Gil Dias cuida da filha, Maria, de cinco meses. Licença parental alargada, decisão de que não se arrepende. Mauro Moura ficou em casa com Bernardo. Jamais esquecerá as primeiras gargalhadas. Quanto mais perto, mais envolvidos. Mais presentes, mais felizes. Há quem os olhe com estranheza numa visão alicerçada em raízes enredadas no passado.
Maria nasceu há cinco meses e tem o pai sempre por perto. “Provenho de uma família muito grande, sempre quis ter muitos filhos, quero passar muito tempo com a minha filha”, conta Gil Dias. O máximo que puder. Dia e noite. Há uma semana, teve de ir a Alemanha e levou consigo Maria, primeira e única filha. A viagem de estreia da bebé correu bem, garante com aquele inconfundível brilho de pai babado no olhar. A mulher costuma dizer-lhe que a filha faz o que quer dele. Ele sorri e não desmente.
Bernardo está quase a fazer um ano, faltam poucos dias. O pai, Mauro Moura, tirou a maior parte da licença parental, até aos cinco meses. A primeira papa, as gargalhadas que enchem a casa, a alegria do gatinhar, aquela cara feia quando lhe deu laranja pela primeira vez. Jamais esquecerá. “Sempre gostei de estar presente, tenho amigos que dizem que nunca mudaram uma fralda, que nunca acordaram de noite para dar um biberão, e isso faz-me muita confusão”, confessa. Fraldas, biberões, refeições, banhos, sonos. Nada que o assuste, nada que já não tivesse feito, nada a que não estivesse habituado. “Ainda há essa mentalidade mais masculina de que essa função não é do pai.” O que não lhe entra na cabeça. “A sociedade tem de mudar isso, é tão importante para um pai estar presente como para uma mãe estar presente.”
Mauro sabe que a frase “ajudar em casa” faz parte da linguagem corrente, de tão entranhada que está, recusa-se a que entre no seu vocabulário. Para si, é partilhar, é dividir tarefas. “É dividir o cansaço pelos dois, o trabalho só para um é muito exigente.” Carolina, esposa e mãe de Bernardo, já ouviu que tem muita sorte por ter um marido que a “ajuda em casa”. Por vezes, explica que a observação não faz sentido, por vezes, não vale a pena. “É muito importante o facto de o pai passar mais tempo com o bebé, o bebé cria uma relação diferente com o pai. Quanto mais os homens participam na vida do bebé, mais gosto têm, o bebé responde, cria-se uma ligação”, comenta.
Gil deixou o trabalho na banca, tem curso e mestrado em Finanças e Gestão, andava a pensar em investir no próprio negócio, apostou numa marca de roupa de cama 100% de bambu, fundou a Momo Cotton com José Dias, o irmão gémeo. A vontade de cuidar da filha e passar mais tempo com a família concretizou-se, a mulher voltou ao trabalho numa multinacional, depois da licença. “Um de nós tinha de voltar à sua carreira, eu gostaria de ficar em casa, a minha mulher ficou tranquila com a decisão. Não me arrependo, é uma coisa linda.”
Carolina, mãe de Bernardo, usufruiu os dias de licença a que tinha direito, depois foi trabalhar. É administradora judicial, presta serviços ao Estado. Mauro, veterinário e um dos sócios da clínica onde trabalha, clínico e gestor, com maior flexibilidade laboral, ficou de licença. As dinâmicas mudaram naturalmente. “Ajudávamo-nos um ao outro”, diz Carolina.
Mauro e Carolina não são pais de primeira viagem, Margarida é a primeira filha, tem nove anos. Nessa altura, foi diferente. Carolina estava a trabalhar por conta de outrem, quatro meses de licença, Mauro tirou o quinto mês, dias obrigatórios, dois meses no total. Agora há várias coisas para gerir, um bebé em casa, os dias de Margarida. “Uma das coisas que não quisemos é que a vida dela mudasse drasticamente, manter o mais próximo possível a rotina dela e que não estranhasse”, revela Mauro. Conseguiram. Margarida, meiga e carinhosa com o irmão, faz ginástica rítmica, a família sempre atrás para as provas aqui e acolá com Bernardo a dar por ela quando a irmã mostra as suas habilidades.
A cada dia que passa, Gil dá mais valor às mães, às noites mal dormidas, à falta de descanso, ao corre-corre da muda de fraldas, aos biberões para trás e para a frente, a toda logística para sair de casa, ao choro que esmaga o coração. Tudo compensa. Esse tempo no início de uma vida, esses momentos irrepetíveis, ninguém lhe tira. “De manhã, na cama, quando ela sorri dá-me força para o resto do dia. Quando lhe dou o biberão é um momento muito nosso.” Tira imensas fotografias, partilha-as com a família, vai registando em imagens e vídeos instantes e o crescimento de Maria. “Quero que vejam o que está a acontecer com a minha filha.”
