mesmo que isso implicasse deixar a cidade de sempre, empacotar a vida, levá-la às costas rumo a Rebordelo (município de Vinhais, distrito de Bragança), voltar a partilhar casa com os pais, recomeçar. Eles, os pais, até tinham passado por um processo semelhante pouco tempo antes. Maria e Jorge, nascidos em Trás-os-Montes, viveram 40 anos na Rua do Bonjardim, bem perto do icónico edifício do “Jornal de Notícias”, mas era um terceiro andar sem elevador, já não iam para novos, a dada altura tornou-se imperativo saírem dali. Durante quatro anos, ainda arranjaram um T1 simpático. Mas entretanto o contrato acabou e, quando foram tentar arranjar outra casa para viver, já o arrendamento estava “a subir para preços rocambolescos”. “E eles já estão reformados, ficava apertado.”
Mudaram-se então para uma casa que tinham em Rebordelo e que antes servia apenas para “passar umas semanas, três ou quatro vezes por ano”. Foi um soco no estômago, não há como negar. “Tiveram que se desfazer de praticamente tudo o que tinham adquirido ao longo da vida”, lamenta Jô, que daí em diante passou a andar “com o credo na boca”, por estar a “muitos quilómetros de distância” dos pais, que já têm os seus problemas de saúde, por não lhes poder dar a mão numa emergência. Um fator que, admite, também haveria de pesar naquele verão de 2020, quando resolveu aproveitar o beco escuro aonde foi dar para mudar de vida. “Não foi o motivo principal, mas também pesou. Agora consigo dar-lhes todo o apoio que é necessário. Basta subir as escadas [criou uma espécie de ateliê na parte de baixo da casa dos pais].” Quase três anos depois, não tem dúvidas de que tomou a decisão certa. “É um sonho que se está a concretizar. A pandemia também acabou por me ajudar. Tive tempo para criar coleções, para brincar com o barro, para desenvolver texturas.”
Depois, foi começar a vender, sempre por encomendas, muito graças à página que criou para o efeito nas redes sociais (Cer.Art.Jo). Mas também já vendeu uma coleção de pratos ao reputado G Pousada, o restaurante brigantino que conta com uma estrela Michelin. E até já consegue viver da sua arte. Algo que teria sido de todo impossível se continuasse no Porto. “Criar a minha marca e desenvolver o meu produto são coisas que levam tempo. Aqui consegui fazê-lo porque não tinha contas para pagar. Lá, a ter de trabalhar, a ter de pagar uma casa e um espaço onde pudesse trabalhar, não seria viável.” E trocar o Litoral pelo Interior, como foi? “A parte de querer determinados serviços e eles nem sempre estarem disponíveis, ou não estarem disponíveis com a rapidez a que eu estava habituada, foi um bocadinho um choque. Mas de resto é tudo maravilhoso e tranquilo, adoro estar cá em cima. Aliás, já há algum tempo que ambicionava mudar para uma zona mais tranquila.”
Esta vontade de deixar o rebuliço da cidade e rumar à tranquilidade do Interior vai-se replicando pelo país, em maior ou menor escala. Os números das candidaturas ao programa “Emprego Interior Mais”, criado para travar a desertificação do Interior do país à boleia da atribuição de um valor mínimo que ronda os 3400 euros, dão conta disso mesmo. Segundo dados divulgados pelo “Jornal de Negócios”, houve, entre julho de 2020, quando o programa foi lançado, e o último mês de março, 1804 candidaturas, abrangendo um total de 3312 pessoas (devido aos respetivos agregados familiares). Entre estas, mais de metade (54%) são precisamente dos distritos de Lisboa e Porto. Covilhã, Évora, Fundão e Castelo Branco destacam-se como os destinos mais procurados. Resta saber que percentagem das pessoas que concorreram o fez na perspetiva de encontrar no destino um desafogo financeiro distinto.
