Bruno Paixão inspirou-se no sacerdote de Vilar de Perdizes para o seu romance de estreia “Os segredos de Juvenal Papisco”, premiado em 2021, lançado em 2023. O jornal clandestino que escrevia no seminário com sumo de limão. O contrabando para trazer bacalhau, azeite e calças de bombazina de Espanha. As sextas-feiras 13. As plantas, as mezinhas, os responsos. A obra literária é uma metáfora social. Está tudo lá. Traições, negociatas políticas, fraquezas da justiça, a fé e o amor. E um prior que não deixa nada por dizer.
O reencontro acontece no início deste junho, mais de 20 anos depois daqueles dias em que três finalistas de Jornalismo se encontraram com o padre Fontes, em Vilar de Perdizes, para uma reportagem que nunca chega a ver a luz do dia. Bruno Paixão ia tomando notas num pequeno caderno de mercearia, estava com os colegas de curso Hugo Gilberto (RTP) e Joana Guimarães Lopes (ex-“Visão”). Esses apontamentos, sem que o sentisse, o pressentisse tão-pouco (estaria predestinado, quem sabe), tornaram-se alimento do seu primeiro romance, vencedor do Prémio Literário Luís Miguel Rocha em 2021, editado em fevereiro de 2023, já na segunda edição.
“Os segredos de Juvenal Papisco” coloca um padre no centro de uma trama condimentada de suspense numa aldeia com mar e cais. Um alcaide corrupto, um médico de aldeia, um juiz que chega de fora, um coronel que usa e abusa do poder, um diligente boticário, a benzedeira Xêpa Alma que cura todos os males, exceto o amor. E um prior que sucumbe aos prazeres mundanos, não ignora medos e superstições dos homens, acredita que deve mudar o que tem de ser mudado, movimenta-se entre duas fações: os da situação e os da oposição. O padre Fontes está satisfeito com o desenlace da história. “Foi bem visto. O padre tem sempre a faca e o queijo na mão”, comenta. Há semelhanças e há diferenças.
Bruno Paixão volta a Vilar de Perdizes, o primeiro encontro com o padre Fontes depois desses dias de estudante. Traz-lhe limões e fotografias. Haverá almoço, feijoada comida e repetida, memórias e conversas entre os compartimentos que o padre transformou em bibliotecas com móveis e estantes carregadas de livros, jornais, enciclopédias, desde a entrada, passando pelo quarto, até ao lagar que agora é um escritório, onde guarda a máquina de escrever e a rudimentar impressora de onde saíam as edições do jornal “Notícias de Barroso”, que fundou ainda em tempos de ditadura.
A casa do padre Fontes é outra agora, pedra por fora e por dentro, tiras com o seu número de telemóvel junto ao botão da campainha para quem quiser descolar e levar. Ali ao lado, a antiga casa, sua morada de 40 anos, vazia e abandonada, muro e portão de ferro atravessados por uma corda com roupa a secar. Ainda está sol ao início da tarde, algumas nuvens aparecem no céu, não tardará a ouvir-se trovoada e os campos e estradas ficarão cobertos de granizo como se fosse neve. António Lourenço Fontes, padre Fontes, 83 anos feitos em fevereiro, abre a janela para ver e ouvir a chuva que cai com força lá fora. Das traseiras de sua casa, vê-se a velha habitação e aquela varanda onde Bruno Paixão coloca o padre Juvenal Papisco e o médico Atílio Garção na derradeira conversa do seu livro, vê-se também um caminho que sobe o monte, onde se vê o baloiço da bruxa e uma cruz no alto, aquele percurso da peregrinação do seu livro calcado por mulheres de xaile. “Este livro saiu-me ao contrário”, revela. “Os dedos fugiram-me e abriram as gavetas da memória. Inspirei-me em muitas coisas que o padre me contou”, recorda o escritor, investigador, doutorado em Ciências da Comunicação, professor do Ensino Superior, ex-jornalista do DN, da “Focus”, e da “Grande Reportagem”. A história não era esta quando durante a pandemia se refugiou numa carruagem de comboio antiga que tem nas imediações de Coimbra. Tinha material das FP-25 guardado de uma reportagem que havia escrito. Iria por aí, não foi. De repente, mudou de direção. “É a história que vem ter comigo.” Mais tarde, na capa daquele caderno de mercearia, cheio de anotações, escreveu “Diário de um livro”.