A igualdade e os estereótipos
Gil foi olhado de lado várias vezes, sentia essa surpresa, essa admiração, o questionamento. “Não percebiam muito bem por que razão queria ficar em casa com a minha filha, o mais importante do Mundo, queria estar com a minha família.” Quando pôde, quando as circunstâncias o permitem, Maria vai consigo a todo o lado, onde tenha de ir. O que não é habitual causa sempre estranheza e Gil demonstra possibilidades, descomplica situações, desmonta preconceitos. “Estou muito tranquilo com esta decisão, nunca tive dúvidas”, garante.
A mãe e o pai, duas licenças, dois tempos distintos. Para Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, os dias de licença parental ainda refletem a diferença biológica entre mães e pais, mais mulheres do que homens que ficam em casa. Os números confirmam a realidade. Em janeiro deste ano, segundo dados mais recentes, o subsídio parental inicial foi atribuído a 40 728 pessoas, 63,5% são mães, 36,5% são pais. Ainda assim, um acréscimo de 16,5% em comparação com o mês anterior e mais 6,4% face ao período homólogo para os beneficiários masculinos. Em 2018, um relatório europeu divulgava que 32% dos homens portugueses tinham gozado licença de paternidade. Dois anos antes, 30 mil homens partilharam a licença com as mães. Os números têm vindo a subir.
“Não estamos mal, mas devíamos estar melhor”, observa Maria do Céu Cunha Rêgo, jurista, formadora e investigadora, especialista do CIEG – Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, ex-secretária de Estado para a Igualdade, ex-presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). Maria do Céu reconhece que há passos dados, que a licença de paternidade exclusiva mudou o paradigma, que ainda há caminho a percorrer. E não tem dúvidas. “Mexer nas licenças é o melhor movimento para provocar a mudança estrutural em relação à igualdade de género.”
A questão tem tudo a ver com isso, com igualdade e com estereótipos que alimentam a desigualdade entre homens e mulheres. Por isso, defende tempo igual para homens e mulheres nas licenças parentais, o tempo que for. Tempo obrigatório, igual para os dois. “O que se dá à mãe tem de ser dado ao pai.” Está escrito nos Direitos da Criança. “Têm direito aos dois, ao carinho dos dois, ao tempo dos dois”, sustenta a jurista.
Mauro concorda. “Gostava que as licenças parentais fossem mais prolongadas, tanto para o pai como para a mãe, não acho que deva ser diferente, não acho que se deva fazer essa distinção de um e outro. Os dois têm direito a estar presentes numa fase da vida que, além de ser exigente, é muito importante para o bebé e para nós”, refere. “O tempo mais reduzido para o pai não faz sentido, é uma coisa que tem de ser ultrapassada. Tem de se acabar com isso, até porque atualmente está mais do que visto que a presença paternal na educação de um bebé é fundamental, é um equilíbrio que se cria”, acrescenta. Carolina assina por baixo. Criam-se laços. “Os primeiros anos de vida são tão importantes, fundamentais na personalidade, nos hábitos alimentares, no desenvolvimento”, refere.

(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)
Mauro vê algum caminho feito, mas aquém do que deveria acontecer. “É uma sociedade manifestamente machista, a função da mãe é aquela, o pai tem de ter um trabalho minoritário.” Carolina vê mudanças a um ritmo lento e alguns impasses. “Às vezes, são as próprias mães que acham que os pais não sabem fazer.”
Ricardo Simões defende dias iguais de licença obrigatória e acredita que se caminha nesse sentido, ou seja, licenças parentais igualitárias. “Os estudos demonstram que quanto mais os pais, homens, estiverem envolvidos nos primeiros meses dos filhos, quando se estabelece a vinculação, maior probabilidade há de participar nos cuidados ao longo da vida da criança”, sublinha. “A ciência demonstra isso de uma forma muito evidente”, diz. Assim é, de facto. Há estudos que comprovam que uma parentalidade ativa e envolvida dá frutos. Homens envolvidos na prestação de cuidados aos filhos têm relações mais saudáveis com as crianças e suas companheiras, manifestam maior satisfação emocional. Esse envolvimento desempenha um papel importante no desenvolvimento socioemocional dos filhos. E o impacto prolonga-se no tempo. Maior desenvolvimento cognitivo, maior resistência a stresse e à frustração, competências mais apuradas das crianças. Homens mais produtivos e mais cuidados na saúde física e mental.
“As licenças parentais deviam de ser igualitárias, obrigatórias, 100% remuneradas, e, de preferência alternada uma grande percentagem do tempo”, realça Tatiana Moura, investigadora auxiliar do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, socióloga, coordenadora do Observatório Masculinidades.pt e de diversos projetos nacionais e internacionais sobre masculinidades e prevenção de violência de género. Tatiana coordenou o projeto internacional PARENT – Promoção, Sensibilização e Envolvimento de Homens nas Transformações do Cuidado, promovido pelo CES, juntamente com parceiros de várias áreas. Um projeto realizado, em simultâneo, em Portugal, Áustria, Itália e Lituânia, centrado numa abordagem sincronizada de género, envolvendo os homens na parentalidade e no cuidado, numa partilha equitativa. Analisou-se a situação da paternidade na Europa, a prestação de cuidados, feita formação e campanhas, um manual nacional e desenvolvidas ferramentas para paternidades envolvidas e cuidadoras para profissionais de vários setores, nomeadamente na saúde. Um projeto que terá continuidade.
