Parque de Serralves, a floresta encantada que é um milagre

Já dizia Pedro Abrunhosa que este é o lugar onde a Terra toca o céu. O sítio que guarda jardins, matas, animais de quinta, arte contemporânea ou ciência faz 100 anos. O Parque de Serralves, pulmão de oxigénio criativo no meio da cidade do Porto, cresceu. Viu nascer um museu, uma casa de cinema ou um passadiço que caminha junto às copas das árvores sem nunca se esquecer das raízes. Foi futuro sem saber. E o desafio é continuar a sê-lo.

Ana Rosa anda num bulício, de volta dos animais, com as mãos cheias de folhas de castanheiro-da-índia para lhes dar de comer. Salta a cerca da quinta num piscar de olhos e desata a bater palmas para chamar as vacas, os burros, a égua, as ovelhas, as galinhas, a porca. Já ali assistiu a muitos nascimentos, ainda há dias nasceu um bezerro. É jardineira e tratadora de animais, vai girando nas funções a cada ano para não se aborrecer. Como se isso fosse possível. Foi trabalhar para o Parque de Serralves aos 18 anos, já lá vão 36. “Na altura, vim feliz da vida, nem queria acreditar que me aceitaram e cada vez gosto mais disto. Passei aqui a minha mocidade, vi o parque mudar muito.” Em mais de três décadas, viu nascer o Museu de Arte Contemporânea, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, o Treetop Walk (o passadiço ao nível da copa das árvores), a Casa dos Jardineiros ou o Jardim das Aromáticas. Um momento marcante e que a faz fervilhar foi ter ajudado a reconstruir o roseiral na pandemia, quando a equipa de dez jardineiros não parou – e o silêncio da ausência de visitantes, da falta dos aviões a sobrevoar, da cidade à volta parada era ensurdecedor. “Foi tudo, tudo feito por nós”, sublinha.

O roseiral, zona sempre muito procurada, foi reconstruído na pandemia
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

As duas horas de viagem em transportes públicos entre casa e trabalho – mora em Melres, Gondomar – são talvez a única coisa que lhe custa num amor desmedido a Serralves que nem a dureza da jardinagem debaixo de sol faz esmorecer. Entende-se com os estrangeiros – e foram sendo cada vez mais, muito à conta da chegada dos voos low-cost ao Porto -, “mesmo não sabendo falar estrangeiro”. Pedem-lhe fotos, elogiam-lhe a minúcia do trabalho, ela agradece. “É um sítio maravilhoso. É tudo lindo neste parque. E quando o vejo na televisão é como se fosse a primeira vez, encho-me de orgulho.” Luciana Pereira ouve-a e vai abanando a cabeça como quem concorda. Também é jardineira, está prestes a completar duas décadas de trabalho em Serralves. “Quando fizer vinte anos, recebo uma taça em ponto pequeno idêntica à que está na fonte do jardim”, diz ela a sorrir. Desse mesmo, o icónico jardim que se estende entre espelhos de água, desenhado pelo arquiteto Jacques Gréber nos anos 1930, nas traseiras da histórica Casa de Serralves, a cor-de-rosa, exemplar único da arquitetura art déco, então propriedade de Carlos Alberto Cabral, 2.º Conde de Vizela. Mas voltemos a Luciana. “Aqui faço de tudo, corto relva, sebes, trato dos caminhos. E gosto de mostrar que sou de Serralves. Nem tiro a farda se precisar de ir à rua, é com esta roupa que consigo comprar a outra roupa.” No coração guarda o delírio das primeiras edições de Serralves em Festa (o festival regressa a 2 e 4 de junho, depois de três anos de paragem, com 50 horas de programação ininterrupta) e do Bioblitz, evento que promove a educação ambiental, e que encheu o parque no último fim de semana. “Não me passa pela cabeça deixar isto. Não trocava isto por nada. Quero envelhecer aqui. Reformar-me daqui.”