O padre Fontes abre livros, lê excertos, mostra os originais dos seus diários escritos em agendas, cadernos que cabem na palma de uma mão de várias cores e feitios, sebentas, tudo servia para ir contando os seus dias a tinta azul – parecem tantas palavras para tão poucas linhas e folhas. Caligrafia aprumada, desenhada. “A letra está torcida”, atira com um sorriso. A doença que lhe desarranja o corpo, lhe desarticula os movimentos, não lhe tira a boa disposição, o humor e o brilho de uma das figuras mais carismáticas e peculiares da tradição popular portuguesa, o padre do Congresso de Medicina Popular e das “Sextas-feiras 13”. O padre que colocou Montalegre no mapa.
Só soube do livro quando estava pronto, Bruno Paixão ligou-lhe, contou-lhe. O livro chegou-lhe pela volta do correio, leu-o, percebeu-se em algumas passagens. “Um padre interventivo, um padre crítico, um padre interessado nos problemas das pessoas. Era provocador”, diz. Assim era. Expulso duas vezes do seminário, o velho reitor traçou-lhe o prognóstico: “Parece bom rapaz, mas também pode ser o diabo”. Recusou o traje eclesiástico e o colarinho branco, vestia calças amarelas e andava de lenço ao pescoço, levava cinema às aldeias, acolhia turistas, fazia passeios pelos montes, lutou para que os terrenos ao redor da barragem de Tourém fossem comprados a preços justos, anunciou os benefícios do abono de família a quem os desconhecia. “Como padre, vivi a vida livre que quis”, garante. “Pregava a liberdade, as homilias eram baseadas nos problemas das pessoas. Tinha um espaço de autoridade e liberdade para falar e eu era pelo povo.” O livro agrada-lhe. “Muito detalhe de caras, de figuras e personalidades, algumas semelhanças comigo e com Vilar de Perdizes.” “Gosto da forma de escrever, muita adjetivação, muitas personalidades”, acrescenta o padre.
“A Trama” era o jornal clandestino que António Lourenço Fontes, a estudar para padre, escrevia à mão no seminário com tinta invisível feita de sumo de limão, assinado por um tal de “Marotus”. As letras só apareciam quando as folhas eram colocadas ao calor. Bruno Paixão puxa-o para o seu livro, mantém o nome do jornal, também escrito com sumo de limão, muda a assinatura para Judas. “A Trama” circula pelas casas da aldeia da sua história. “Ninguém sabia se as informações eram verdadeiras, mas isso era pouco importante em Orão. O essencial, como uma necessidade, era que a história continuasse. E que houvesse sangue. E contendas. E injuriados. Aquilo que faz viver as notícias”, escreve.
Calos, intestinos, baba e ranho, maçã de Adão
A ligação do padre Fontes ao contrabando é conhecida, Vilar de Perdizes viveu dessa atividade até 1980. “Trazíamos bacalhau, azeite, sapatilhas, enxadas, alfaias, calças de bombazina”, recorda. O que cá escasseava vinha do lado de lá da fronteira, para os lados de Ourense, Espanha. Bruno Paixão romanceia essa clandestinidade de sobrevivência, quando o prior se faz ao caminho. “Era meia-noite certa quando olhou o firmamento, com a estrela do norte por cima do ombro esquerdo, tomando o caminho do cume da cordilheira de Macadâmia. Percorrera tantas vezes aquele trilho que as botas já se tinham afeiçoado ao capim. Só não sabiam como se esquivar da bosta de vaca. Uma vez metida nos socalcos da sola, não havia emplastro nem petróleo que afugentasse o mosquedo.” Os guardas não atrapalhavam o negócio na vida real e na ficção. “Cinquenta para mim, 50 para si”, lembra o padre.
A mãe, parteira e crendeira, recitava ladainhas para curar os males, misturava ervas para tratar enfermidades, dizia responsos para afastar os demónios. Não é difícil perceber porquê. Padre Fontes recua a esse passado. “A tradição era essa, toda a gente colhia e guardava plantas. A medicina que nos curava era a medicina caseira. Havia dois médicos no concelho e eram caros, não havia transportes, ia-se a cavalo.” As mezinhas da sua mãe são usadas por Bruno Paixão na caracterização da personagem da benzedeira Xêpa Alma.