Juros empurram-nos para a casa de partida
Paula Guerra, socióloga que se tem debruçado sobre a sociologia urbana e a questão de ordenamento do território, encontra várias explicações para este interesse, mas não duvida de que a situação económica desempenha nestas narrativas um papel crucial. “Este movimento acentuou-se com a pandemia e agora tem-se vindo a acentuar com a crise económica, que encerra em si mesma várias razões. Por um lado, a procura de melhores condições de vida; por outro, o custo com a habitação, a alimentação, os transportes e todas as questões que implicam a vida numa grande cidade. De todas elas, parece-me que a mais determinante, neste momento, é mesmo a habitação.”
Para Patrícia e Diogo (que preferem não dar o rosto nem o sobrenome), esse foi um fator-chave, nenhuma dúvida. “O clique foi quando [em fevereiro] fomos ao banco tentar renegociar o nosso crédito à habitação [empréstimo a 45 anos, com taxa variável a 12 meses]”, recorda Patrícia, de 29 anos. As notícias não foram agradáveis. Até aqui, pagavam pelo T2+1 que compraram em Vila Nova de Gaia, em 2018, 350 euros. “Agora, a prestação ia aumentar para o dobro. E mesmo renegociando, a diferença era irrisória. Até foi o nosso gerente de conta que nos sugeriu que vendêssemos, disse que possivelmente conseguíamos vender pelo dobro do valor que pagámos para a comprar.” A ideia apanhou-os meios desprevenidos. Vender a casa que compraram há meros cinco anos não estava propriamente nos planos. Mas depois começaram a juntar peças. Patrícia, natural de Castelo de Paiva, não estava propriamente feliz no trabalho que tinha – trabalhava numa empresa audiovisual como produtora, mas não se sentia valorizada. Diogo sempre gostou da terra natal da esposa. “É mais familiar, permite-nos estar no meio da Natureza e, apesar de ser uma vila, já tem os serviços todos.”
Aliás, há muito diziam que um dia, fosse quando tivessem filhos ou depois, haveriam de se mudar para lá, para longe do trânsito caótico e para perto da família. Só que, durante anos, o projeto não passava de uma ideia distante, indefinida no tempo. Até que tiveram aquela conversa no banco, aquela perspetiva assustadora de passar a pagar uma prestação que lhes ia esmagar o orçamento, aquele vislumbre das portas que voltar a “Paiva” lhes poderia abrir. E, de súbito, tudo lhes pareceu simples. Dois dias depois, já se tinham decidido. Diogo puxa a fita atrás. “Liguei à proprietária de uns apartamentos que já tínhamos andado a ver em Paiva [na altura, só por curiosidade] para saber se ainda tinham algum disponível.” Naquele momento, até o universo pareceu conspirar para lhes apontar o futuro. Patrícia relembra a curiosidade, a rir. “Já só tinham um e curiosamente era aquele de que tínhamos gostado mais quando lá estivemos.” Por ser em Paiva, conseguiram um preço bem mais acessível do que alguma vez conseguiriam no Porto. E não tardaram a assinar o contrato de promessa de compra e venda.
Também nesta narrativa, os fatores familiares tiveram o seu peso. “Estar mais perto também conta. Hoje em dia, vou lá uma vez por semana, estou três horas e venho embora. Quase nem dá para falar com calma com os meus pais, quase não vejo o meu afilhado. E também gostava de ajudar o meu pai no negócio dele, uma loja de roupa, quero ver se o consigo ajudar a explorar mais as redes sociais.” Entretanto, puseram a casa em Gaia à venda, Patrícia deixou o trabalho que tinha, tenciona ser freelancer, dedicar-se mais à fotografia, ir fazendo trabalhos onde quer que as oportunidades apareçam. “A ideia não é necessariamente estabelecermo-nos profissionalmente lá, nem estarmos presos territorialmente. O Diogo, pelo menos para já, vai continuar a trabalhar no Porto [é instrutor de ginásio], eu vou estar sobretudo em teletrabalho, mas venho cá sempre que tiver trabalhos. Há só um receio que ainda a atormenta de mansinho, assume, sem pruridos. “Eu sempre adorei viver no Porto. Quando cá cheguei para estudar, aos 18 anos, foi tipo: ‘Uau, cheguei a Nova Iorque’. E às vezes quando passava muito tempo em Paiva começava a sentir que a vida não estava a acontecer. Mas acho que agora, na nossa casa, vai ser diferente.”