Há passos dados e tanto por fazer. “Não é o número de dias, é o princípio, só havendo uma licença igualitária é que se tem uma mudança real”, insiste Tatiana Moura. A mudança legislativa é importante, mas não basta. É necessária uma abordagem intersetorial, em seu entender. Os homens andam longe dos 50% no trabalho não remunerado, feito essencialmente pelas mulheres, não chegam a metade nas licenças parentais partilhadas e alargadas no nosso país. A socióloga recua à pandemia e recorda a medida de proibir os pais nas consultas pré-natais, no momento do parto, nas visitas após o nascimento. “Quando há esta abordagem, o pai não faz parte da equação.” E não pode ser.
O tempo e o dinheiro
19 de março. Dia do Pai. Mauro não esquece o primeiro. Não foi bom. Estava a trabalhar e isso marcou-o. “Não quero ter a minha filha só para chegar a casa e deitá-la, quero estar presente no dia da minha filha.” A perspetiva mudou. “A partir do momento em que tive os meus filhos, comecei a mudar, a estar mais tempo em casa, mais presente, procurar melhores condições económicas por causa deles, menos urgências aos fins de semana. Toda a nossa mentalidade acabou por ir mudando desde o primeiro filho”, salienta.
A cada dia que passa, Gil está mais contente. Nem tudo é um mar de rosas, nem o seria em qualquer circunstância, adapta-se aos momentos. “A minha filha é muito tranquila, muito bem comportada, muito calma.” O seu primeiro Dia do Pai será irrepetível.
Cada país, sua licença. Em Portugal, há a licença parental inicial, até 150 dias consecutivos, períodos obrigatórios e exclusivos para pai e mãe. Até 120 dias com 100% da remuneração paga, até 150 dias pagos a 80%. A mãe tem seis semanas obrigatórias, 42 dias, após o parto. O pai tem direito a 20 dias úteis obrigatórios de licença após o nascimento (serão 28 quando esta alteração entrar em vigor), cinco imediatamente a seguir, os restantes 15 gozados nas seis semanas após o nascimento, seguidos ou não. E há a licença alargada com duração adicional até três meses, imediatamente a seguir à licença inicial, para o pai e para a mãe, com subsídio no valor de 25% da remuneração. A licença parental partilhada junta 30 dias aos 120 ou 150 da licença inicial, que podem ser gozados na totalidade ou em exclusivo por um dos pais ou partilhados 15 dias e os restantes 15 usufruídos de forma individual por cada um.
Na Suécia, cada pai ou mãe pode tirar até 240 dias de licença parental, 90 dos quais não transferíveis, além de uma licença não remunerada até a criança fazer 18 meses. Em França, são oito meses, quatro para cada progenitor, reduzidos a seis meses se apenas um tirar a licença. Na Islândia, desde 2000, que a licença parental não é transferível, ou seja, três meses para a mãe, três meses para o pai, três meses partilhados.
É o tempo que se está fora do trabalho, são as contas ao rendimento familiar, é o cuidar de um bebé, são os estereótipos enraizados. Tempo e dinheiro são grandes indicadores. As mulheres trabalham mais em casa, as mulheres ganham menos do que os homens, as mulheres ficam a cuidar do bebé. A Organização Internacional do Trabalho avisou com todas as letras: o reconhecimento do direito dos homens à paternidade, bem como das suas responsabilidades na prestação de cuidados, ajuda a desconstruir atitudes sociais e conduz a uma maior igualdade de género no trabalho e em casa. “Mas ainda estamos muito longe da igualdade”, repara Maria do Céu. Só em 2004 é que a licença por paternidade de cinco dias passou a ser obrigatória. “Têm mais tempo, mas não chega, ainda não se compara com o tempo das mães.”
Ricardo Simões considera que a igualdade na licença parental devia ser a regra, não a exceção. E que deveria ser alargada. “Gostaríamos que essa lógica fosse aplicada no pós-divórcio, em que muitas crianças são prejudicadas.” Aplicada na residência alternada para que os pais continuem a fazer parte da vida dos filhos depois de uma separação, para que não haja afastamentos ou exclusões. As políticas públicas são fundamentais para que isso se concretize. “Tudo parte de uma intervenção do Estado em diferentes ciclos da vida da criança.” Não só no nascimento, mas em outros momentos do percurso. “Temos de definir o que queremos para a sociedade, políticas públicas que promovam a igualdade, e há diferentes formas de intervir em diferentes ciclos de vida”, reforça Ricardo Simões. A responsabilidade no cuidar é da mãe e do pai. O destino social definido à nascença devia fazer parte do passado.
De licença parental até pelo menos aos seis meses da filha, Gil não se deixa afetar com comentários que entram por um ouvido e saem por outro. Acha importante que se fale no assunto e percebe que há aspetos que pesam na hora de decidir. “O fator económico é relevante, o que significa ficar em casa em termos de rendimento familiar. Há várias variáveis nesta equação que devem ser consideradas”, sublinha. Viver com menos é uma delas. Assistir a momentos únicos é outra.