Não há demónios, espíritos maus, almas do outro mundo. Padre Fontes não se importa de colocar a máscara do diabo à frente da cara. Não tem medo dele. Celebra as sextas-feiras 13, o dia de azar é assinalado em Vilar de Perdizes, há desfile de bruxas, diabos e mafarricos, festeja-se também o Halloween e prepara-se a queimada, com um licor feito à base de aguardente, açúcar, maçã e canela. Bruno Paixão lembra o responso dessa queimada no seu livro. “Juvenal Papisco atirou uma mão-cheia de sal e logo crepitou o brasido em torno do caldeirão de ferro. Vade retro Satanás, para as pedras cagadeiras. Fulgor de cadáveres ardentes, forças de ar e de lume, fagulhas de pranto, a vós rogo esta chamada. Se é verdade que tendes mais poder que as humanas gentes, mandai comparecer espíritos ausentes.”
Um padre também peca?, perguntou-lhe Bruno Paixão há mais de 20 anos. “Sete vezes… ao dia”, respondeu-lhe o padre Fontes. “O justo peca sete vezes ao dia, eu peco mais”, conta neste reencontro em que Bruno Paixão salienta outra passagem do diário do padre: “O Amândio diz que me vão capar”. Amândio era um vizinho que lhe dizia que se fosse para o seminário, se quisesse ser padre, o iriam capar. O jovem Fontes ficou assustado, admite, até tirar o assunto a limpo. O que Amândio dizia, era mentira, afinal.
A 15 de março de 1968, volta a escrever no diário: “Estou farto destes senhores medievais que nos governam. Nunca seremos um país desenvolvido enquanto o povo sentir que está sempre em dívida com os poderosos”. Era contra o regime de Salazar, nunca teve partido político. “E, no entanto, diziam que eu era o padre mais político do concelho”, diz. “Ao padre Juvenal, parecia-lhe evidente o trilho equivocado do alcaide, iludido com o poder, sendo usado para realizar o trabalho sujo que os outros lhe incutiam. E também para salvaguardar que os benefícios se manteriam intocáveis, jorrando para dentro dos cofres dos mesmos, à custa da exploração daqueles a quem chamam ‘oposicionistas’”, lê-se no livro. A política hoje não lhe merece muita atenção. “Está desacreditada”, repara.
A influência do padre no livro é assumida, o resto é ficção. Bruno Paixão bebe do realismo mágico, do tempo das novelas brasileiras que preenchiam os ecrãs das televisões. “O realismo mágico transporta-nos para um lugar sem lugar, um lugar sem tempo, para que seja um lugar”, adianta. “A escrita é um terreno fértil, há que colocar as nossas sementes, as nossas memórias.” E assim construiu os cenários da história do seu livro. “Como uma aldeia global onde tudo acontece e a mulher não é heroína de coisa alguma, é sempre um apêndice.”
Os seus capítulos, um a um, são batizados com nomes de partes do corpo, as que se veem e as que não se veem – língua, falanges, saliva, rins, punhos, coração, unha e sabugo, baba e ranho, tímpanos, fígado e por aí fora. Bruno Paixão explica a escolha: “Somos um lugar geográfico composto por becos e lugares do nosso corpo. Um corpo nu, sem etiquetas nem diplomas, expõe a nossa realidade sem subterfúgios. O corpo é como um atlas, onde nos reconhecemos e somos reconhecidos. É nesse lugar inteiro que encontramos sentimentos, por vezes antagónicos, como a bondade e a maldade – ninguém tem um ou outro em exclusivo, mas ambos habitam em cada um de nós.” “Um padre tem as mesmas partes do corpo que tem outra pessoa. Assumindo isto no livro, tudo fica mais leve”, sublinha.
O padre Fontes tem um grande cartaz com a sua cara na fachada do edifício da União de Freguesias de Vilar de Perdizes e Meixide e um busto. A região reconhece o seu valor, o seu trabalho, agradece-lhe a dedicação. Agora anda mais por casa, o Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes voltará no início de setembro. “Já não faço grande intervenção, não tenho saúde, não tenho equilíbrio, já não ando a fazer propaganda”, confessa. Mas continua preocupado com a desertificação do Interior. A sua paixão pelo mundo rural é conhecida, o trabalho de divulgação da região também. “Utilizei as armas mais poderosas que podia haver para combater esse isolamento: a imprensa, a cultura popular, os congressos, o Caminho de Santiago.” O turismo rural, a Natureza, as paisagens, os produtos locais, o fumeiro. “Quando a cidade estiver saturada e não houver capacidade de sobrevivência, é possível que venha comprar casas ao mundo rural”, afirma. Há pouco mais de dois meses, foi nomeado embaixador do Alto Tâmega e Barroso 2023. “Mais um rótulo, aceito-os todos.” Já são alguns. E qualquer coincidência com a ficção pode ser mera realidade.