Ana Rosa trabalha há 36 anos no Parque de Serralves. É jardineira e tratadora de animais
(Foto: André Rolo /Global Imagens)

Daqui quer Luciana dizer dos 18 hectares de história, do sítio onde a Terra toca o céu, palavras de Pedro Abrunhosa sobre esse oásis de sossego, de jardins e de matas, que deixa ouvir as aves cantar, as rãs coaxar, encaixado no meio da inquietação da cidade do Porto. Uma porta mágica que se atravessa e o resto do Mundo parece deixar de existir. O Parque de Serralves está a celebrar 100 anos. As últimas contas revelam que moram ali mais de dez mil árvores e arbustos, entre cerca de 200 espécies de flora. “E em termos de fauna, temos um pouco de tudo, desde micromamíferos, como o ouriço-cacheiro, às aves. E, claro, os animais da quinta, tudo de raças autóctones, portuguesas”, refere Ricardo Bravo, coordenador do serviço de manutenção e gestão do parque, que gere a equipa de jardineiros. Costuma dizer que o trabalho nunca tem fim e em ano de centenário mais ainda, está planeada a recuperação do Jardim das Aromáticas e do Lago. Além de uma nova estufa, que vai substituir a antiga. “É muito especial trabalhar aqui, cuidar diariamente de um parque que é hoje tão emblemático.”

Uma coisa de outro Mundo

Na verdade, foi sempre especial o parque que nasceu do espaço exterior de uma casa de família, e que foi sendo sucessivamente ampliado, naquela primeira metade do século XX. Engrandeceu-se à conta do sonho de Carlos Alberto Cabral, que teve a visão de querer um espaço verde notável no Porto ou em qualquer parte do Mundo. A obra feita naquela época nunca se perdeu, e o parque teve outros proprietários privados pelo caminho, até ser adquirido pelo Estado Português, em 1986, “num verdadeiro milagre”. “Na altura, constava que havia grandes interesses imobiliários, corria pela cidade a hipótese de aquisição pelos privados para ali criar condomínios e edifícios luxuosos. A aquisição do parque pelo Estado foi um milagre para a cidade, para o Norte e para o país. Um espaço como Serralves cair no domínio público é uma coisa de outro Mundo, é a verdadeira civilização e cultura a comandar os gestos políticos, coisa a que não estamos habituados em Portugal.” Hélder Pacheco, investigador, escritor e cronista das culturas e tradições populares do Porto, lembra-se bem de quando pôs os pés pela primeira vez no Parque de Serralves, dia da inauguração oficial, quando abriu ao público, e onde encontrou a então secretária de Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, “que terá sido a pessoa no Governo que mais lutou pela aquisição do Estado”.

Prestes a completar duas décadas como jardineira no Parque, Luciana Pereira não trocava este trabalho por nada
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Desde então, Serralves fez-se Serralves. Um nome que se agigantou. Lugar de Natureza e de cultura. Requalificaram-se os espaços verdes, sob a batuta da arquiteta paisagista Teresa Andresen, que viria a assumir o cargo de diretora do Parque. Em 1989 nascia a Fundação, em 1999 o Museu de Arte Contemporânea abria portas. Escreveu-se História. “Serralves ajudou a projetar internacionalmente a cidade. É uma atração de prestígio. Passo lá várias vezes por semana e impressiona-me a quantidade de camionetas paradas com miúdos de escolas, são os jovens a ir à cultura. Além dos muitos estrangeiros. Instituições como Serralves ajudam a projetar o Porto para a 1.ª divisão das cidades.”

A Plantoir ou Colher de Jardineiro, na entrada do Parque desde 2001, é uma escultura gigante e colorida que foi adquirida pelo Museu de Serralves
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

O escritor mora relativamente perto do Parque, viu-o amadurecer como poucos. Rende-se à Alameda das Liquidâmbares, “uma das mais deslumbrantes paisagens do Porto no outono”, aquela que se estende para lá da icónica Colher de Jardineiro, instalada em Serralves desde 2001 – é sabido, as esculturas e instalações abundam pelo parque. Mais, o escritor fez dele uma espécie de floresta encantada para onde levava os netos nos finais de tarde depois da escola. “Sobretudo ao Bosque das Faias, eles deliravam. E ao Lago, zona muito misteriosa e verde, que fica num fundão. Posso dizer que a ligação com o Parque de Serralves os ajudou a crescer.” Depois, com o museu já construído, recorria muitas vezes à cafetaria e ao restaurante para reuniões e encontros. Aplaude todas as transformações. “A casa inicial, de art déco, é uma obra-prima. Mas o edifício do museu, a qualidade arquitetónica (obra de Álvaro Siza Vieira, que é autor de vários outros espaços no universo Serralves e também da nova ala do museu que vai aumentar em 40% a área expositiva e que está em construção) sempre me impressionou. Os acrescentos que foram sendo feitos em nada interferiram com a beleza do parque.”