Para Castelo de Paiva, para outras localidades ainda mais interiores e despovoadas, a chegada de gente como Patrícia e Diogo está longe de ser irrelevante. Teresa Sá Marques, geógrafa da Universidade do Porto, especialista em ordenamento do território, admite isso mesmo. Antes, deixa uma ressalva. “Temos de ter noção que isto não vai inverter nada. Há décadas que o Interior se debate com uma saída de população brutal. Tendemos a pensar num passado mais recente, mas nos anos 1960 e 1970 tivemos uma autêntica sangria.” Mas também há quem esteja a voltar para gozar a reforma e isso “é muito importante”, sobretudo por regressarem “com uma capacidade financeira superior”. E por ser expectável que ainda possam viver entre 15 e 20 anos mais (olhando àquilo que é a esperança média de vida). Esta importância redobra-se se falarmos de populações mais jovens, que tencionem ter filhos nestes “contextos mais rurais”. Para isso, destaca a especialista, é preciso apostar cada vez mais em “processos inclusivos” e na oferta de serviços específicos destinados a estas populações.
Voltar ao lugar onde foi feliz
A busca por condições financeiras mais risonhas não é sempre uma seta apontada ao interior do país. No caso de Melanie Neves, 43 anos, foi precisamente o oposto. A sede de um conforto distinto levou-a, a ela e às duas filhas, de 13 e 17 anos, de Pombal até ao Algarve, que tão bem conheceu quando era estudante universitária. Filha de pais portugueses, nasceu em França, mas logo aos sete anos instalou-se em Pombal. Depois, aos 18, rumou a sul, para estudar. Tirou Comunicação Social no Algarve (fez até um mestrado em Jornalismo em Coimbra), mas nunca chegou a exercer. Não que não se tenha fartado de trabalhar. Começou na secretaria de um clube de futebol (chegaria à direção do Sporting Clube Pombal), esteve num stand de motas, nos correios, passou dez anos a dar Atividades de Enriquecimento Curricular – de Inglês, sobretudo, mas não só -, foram tantas as experiências que fica difícil recordar todas. Além das formações. De cabeleireira a esteticista, da cozinha à comunicação, até já perdeu o fio à meada. A vida não foi fácil, ainda assim. Depois, em 2013, o bichinho que o pai lhe foi passando com os anos falou mais alto. “O meu pai era motorista de camiões e eu ia muitas vezes com ele nas viagens. Além de que tenho três irmãos, todos motoristas. Então, em 2013, também fui tirar a carta.” E em 2016 tornou-se motorista da Câmara Municipal de Pombal.
Mas as condições não lhe agradavam por aí e além. Ganhava pouco mais do que o salário mínimo, mais tarde acabou por se inscrever numa bolsa de colaboradores que lhe permitia dar uma mãozinha também no museu e no castelo, ganhava “mais qualquer coisa”, mas nada por aí além, foi-se cansando de ter o dinheiro sempre contado. Pelo meio, separou-se, acumulou problemas, já andava desejosa de deixar Pombal. Então, foi espreitando os anúncios, candidatou-se para ser motorista de pesados de passageiros em Guimarães e em Faro, entrou em ambos os locais. Mas as memórias felizes dos tempos de estudante, a ideia de poder ir para perto de pessoas que então conheceu, acabaram por falar mais alto. Mudou-se em setembro e desde então que está com condições mais simpáticas do que as que teve ao longo dos muitos anos em que foi acumulando trabalhos. “Ganho bem mais agora.” Já a despesa com a habitação, acabou por ficar ela por ela. Porque, apesar de no geral as casas serem consideravelmente mais caras em Faro, teve a sorte de conseguir “um achado”. Além de que trocou uma moradia por um apartamento. Despachada, aparentemente pragmática, não mostra padecer da eventual nostalgia que chega com uma mudança de lar radical ao cabo de um sem-fim de anos. “Para mim era viver aqui ou em qualquer lado.” Com as filhas é que não é bem assim. “A mais velha está mais adaptada. À mais nova é que ainda lhe custa mais. Tem muitas saudades dos amigos.”
Dar a mão à irmã e alargar horizontes
Ana Seixas, 47 anos, já passou essa fase. Há pouco mais de um ano, disse adeus a Torres Vedras e instalou-se em Leiria, foi a doença da irmã a incutir-lhe a urgência da mudança, mas a ideia há muito andava a germinar. Antes disso: Ana nasceu em Lisboa, mudou-se para as Caldas com oito anos, estudou Gestão Turística e Hoteleira em Peniche, rumou a Torres Vedras em 2019, na sequência do término de uma relação de mais de dez anos. Apesar de ser formada em Turismo, mal trabalhou na área. “Só coisas esporádicas. Os meus trabalhos foram quase sempre na área administrativa e da contabilidade.”
Antes de deixar Torres Vedras, estava precisamente no departamento financeiro de um hipermercado na Malveira. E as contas já começavam a apertar. É verdade que vivia numa casa “espetacular”, uma casinha na aldeia que era um T1 com um pátio e que muito lhe valeu durante os confinamentos impostos durante a pandemia, mas só de renda eram 450 euros. Depois, tinha as despesas de combustível, todos os dias a fazer Torres-Malveira e o oposto também, a fatura já estava numa bela quantia. “Estava a ser um desafio. Digo muito sinceramente que se não fosse a ajuda do meu pai em alguns momentos possivelmente não teria conseguido. E comecei logo a ponderar que ia ter que rever a situação.” Ou mudar de trabalho, ou mudar de casa, para mais perto do trabalho. Aliás, andou um bom meio ano à procura de casas. A dada altura, chegou a ponderar mudar-se para uma onde pagaria 400 euros de aluguer, perto do trabalho, mas era literalmente “um anexo, com imensa humidade, um quarto, uma cozinha e uma casa de banho”. E então desistiu, sem abdicar nunca da ideia de encontrar uma solução mais airosa, até porque o que ganhava “dava à justa para pagar as despesas”.
Até que um problema de saúde grave e súbito da irmã acelerou vertiginosamente o processo. “A minha irmã mora na Marinha Grande e quis ir para a beira dela, para a poder ajudar naquela fase tão difícil.” Depois, foi ver os preços das casas e as ofertas de trabalho em Leiria, ali bem perto, e decidiu-se de vez. “Percebi que os valores das casas eram mais baixos e que, aparentemente, havia mais oferta de trabalho.” Em março de 2022, mudou-se de vez. “Toda a gente me tentou convencer a não vir embora porque tinha casa e trabalho. Mas eu queria estar perto da minha irmã. E há muito sentia que, mais dia, menos dia, ia ter que me mudar.” Hoje, paga 360 euros por um T0+1, despesas incluídas, é assistente didática de um instituto de inglês, tem um trabalho melhor, mais bem pago, vive no centro da cidade e tem tudo à mão, portanto não precisa do carro “para nada”.
Tudo somado, a diferença, em termos financeiros, é “muito considerável”. Está até a ponderar dedicar-se a um projeto mais pessoal, cujos contornos ainda estão por definir. “Tudo se alinhou.” No início, confessa, teve saudades, do pai e dos amigos, sobretudo, mas depressa se rendeu. “Nisso, o meu cão [Gucci] também facilitou a mudança, é a minha companhia.” Entretanto, já criou uma nova rede de amigos em Leiria, gosta da cidade, já não pondera sair. “Acho que vim na altura certa. O empurrão foi a ideia de estar mais perto da minha irmã e dos meus sobrinhos, mas acho que mais cedo ou mais tarde ia acontecer.” Ana socorre-se até de uma expressão que a psicóloga que a acompanha costuma usar, para resumir o que acha que lhe aconteceu: “Às vezes, é só o universo a dar-nos pontapés no rabo.”