O lago, espaço privilegiado do Parque de Serralves desde sempre, vai ser requalificado este ano, a propósito do centenário
(Foto: DR)

Serralves é a fusão imaculada da vida cosmopolita e cultural com o mundo rural. “Tem até uma quinta, onde os miúdos da cidade podem ver bois e outros animais fora das fotografias. É como atingir a luz em matéria de ambição, de prestígio, de qualidade. É acontecimento raro em Portugal, a demonstração de que não somos um país nem medíocre, nem de medíocres. E exemplos como Serralves deviam proliferar.”

O livro, celebrações e futuro

O parque tornou-se espaço público e as gentes, não há dúvidas, apropriaram-se de uma área verde que já é tanto mais do que isso. Com a Fundação, chegaram as atividades ligadas à ciência, à cultura, à arte, à educação ambiental. “Houve uma coincidência muito feliz de circunstâncias e de pessoas que foram visionárias. Investiu-se no restauro do Parque, na construção de edificado, como o Museu ou a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, com a marca forte da arquitetura portuguesa, neste caso de Álvaro Siza Vieira, sempre em grande sintonia e harmonia com o parque”, sublinha Helena Freitas, atual diretora do Parque. Aliás, o parque foi sempre parte da narrativa criativa e artística que vibra em Serralves. Difícil é não tropeçar em obras de artistas como Olafur Eliasson, conhecido pelas peças monumentais, ou de Rui Chafes, um dos mais relevantes escultores portugueses da atualidade. E o pioneirismo, há mais de 20 anos, do serviço educativo, que hoje é vulgar em qualquer parte, ajudou a fidelizar os mais novos, as famílias, as escolas – lá iremos.

O jardim central, que se estende entre espelhos de água nas traseiras da Casa de Serralves, é um ícone do Parque
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

“Hoje, fala-se muito em Bauhaus e Serralves já o era antes mesmo de se anunciar. Trouxe a narrativa dos novos tempos.” Agora, quer abrir-se cada vez mais à cidade e ao país, daí os muitos eventos com entrada gratuita, como o Serralves em Luz. É bem recente a marca mais profunda que Helena Freitas guarda de uma história centenária. “Assisti à transição da pandemia para o pós-pandemia. E ver a adesão extraordinária ao primeiro Serralves em Luz, perceber a ansiedade, o desejo de ter a Natureza de volta às nossas vidas, foi muito marcante.” Não tem números na cabeça, mas sabe que são centenas de milhares os visitantes por ano, entre o Museu e o Parque. E o futuro? “Não queremos criar mais edificado, é um objetivo meu. Mas teremos sempre a intenção de requalificar o espaço, há sempre melhorias a fazer, na eficácia da gestão dos recursos hídricos, na aposta em vegetação que sirva a nova realidade climática.” A Fundação apresentou, neste ano, a estratégia para a neutralidade carbónica, a sustentabilidade sempre fez parte do ADN de Serralves.

E em ano de centenário o programa é recheado. Na quarta e quinta-feira, a Conferência 100 anos, no auditório, vai trazer a experiência internacional de outros parques históricos, de São Paulo, no Brasil, ou do Hyde Park, em Londres. “Para debatermos o desafio dos parques históricos, do papel que desempenham, do restauro, o que pode ser o futuro tendo em conta a preservação do legado.” Mais lá para a frente, em novembro, será lançado um livro sobre os 100 anos, obra da historiadora Maria Fernanda Rollo, que começou a trabalhar no projeto no início do ano. Anda a recolher memórias. “Já fizemos cerca de 90 entrevistas, a jardineiros, anteriores responsáveis, pessoas que têm vivido o parque, escolas, a gente que brincou em criança na festa dos espantalhos há 20 anos”, explica a professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa. Também anda a vasculhar arquivos, em processo de investigação para o livro. E não podia deixar de ter Serralves cravado na vida. “Quando as minhas filhas eram mais pequenas, era quase obrigatório ir ao Porto ver Serralves”, conta.

Imagem que data de 1940 e que pertence ao acervo de Carlos Alberto Cabral, o proprietário que convidou o arquiteto Jacques Gréber a desenhar este jardim
(Foto: DR)

Entre as pesquisas, uma das dimensões mais interessantes é “a persistência do parque, ao longo das décadas, na renovação, na modernização, sem perder a sua matriz essencial, a traça original, o respeito pelo legado”. E, claro, a relação íntima com a cidade. “Não há muitos casos em Portugal, para não dizer nenhum, em que se mantém na sua integridade um património durante um século, que estava nas mãos dos privados, que é tomado pelo Estado em parceria com a grande burguesia do Porto, num compromisso absolutamente singular.” Da mesma forma que não há muitos casos tão híbridos como Serralves, que é simultaneamente jardim, parque urbano e quinta (houve até uma fase em que se produziam e vendiam géneros para fora), “no meio de uma enorme cidade”. E em diálogo com a arquitetura, a ciência, a arte contemporânea. É um pulmão criativo. “Com uma história muito rica. Soube crescer com sensatez, sem nunca pôr em causa o parque. O Porto já não é o Porto sem Serralves, e Serralves não se imagina sem o Porto. O sucesso é inquestionável”, assinala a historiadora.

O pioneirismo, o amor eterno

Certo é que Serralves cresceu, e foi muito além das fronteiras do edificado. Construiu um serviço educativo, quando ainda não era comum, com o histórico evento dos espantalhos ou uma horta pedagógica. Levou centenas de crianças do Porto a descobrir a Natureza ali mesmo. Faz, hoje, parte do programa educativo de escolas que têm a sorte de ter morada perto, e é espaço de aprendizagem para muitas outras do país inteiro. “Temos uma programação muito grande. E, ao contrário do que as pessoas pensam, não é só dirigida à comunidade educativa. Temos atividades para todos os públicos”, destaca Mariana Roldão, coordenadora do serviço educativo, que tem o coração na boca na hora de falar sobre Serralves.

A Casa dos Jardineiros era um antigo armazém de máquinas que foi recuperado a transformado por Álvaro Siza Vieira num edifício de apoio à jardinagem e de homenagem à equipa de jardineiros de Serralves
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

O parque, por si só, já é um laboratório vivo, mas os programas desdobram-se de mil e uma formas. Nas visitas guiadas ao Treetop Walk, obra do arquiteto Carlos Castanheira, na nova estufa que há de nascer na quinta e que quer levar visitantes a experimentar jardinagem, num sobreiro equipado com sensores que permitem perceber o ciclo do carbono (que a árvore consome e emite) em tempo real. No projeto de um laboratório de comunicação de plantas, que está em desenvolvimento, “e que pretende veicular ciência de forma mais compreensível”. Até nos eventos, “por exemplo, o Serralves em Luz não é só uma animação, tem um propósito, toda a estética da luz pretende dar a conhecer pormenores do parque que nos fogem do olho no dia a dia”.

O Treetop Walk, passadiço que caminha junto à copa das árvores, foi construído em 2019
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

“A verdade é que nós, que trabalhamos aqui, temos o privilégio de olhar pela janela e ter o parque disponível todo o ano. E oferecer esta história de valorização do património biológico, cultural, histórico às pessoas é uma grande responsabilidade.” Mariana sabe bem disso. Era catraia, vivia em Aveiro quando se lembra de ir ao Porto, a Serralves, com a escola ou com os pais, aprender sobre ambiente, quando ainda não era tema. “É curioso estar hoje aqui e ver o parque com uma maturidade diferente, ver que há uma consciência ambiental maior, uma noção de que é de todos e ter um amor imenso a este lugar.”

A estufa será substituída ainda neste ano de centenário
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

O Parque de Serralves já recebeu alguns prémios, o conjunto patrimonial até foi classificado como Monumento Nacional em 2012, mas o prémio maior é ser referência na paisagem do país.